São Paulo, domingo, 16 de julho de 2000


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+ memória
Ensaísta relembra a atuação docente na USP e a postura intelectual do sociólogo
A imaginação crítica de Ruy Coelho

Jerusa Pires Ferreira
especial para a Folha

Chegávamos de todos os lados deste país para fazer a pós-graduação na USP e Ruy Coelho vinha da França, onde tinha permanecido por longo tempo, em plena abertura política, depois do episódio de sua prisão, durante a ditadura, e ao qual ele se referia como "quando o Estado me quis como hóspede". Ruy recomeçava seu curso no departamento de ciências sociais e a sala não comportava tanta gente. Coisa de momento. Depois, um grupo bem grande foi ficando, e outras pessoas vinham chegando. Naquele ano, ele tratava de temas medievais, mas se estendia em conexões às vezes surpreendentes. Seus cursos, em geral, levavam as rubricas: "Sociologia da Literatura Fantástica" e "Símbolos e Função Simbólica" . Mas o seu conceito de ensino era peculiar, cabia-lhe instalar novas propostas, fazer refletir fora de padrões previstos e, ao que pudemos entender, tinha como missão disseminar idéias. Levava a pensar fora de dicotomias aprisionantes (aliás, era essa a razão de uma aversão aos "estruturalismos"), a ter a sutileza para acompanhar os raciocínios que não eram provenientes de improvisação, mas de intenso trabalho intelectual. Um modo próprio e uma pedagogia especial. Afinal, aos 20 anos, ele tinha escrito um interessante trabalho sobre Proust. Ruy Coelho discorria, sob uma forma que poderíamos denominar discurso tangencial, não aleatoriamente, mas em conexões que recuperavam, de um golpe, a imaginação aparentemente dispersa.

Explorador do imaginário
Era um dos maiores leitores de que já tive conhecimento. Não o leitor indeciso, o teórico que não tinha encontrado seu caminho, mas aquele para quem a exploração do imaginário era fundamental, também a quebra de categorias cristalizadas (dentro/fora, longe/perto, popular/erudito) e assim por diante. Tratava-se da instalação de um pensamento inovador, em curso e em processo. Desse modo, transitava e nos oferecia subsídios que iam do texto e das concepções de Dante às culturas populares, aos livros de magia, do "Manuscrito de Saragoça", de Jan Potocki, ao "Diable Amoureux" (Diabo Amoroso), de Cazotte, alcançando as histórias de crime e de mistério. Quanto à ficção científica, uma de suas predileções, surgiam temas, construções e enredos que levavam da literatura ao social, com grande força. Foi a partir dele que apreendemos a importância ficcional de um escritor como Lovecraft, entre outros, que acompanhamos a construção do discurso utópico -o mundo das utopias, de Santo Agostinho e Francis Bacon a Cabet e sua viagem à Icaria. Um importante capítulo de sua transmissão era também o dos pensadores heterodoxos do Renascimento, aqueles que exploraram as relações do conhecimento científico e da magia. Por isso Giordano Bruno se instalava sempre no centro de suas discussões, juntamente com "As Artes da Memória", o livro inigualável de Frances Yates.

Leitor de Joyce
Ruy Coelho era também o homem que tinha lido, de fato e de razão, o "Finnegans Wake", de Joyce, que conhecia a epopéia celta, os Mabinogion e, no meu caso pessoal, apresentou-me "From Ritual to Romance", de Jessie Weston, numa percepção espantosa (ele que era aparentemente distraído) dos nós que poderiam conduzir uma pesquisa a seguir. Nessa ocasião, seu curso continuava sempre, no barzinho da Faculdade de História, peripatético, com os seus seguidores e ouvintes deslumbrados ou mesmo perplexos. Disputava-se o prazer de levá-lo depois em casa, na medida em que isso implicava a continuação dos ensinamentos. Por sua vez, outros ouvintes/discípulos bissextos acorriam para escutá-lo -e depois já os nossos orientandos; seus cursos seriam o espaço propício à concatenação de idéias ou para a aventura da imaginação. Por isso, colocava em evidência Wright Mills e sua imaginação sociológica, acreditava na poética do social, proposta por Roger Bastide, se encantava com os ensaios de Marcel Mauss. Devemos a ele tudo isso. Em cada passo que damos em nossas vidas, rumos, pesquisas, carreiras está a sua marca. Será mesmo impossível captar de uma vez o quanto nos legou, e a melhor forma de lembrá-lo, a meu ver, será perceber a maneira pela qual ele era capaz de transmitir tudo isso. Não o fazia considerando compartimentos de uma história sistemática da sociologia da arte ou da cultura.

Pacificador
Criou, juntamente com um grupo de alunos e colegas, um Centro de Estudos de Sociologia da Arte, e dirigiu o departamento de ciências sociais e depois a Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, "pacificando os gentios", como graciosamente dizia. Diante de tudo isso, um conceito de "discípulo" como seguidor acadêmico, aquele preparado para acompanhar certo cânone e repertório de idéias políticas ou estéticas previamente estabelecidas, não cabe, mesmo, aqui .
Ele espalhava tolerância e sabedoria de forma esparsa, mas eficaz. Sem citar nomes, para não cometer equívocos de esquecer alguns, eu diria que as pessoas o acompanharam, por muito tempo, captando certos vetores desse pensamento irradiador. Outros, e é sempre assim, apenas o seguiram. Não nos cabe estabelecer prioridades ou hierarquia quanto à competência de atuação, se ficaram e exerceram novas transmissões de idéias ou não. No caso de Ruy Coelho, o que estava em causa, para além do simples prazer de ouvi-lo, era uma expansão contínua, a passagem de conceitos e de posturas que nos ficaram, de repertórios móveis que permaneceram ou se fizeram atualizar, ao longo das várias trajetórias. Alguns de nós ficamos na USP e aí levamos os nossos projetos adiante, dentro das nossas possibilidades.
Conceitualmente e, apesar de todas as incompreensões que cercam um pensamento assim, poderíamos até dizer que ele estava muito mais para o rizoma do que para a árvore de raízes fixas; muito mais para Deleuze e seus platôs do que se poderia àquela altura supor (aliás esse seria um ótimo tema de pesquisa). Era também um atento leitor de Marx. Até hoje nos lembramos de seu agudo comentário sobre as metáforas e a leitura que fazia do "Capital". Das questões sobre o universo da mente que partilhava de forma intensa com sua mulher e companheira, Lúcia Trindade Coelho.
Por isso é que o acompanhamos à sua morada final com tanta reverência e o sentimento de uma perda inestimável. Um humanista como poucos e raros neste país e no mundo. Um mestre, cheio de delicadeza, humildade e humor para rir sabiamente, de vez em quando, de si mesmo, e deixar passar com benevolência quem, num dado momento, não era capaz de percebê-lo, ou se situava de outra maneira no mundo das idéias. De resto, ele compreendia também que havia contrapartes necessárias...


Jerusa Pires Ferreira é professora da Escola de Comunicações e Artes da USP e da pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; é autora, entre outros, de "Fausto no Horizonte" (Hucitec/ Educ).


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