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Relato de um escritor aprendiz
DANIEL GALERA DESCREVE SUA PARTICIPAÇÃO NO CURSO DE TÉCNICAS DE LEITURA E ESCRITA QUE, DE FORMA "SURPREENDENTE E INEVITÁVEL", FEZ DELE UM AUTOR
DANIEL GALERA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Surpreendente, mas
inevitável. Quando,
em algum momento
de 1999, o professor
Assis Brasil [que coordena oficinas de texto na PUC-RS] colocou nesses termos para seus alunos o desfecho ideal
de todo conto, eu sabia exatamente do que ele estava falando. Sabia porque, aos 20 anos,
já tinha lido centenas de contos. Mas eu sabia sem saber.
Tinha a experiência, mas não
a consciência da experiência.
Sabe lá quanto tempo eu levaria para chegar sozinho a uma
fórmula tão elegante para definir o instante em que o subtexto, tão essencial ao conto moderno, vem à tona. Talvez nunca chegasse. Foi esse tipo de
coisa que a oficina de literatura
do Assis me deu de bandeja.
Quando entrei na oficina, eu
já escrevia contos e os divulgava na internet, mas me considerava um diletante. Era um
sujeito que só começava a suspeitar que a literatura talvez
não fosse um interesse passageiro como outrora foram o
violão, as histórias em quadrinhos, o web design.
Eu cursava publicidade e
propaganda sem convicção nenhuma, e o futuro me parecia
um shopping center onde teria
de passar a tarde a contragosto
num domingo de chuva. Mas
eu lia muito desde piá, e aquela
coisa de escrever ficção estava
ficando séria. Por isso me inscrevi na oficina.
Recuemos um pouco. Um
dos contos que mais marcou
minha, cof, juventude, foi "O
Beijo", de Anton Tchekhov. O
enredo é simples. Um batalhão
de soldados russos acampa
num vilarejo e é convidado por
um aristocrata local, o general
Von Rabbek, para um chá festivo. Um militar particularmente tímido e apagado, de nome
Riabovitch, perde-se nos corredores escuros da mansão e é
beijado por uma mulher desconhecida que estava à espera de
um outro qualquer.
O incidente afeta o ingênuo
protagonista de maneira duradoura. Ele passa as semanas seguintes em deslumbramento,
fantasiando sobre a identidade
e a aparência da mulher. O sentimento de alegria persiste.
Marchando à noite, ele tem a
impressão de que a luz distante
de uma janela ou fogueira está
piscando secretamente para
ele, como se soubesse do beijo.
Tempos depois, o batalhão
acampa de novo no vilarejo.
Riabovitch torce para que o general os convide para outro
chá, na esperança de rever a
mulher. Mas a essa altura ele já
começa a reconhecer a insignificância do episódio do beijo,
constatando o abismo entre o
fervor de sua imaginação e a indiferença do mundo ao redor.
E então o mensageiro do general de fato vem e novo convite é
feito ao batalhão. Riabovitch,
amargurado, decide não ir e se
mete na cama.
Esse conto sempre me causou profunda impressão, e fiquei muito tempo sem entender o motivo. Há elementos óbvios com os quais todo ser humano se identificaria. "Todo
esse sonho que agora me parece tão impossível e excepcional
é na verdade bastante ordinário", conclui Riabovitch ao escutar as conversas vulgares de
seus companheiros sobre encontros com mulheres.
Subtexto
Quem não passou longos períodos entregue a fantasias,
amorosas ou não, apenas para
"cair na realidade" de uma hora
para outra? Quem não conhece
a frustração ou a melancolia
que disso resulta? Mas o conto
é muito mais do que isso. Do
que, então, ele realmente trata?
Numa das várias aulas em
que abordou o subtexto literário, Assis Brasil nos deu como
exemplo uma famosa anotação
para um conto encontrada
num caderno de Tchekhov:
"Um homem vai ao cassino de
Monte Carlo e ganha uma fortuna na roleta. Volta para o hotel e se suicida". Essa é a história aparente do conto, e supõe-se que o elemento crucial, o
motivo de o homem matar-se
nessa estranha circunstância,
seria infiltrado no enredo como
história oculta, ou subtexto.
