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Ponto de Fuga
O cheiro do som
O que distingue as orquestras de fato supremas é seu caráter sonoro insubstituível; foi comovente ouvir, em Paulínia, a discreta naturalidade com que tudo brotava
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Paulínia: cidade perto de
Campinas, em São Paulo,
cheia de refinarias e indústrias poluentes, que mandam, de vez em quando, o bodum pelo vento. Cidade rica
com o dinheiro do petróleo, do
qual não se vê manifestar muita coisa, afora uns inenarráveis
portais e semáforos espertos.
Criou, não faz muito, um festival de cinema brasileiro, meio
modesto e rotineiro. De modo
geral, uma pasmaceira.
Isso é, pouco mais ou menos,
o que se sabia, quando se sabia,
alguma coisa de Paulínia. Assim, a notícia de que a Orquestra Filarmônica de Israel, em
sua turnê internacional, junto
com Zubin Mehta, seu lendário
regente, iria aportar ali para
dois concertos, um consagrado
a Richard Strauss, o outro a
Beethoven, fez o queixo cair.
Alguém, em uma cidade do
interior, de 80 mil habitantes,
teve a ideia maior de empregar
bem recursos disponíveis e trazer o grande maestro indiano
com uma das mais soberbas orquestras de hoje. Não foi guiado pelas intenções primárias e
demagógicas das apresentações ao ar livre, em más condições de escuta, com programa
pouco exigente para público
desatento, mas um verdadeiro,
belo, excepcional concerto.
É preciso esquecer o nariz
em forma de templo grego, de
estilo pós-moderno e neobrega, entrada do Teatro Municipal que a cidade construiu recentemente, e descobrir a sala
interna. Ela pode abrigar 1.300
espectadores. Inteiramente
forrada de madeira, difícil encontrar, no Brasil todo, um
equivalente para sua qualidade
sonora. Ou melhor, talvez seja
a única a poder se ombrear
com a sublime acústica do salão Leopoldo Miguez, no Rio de
Janeiro, que é, sem dúvida, o
parâmetro máximo em nossas
plagas.
Há um programa previsto
para ela, até o final do ano. Música sinfônica e de câmara que
mistura grandes artistas brasileiros e internacionais.
Torrente
O que faz a qualidade de uma
orquestra? Em primeiro lugar,
sem discussão, a qualidade de
seus músicos. É graças a eles
que alcança a qualidade técnica
necessária.
Ataques perfeitos, homogeneidade dos naipes, compreensão rápida, quase instintiva, do
regente, são condições para que
atinja um patamar elevado. É
muito; boas formações sinfônicas contentam-se com isso. Obtêm um digno e perfeito acabamento e basta.
O que distingue as orquestras
de fato supremas, porém, é seu
caráter sonoro insubstituível. A
Filarmônica de Israel está hoje
entre as altíssimas, e foi comovente ouvir, na sala ideal de
Paulínia, a discreta naturalidade com que tudo brotava, sem
excessos, sem brilhos acentuados, como límpida água de fonte traduzindo as mais ínfimas
intenções do maestro. Tons calorosos, matizados, num tecido
sonoro em suavidade de ouro
velho. Mas nada valem as metáforas. Era preciso estar lá para
ouvir.
Facúndia
O concerto da Filarmônica
de Israel em Paulínia, no sábado, dia 8, foi dedicado a Richard
Strauss [1864-1949]. As obras
eram eloquentes e propícias a
exaltar o espetáculo sonoro: "D.
Juan", "Till Eulenspiegel" e
"Ein Heldenleben" (Uma Vida
de Herói).
Recusando todo exibicionismo, Richard Strauss mostrou-se ali em seu aspecto mais refinado, sem saturações, sem excessos, sem a vulgaridade à qual
tantos maestros superficiais o
condenam.
Sobremesa
Zubin Mehta ofereceu, como
bis, a abertura de "As Bodas de
Fígaro" de Mozart, íntima, viva,
e duas polcas de Johann
Strauss [1804-49]. Brahms dizia que o céu devia estar cheio
de obras desse outro Strauss,
vienense. Na noite do dia 8, o
céu era em Paulínia.
jorgecoli@uol.com.br
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