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Marcha forçada para o Oriente
Escravidão negra residual continuou a se disseminar pelo Oriente Médio no século 20, com cativos levados do nordeste da África; prática ainda resiste
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MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Tudo começou em
1928, quando da visita
ao emir da então chamada Transjordânia
[atual Jordânia]. Uma
bem armada guarda de homens
negros, em nada assemelhados
a beduínos, vigiava a residência
em Amã. Como Joseph Kessel
indagasse a que tribo pertenciam esses soldados, ouviu do
príncipe: "São meus escravos,
vindos do outro lado do mar".
O fato não despertou maior
interesse até que, 15 meses depois, vagando pelo deserto sírio, Kessel foi ter à tenda de outro potentado islâmico. A um
canto, via-se uma dezena de
negros armados até os dentes,
de quem o intérprete que o
acompanhava informou tratar-se de escravos, "sobre os quais
o dono tem direito de vida e
morte". Soube igualmente que
qualquer chefe, pequeno ou
grande, tinha escravos, destinados a serviços domésticos ou
à proteção dos seus senhores,
todos eles provenientes do litoral africano do mar Vermelho.
De regresso à Europa, leu o
que pôde sobre o assunto.
Aprendeu que, embora residual, a escravidão negra disseminava-se pelo Oriente Médio,
sendo o Sudão e a Abissínia
[atual Etiópia] as suas principais fontes. Apresados no interior, os africanos eram embarcados em pontos secretos da
costa e desembarcados também sigilosamente no litoral
asiático, de onde eram levados
para diversos mercados. Desvendar "in loco" os mecanismos do tráfico desses infelizes
tornou-se a sua obsessão
-queria documentar a captura, atravessar o mar Vermelho
com os escravos e segui-los até
a revenda final nos mercados
islâmicos.
Aventura jornalística
O jornal parisiense "Le Matin" resolveu bancar o projeto.
Afinal, aos 30 anos de idade, Joseph Kessel gozava de grande
prestígio. Nascido na Argentina
em 1898, vivera nos Urais
[montes que separam a Europa
da Ásia] entre 1905 e 1908 e logo se instalou na França. Flertara com o teatro, mas acabou
por se engajar no Exército em
fins de 1916. Artilheiro e aviador, recebera a Cruz de Guerra.
Com o término do conflito
mundial, voltou-se para o jornalismo e para a literatura,
sempre focado em trajetórias
limites e em contextos excepcionais: a Revolução Russa, o
submundo urbano, os desamparados. Em 1928, publicou
"Belle de Jour" [Bela da Tarde]
pela [editora francesa] Gallimard, livro no qual se basearia
Luis Buñuel para realizar, 40
anos depois, um dos seus melhores filmes.
Quis o destino que travasse
contato em Paris com Henry de
Monfreid (1879-1974), misantropo que havia décadas vivia
no Chifre da África [no nordeste do continente], contrabandeando armas, pérolas e haxixe.
Monfreid o acolheu em sua casa na Abissínia, e a amizade entre ambos converteu-se em
verdadeiro salvo-conduto para
Kessel. Por meio dele, conheceu um velho muçulmano enriquecido com o tráfico, o qual
lhe apresentou Said (nome fictício), traficante ainda na ativa.
Na província de Harare, a
500 quilômetros de Adis Abeba
[capital etíope], descobriu que
o cativeiro encontrava-se entranhado na gente, que negros
escravizados de todas as idades
provinham da fronteira com o
Sudão, que a fome e o medo os
unia. Vê-los devorar um boi
cru, rápidos como abutres, o
fascinou. Entrevistou-os e ouviu sempre a mesma triste história: recordações de florestas,
raptos em massa ou isolados,
caminhadas intermináveis e,
por fim, o cativeiro.
Comboio de escravos
Said, o mercador de escravos,
confidenciou-lhe que duas caravanas anuais de 15 escravos
para a Arábia bastavam-lhe para se manter -se não perecessem no caminho. Pagava os impostos das aldeias miseráveis
para, em troca, obtê-los. Outro
meio era dispor de caçadores
corajosos.
Joseph Kessel teve a oportunidade de observar um dos
comboieiros de Said em ação.
Seu nome era Sélim, especialista no rapto de crianças. Viu-o
arrastar-se pela relva como um
felino para, sem ruídos, capturar uma pequena pastora, enrolá-la em uma manta e com ela
regressar à aldeia. Said perguntou-lhe se estava satisfeito com
o espetáculo. Kessel anuiu, oferecendo-se para comprar a menina e libertá-la. Fecharam o
negócio por 30 libras. Pouco
depois, a pastorinha regressava
às origens, pelas mãos dos mesmos que a haviam transformado em um pequeno embrulho.
Arriscando a própria vida,
acompanhou o pequeno rebanho humano de Said -sete mulheres e quatro homens- rumo
ao litoral. Com eles atravessou
o mar Vermelho e atracou no
Iêmen. Disseram-lhe que os escravos haviam sido remetidos
em caravana para Meca [na
Arábia Saudita], onde seriam
vendidos em leilões. Seguiu a
pista, e foi esta a sua última
grande descoberta: os africanos
desembarcavam no litoral arábico segundo todas as regras
prescritas para os peregrinos,
mas nunca regressavam.
A reportagem de Kessel foi
publicada em 20 capítulos pelo
"Le Matin", cujas vendas aumentaram em 150 mil exemplares. Em 1933, seus artigos
transformaram-se no livro
"Marchés d'Esclaves" [Marchas de Escravos], editado pela
Éditions de France. Quanto ao
autor, continuou sucumbindo
ao seu destino: lutou na Guerra
Civil Espanhola [1936-39], aderiu à Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial -obtendo mais uma Cruz
de Guerra-, militou pela criação do Estado de Israel [1948],
sempre a escrever.
Joseph Kessel morreu há 30
anos, na condição de membro
da Academia Francesa. O cativeiro que descreveu ainda viceja, sobretudo em países muçulmanos. Quando menos por isso, seu relato continua a ser
uma fonte ímpar para os estudiosos da escravidão no mundo
contemporâneo.
MANOLO FLORENTINO é professor de história
na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira) e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .
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