São Paulo, domingo, 16 de agosto de 2009

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Ponto de Fuga

O cheiro do som


O que distingue as orquestras de fato supremas é seu caráter sonoro insubstituível; foi comovente ouvir, em Paulínia, a discreta naturalidade com que tudo brotava


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Paulínia: cidade perto de Campinas, em São Paulo, cheia de refinarias e indústrias poluentes, que mandam, de vez em quando, o bodum pelo vento. Cidade rica com o dinheiro do petróleo, do qual não se vê manifestar muita coisa, afora uns inenarráveis portais e semáforos espertos.
Criou, não faz muito, um festival de cinema brasileiro, meio modesto e rotineiro. De modo geral, uma pasmaceira.
Isso é, pouco mais ou menos, o que se sabia, quando se sabia, alguma coisa de Paulínia. Assim, a notícia de que a Orquestra Filarmônica de Israel, em sua turnê internacional, junto com Zubin Mehta, seu lendário regente, iria aportar ali para dois concertos, um consagrado a Richard Strauss, o outro a Beethoven, fez o queixo cair.
Alguém, em uma cidade do interior, de 80 mil habitantes, teve a ideia maior de empregar bem recursos disponíveis e trazer o grande maestro indiano com uma das mais soberbas orquestras de hoje. Não foi guiado pelas intenções primárias e demagógicas das apresentações ao ar livre, em más condições de escuta, com programa pouco exigente para público desatento, mas um verdadeiro, belo, excepcional concerto.
É preciso esquecer o nariz em forma de templo grego, de estilo pós-moderno e neobrega, entrada do Teatro Municipal que a cidade construiu recentemente, e descobrir a sala interna. Ela pode abrigar 1.300 espectadores. Inteiramente forrada de madeira, difícil encontrar, no Brasil todo, um equivalente para sua qualidade sonora. Ou melhor, talvez seja a única a poder se ombrear com a sublime acústica do salão Leopoldo Miguez, no Rio de Janeiro, que é, sem dúvida, o parâmetro máximo em nossas plagas.
Há um programa previsto para ela, até o final do ano. Música sinfônica e de câmara que mistura grandes artistas brasileiros e internacionais.

Torrente
O que faz a qualidade de uma orquestra? Em primeiro lugar, sem discussão, a qualidade de seus músicos. É graças a eles que alcança a qualidade técnica necessária.
Ataques perfeitos, homogeneidade dos naipes, compreensão rápida, quase instintiva, do regente, são condições para que atinja um patamar elevado. É muito; boas formações sinfônicas contentam-se com isso. Obtêm um digno e perfeito acabamento e basta.
O que distingue as orquestras de fato supremas, porém, é seu caráter sonoro insubstituível. A Filarmônica de Israel está hoje entre as altíssimas, e foi comovente ouvir, na sala ideal de Paulínia, a discreta naturalidade com que tudo brotava, sem excessos, sem brilhos acentuados, como límpida água de fonte traduzindo as mais ínfimas intenções do maestro. Tons calorosos, matizados, num tecido sonoro em suavidade de ouro velho. Mas nada valem as metáforas. Era preciso estar lá para ouvir.

Facúndia
O concerto da Filarmônica de Israel em Paulínia, no sábado, dia 8, foi dedicado a Richard Strauss [1864-1949]. As obras eram eloquentes e propícias a exaltar o espetáculo sonoro: "D. Juan", "Till Eulenspiegel" e "Ein Heldenleben" (Uma Vida de Herói).
Recusando todo exibicionismo, Richard Strauss mostrou-se ali em seu aspecto mais refinado, sem saturações, sem excessos, sem a vulgaridade à qual tantos maestros superficiais o condenam.

Sobremesa
Zubin Mehta ofereceu, como bis, a abertura de "As Bodas de Fígaro" de Mozart, íntima, viva, e duas polcas de Johann Strauss [1804-49]. Brahms dizia que o céu devia estar cheio de obras desse outro Strauss, vienense. Na noite do dia 8, o céu era em Paulínia.

jorgecoli@uol.com.br


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