Cabe ao leitor captar o subtexto. Cabe ao escritor dar-lhe
pistas na dose exata para que a
descoberta exija esforço e seja
recompensadora na mesma
medida. O suicídio deve ser
surpreendente. Mas também
deve ser inevitável. Como a atitude de Riabovitch no final de
"O Beijo".
Por trás de todo conto há
uma parábola, ou seja, a projeção de uma história em outra
história. O conto aponta para
outra narrativa que o extrapola,
e que se encontra em grande
parte na experiência de vida do
leitor. Construir essa ponte faz
parte da nossa natureza.
Narramos sem parar, seja na
comunicação com os outros ou
no domínio da introspecção. É
o que fazemos ao procurar o
"sentido" de "O Beijo", e é o que
faz Riabovitch ao combinar detalhes de todas as moças presentes na mansão para criar sua
musa particular e transformar
o beijo acidental numa elaborada fantasia.
Eis o "nocaute" do conto: o
autor cria condições para que
uma potente parábola seja escrita com a participação do leitor, mas entrega a chave só no
final. O desfecho é o começo.
Depois das conversas sobre
subtexto na oficina, reli "O Beijo" e finalmente percebi como
esse mecanismo entrava em
ação. Por mais tocante e lindamente narrada que seja toda a
história aparente de Riabovitch, e por mais que em seu
desfecho ele sufoque a alegria
momentânea, abdique da possibilidade de rever a mulher e
se meta na cama, resignado,
sentindo raiva de seu destino, a
verdade é que ele toma a decisão correta. E o faz porque seu
exaustivo exercício de fantasia
o transformou numa pessoa
melhor.
Tchekhov tenta esconder isso ao máximo, e chega a apelar,
numa das últimas frases, quando põe seu personagem a observar a água do rio que passa
pelo vilarejo: "Em maio ela tinha corrido para o grande rio, e
do grande rio para o mar; então
subiu em forma de vapor, virou
chuva, e talvez a mesma água
estivesse correndo agora de novo diante dos olhos de Riabovitch... Para quê? Por quê?".
A oficina nos exigia um conto por semana. Narrar uma saga familiar em cinco linhas. Um episódio de dez segundos em dez páginas
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Releitura
E eu respondo, projetando a
história que Tchekhov me deu
numa outra que ele me convida
a criar, com base no pouco que
já sei do mundo: para que Riabovitch perceba que nesse retorno a água pode ser a mesma,
mas ele próprio não. Ele mudou para sempre.
Para que vá se deitar um pouco mais próximo de si mesmo,
sem gastar suas energias inutilmente na tentativa de ser sociável e mulherengo como seus
companheiros de batalhão,
pois ele sabe faz tempo que é diferente de todos eles e já concluiu que um dia, cedo ou tarde,
uma mulher passará por sua vida. Para que seja capaz de abrir
mão. Podemos nos surpreender com sua decisão, mas ela é
inevitável.
Não creio que uma oficina literária possa forjar um talento.
Mas esse é um exemplo de como ela pode, sim, aprofundar e
instrumentalizar a relação de
um possível autor com as narrativas que lê e escreve.
Uma lição da oficina me levou a uma releitura definitiva
(para mim, é claro) de um dos
contos que haviam marcado
minha adolescência. Encontrei
palavras e conceitos adequados
para explicar aspectos da ficção
que minha experiência como
leitor me levava a intuir, e isso
foi um ponto de partida para
pensar a literatura com um
pouco mais de ambição.
Nunca escrevi tanto quanto
naquele ano. A oficina nos exigia em média um conto por semana. Narrar uma saga familiar de cinco séculos em cinco
linhas. Narrar um episódio de
dez segundos em dez páginas.
Contar uma história apenas
com descrições do cenário. Os
textos eram analisados pelo
professor e exaustivamente debatidos pelos alunos, que acumulavam cada vez mais ferramentas para a tarefa. Clichês,
técnicas de diálogo, modalidades de narradores.
Ao longo de 1999, eu decidi
que escrever seria minha prioridade. Passei 20 anos me distraindo disso, mas de repente,
como no final de um bom conto, o subtexto veio à tona. Até
então, sinceramente, eu não
planejava nada disso. Surpreendente, mas inevitável.
DANIEL GALERA , escritor e tradutor, é autor de
"Cordilheira" (Cia. das Letras).
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