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+ memória
Ensaísta relembra a atuação docente na USP e a postura intelectual do sociólogo
A imaginação crítica de Ruy Coelho
Jerusa Pires Ferreira
especial para a Folha
Chegávamos de todos os lados
deste país para fazer a pós-graduação na USP e Ruy Coelho vinha da França, onde tinha permanecido por longo tempo, em plena
abertura política, depois do episódio de
sua prisão, durante a ditadura, e ao qual
ele se referia como "quando o Estado me
quis como hóspede".
Ruy recomeçava seu curso no departamento de ciências sociais e a sala não
comportava tanta gente. Coisa de momento. Depois, um grupo bem grande
foi ficando, e outras pessoas vinham chegando. Naquele ano, ele tratava de temas
medievais, mas se estendia em conexões
às vezes surpreendentes. Seus cursos, em
geral, levavam as rubricas: "Sociologia
da Literatura Fantástica" e "Símbolos e
Função Simbólica" .
Mas o seu conceito de ensino era peculiar, cabia-lhe instalar novas propostas,
fazer refletir fora de padrões previstos e,
ao que pudemos entender, tinha como
missão disseminar idéias. Levava a pensar fora de dicotomias aprisionantes
(aliás, era essa a razão de uma aversão
aos "estruturalismos"), a ter a sutileza
para acompanhar os raciocínios que não
eram provenientes de improvisação,
mas de intenso trabalho intelectual. Um
modo próprio e uma pedagogia especial.
Afinal, aos 20 anos, ele tinha escrito um
interessante trabalho sobre Proust. Ruy
Coelho discorria, sob uma forma que poderíamos denominar discurso tangencial, não aleatoriamente, mas em conexões que recuperavam, de um golpe, a
imaginação aparentemente dispersa.
Explorador do imaginário
Era
um dos maiores leitores de que já tive conhecimento. Não o leitor indeciso, o teórico que não tinha encontrado seu caminho, mas aquele para quem a exploração
do imaginário era fundamental, também
a quebra de categorias cristalizadas (dentro/fora, longe/perto, popular/erudito) e
assim por diante. Tratava-se da instalação de um pensamento inovador, em
curso e em processo. Desse modo, transitava e nos oferecia subsídios que iam
do texto e das concepções de Dante às
culturas populares, aos livros de magia,
do "Manuscrito de Saragoça", de Jan Potocki, ao "Diable Amoureux" (Diabo
Amoroso), de Cazotte, alcançando as
histórias de crime e de mistério. Quanto
à ficção científica, uma de suas predileções, surgiam temas, construções e enredos que levavam da literatura ao social,
com grande força. Foi a partir dele que
apreendemos a importância ficcional de
um escritor como Lovecraft, entre outros, que acompanhamos a construção
do discurso utópico -o mundo das utopias, de Santo Agostinho e Francis Bacon
a Cabet e sua viagem à Icaria.
Um importante capítulo de sua transmissão era também o dos pensadores
heterodoxos do Renascimento, aqueles
que exploraram as relações do conhecimento científico e da magia. Por isso
Giordano Bruno se instalava sempre no
centro de suas discussões, juntamente
com "As Artes da Memória", o livro inigualável de Frances Yates.
Leitor de Joyce
Ruy Coelho era também o homem que tinha lido, de fato e de
razão, o "Finnegans Wake", de Joyce,
que conhecia a epopéia celta, os Mabinogion e, no meu caso pessoal, apresentou-me "From Ritual to Romance", de Jessie
Weston, numa percepção espantosa (ele
que era aparentemente distraído) dos
nós que poderiam conduzir uma pesquisa a seguir.
Nessa ocasião, seu curso continuava
sempre, no barzinho da Faculdade de
História, peripatético, com os seus seguidores e ouvintes deslumbrados ou mesmo perplexos. Disputava-se o prazer de
levá-lo depois em casa, na medida em
que isso implicava a continuação dos ensinamentos.
Por sua vez, outros ouvintes/discípulos
bissextos acorriam para escutá-lo -e
depois já os nossos orientandos; seus
cursos seriam o espaço propício à concatenação de idéias ou para a aventura da
imaginação.
Por isso, colocava em evidência Wright
Mills e sua imaginação sociológica, acreditava na poética do social, proposta por
Roger Bastide, se encantava com os ensaios de Marcel Mauss. Devemos a ele tudo isso. Em cada passo que damos em
nossas vidas, rumos, pesquisas, carreiras
está a sua marca. Será mesmo impossível
captar de uma vez o quanto nos legou, e a
melhor forma de lembrá-lo, a meu ver,
será perceber a maneira pela qual ele era
capaz de transmitir tudo isso. Não o fazia
considerando compartimentos de uma
história sistemática da sociologia da arte
ou da cultura.
Pacificador
Criou, juntamente com
um grupo de alunos e colegas, um Centro de Estudos de Sociologia da Arte, e
dirigiu o departamento de ciências sociais e depois a Faculdade de Letras e
Ciências Humanas da USP, "pacificando
os gentios", como graciosamente dizia.
Diante de tudo isso, um conceito de "discípulo" como seguidor acadêmico,
aquele preparado para acompanhar certo cânone e repertório de idéias políticas
ou estéticas previamente estabelecidas,
não cabe, mesmo, aqui .
Ele espalhava tolerância e sabedoria de
forma esparsa, mas eficaz. Sem citar nomes, para não cometer equívocos de esquecer alguns, eu diria que as pessoas o
acompanharam, por muito tempo, captando certos vetores desse pensamento
irradiador. Outros, e é sempre assim,
apenas o seguiram. Não nos cabe estabelecer prioridades ou hierarquia quanto à
competência de atuação, se ficaram e
exerceram novas transmissões de idéias
ou não. No caso de Ruy Coelho, o que estava em causa, para além do simples prazer de ouvi-lo, era uma expansão contínua, a passagem de conceitos e de posturas que nos ficaram, de repertórios móveis que permaneceram ou se fizeram
atualizar, ao longo das várias trajetórias.
Alguns de nós ficamos na USP e aí levamos os nossos projetos adiante, dentro
das nossas possibilidades.
Conceitualmente e, apesar de todas as
incompreensões que cercam um pensamento assim, poderíamos até dizer que
ele estava muito mais para o rizoma do
que para a árvore de raízes fixas; muito
mais para Deleuze e seus platôs do que se
poderia àquela altura supor (aliás esse
seria um ótimo tema de pesquisa). Era
também um atento leitor de Marx. Até
hoje nos lembramos de seu agudo comentário sobre as metáforas e a leitura
que fazia do "Capital". Das questões sobre o universo da mente que partilhava
de forma intensa com sua mulher e companheira, Lúcia Trindade Coelho.
Por isso é que o acompanhamos à sua
morada final com tanta reverência e o
sentimento de uma perda inestimável.
Um humanista como poucos e raros neste país e no mundo. Um mestre, cheio de
delicadeza, humildade e humor para rir
sabiamente, de vez em quando, de si
mesmo, e deixar passar com benevolência quem, num dado momento, não era
capaz de percebê-lo, ou se situava de outra maneira no mundo das idéias. De resto, ele compreendia também que havia
contrapartes necessárias...
Jerusa Pires Ferreira é professora da Escola de
Comunicações e Artes da USP e da pós-graduação
em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; é autora, entre outros, de "Fausto no Horizonte" (Hucitec/ Educ).
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