São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

XAMANISMO
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro antecipa o tema de sua palestra sobre o pensamento indígena no ciclo "A Outra Margem do Ocidente", da Funarte
Tão humanos quanto animais

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
especial para a Folha

A distinção entre corpo e alma desempenha um papel importante nas ontologias indígenas. Trata-se, porém, de algo diferente do dualismo entre matéria e espírito e das dicotomias correlatas que por tanto tempo serviram de balizas à reflexão ocidental: realidade e representação, fato e valor, natureza e cultura, universal e particular etc.
Diz-se que hoje tais balizas ruíram; teríamos ingressado em uma era pós-dicotômica. Pode ser. Resta que nossa vulgata cosmológica continua a veicular uma doutrina multiculturalista, fundada na unicidade da natureza e na multiplicidade das culturas -a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e das substâncias, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e das representações. O relativismo (cultural) é indissociável do universalismo (natural).
O pensamento indígena inverte tal distribuição. Se somos multiculturalistas, os índios são multinaturalistas: eles postulam uma unidade transespecífica do espírito e uma diversidade dos corpos. A "cultura" ou o sujeito são a forma do universal, a "natureza" ou o objeto, a forma do particular.
É frequente encontrar, na etnografia das Américas, a noção de que diversos tipos de seres -sobretudo os animais e aqueles que chamaríamos "espíritos", mas também plantas, acidentes naturais etc.- são dotados de almas idênticas à humana, o que os torna sujeitos ou pessoas. Muitas culturas indígenas sustentam ainda que os animais, por exemplo, são gente como nós, debaixo de sua aparência corporal característica, e que é assim que eles se vêem: como seres anatômica e culturalmente humanos. Em contrapartida, os animais não nos vêem como gente, mas como animais ou espíritos. Cada espécie, assim, se vê a si mesma como humana e as demais como não-humanas -o que inclui nossa própria espécie.
As perspectivas cruzadas se aplicam igualmente ao mundo dos objetos: vendo-se como humano, cada ser vê as coisas com que interage sob a espécie da cultura (humana). Uma onça lambendo o sangue de uma presa se vê bebendo cauim de milho; as antas vêem o barreiro em que se espojam como uma grande casa cerimonial, e assim por diante.
Aparentemente, portanto, uma cosmologia relativista como as que conhecemos: cada espécie representa o mundo de um modo diferente. Na verdade, trata-se do oposto: cada espécie vê tudo da mesma maneira -o ambiente das onças e das antas é povoado das mesmas coisas que o humano. O que muda é o mundo que ela vê. Não são as representações que variam, mas as coisas: não os significados, mas os referentes.
Dotadas de um mesmo tipo de alma, as diferentes espécies são dotadas dos mesmos perceptos e conceitos, da mesma cultura. O que, então, produz as diferenças de perspectiva? Por que, sendo espiritualmente humanos, os animais não nos vêem como humanos, e como os humanos, vemos? Porque uma perspectiva não é uma representação. As representações são uma propriedade do espírito, mas o ponto de vista está no corpo.
Os animais vêem da mesma maneira que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de fisiologia, mas aos afetos, afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ela come, como se move ou comunica, onde vive... O que chamo de "corpo", portanto, não é um conjunto de afecções ou modos de ser. O corpo como feixe de afecções e capacidades é a origem das perspectivas. Se concebemos uma continuidade física entre os corpos que ocupam o universo (todos compostos da mesma matéria), concebemos por outro lado uma descontinuidade metafísica: o corpo é o elemento do universal, o espírito responde pelo particular -distingue os humanos dos animais, as culturas entre si, um indivíduo do outro.
A etnografia indígena sugere o inverso: uma descontinuidade "física", corporal-afectual -nada a ver com a matéria, conceito ausente das ontologias ameríndias- e uma continuidade metafísica, espiritual, entre os seres (consequentemente, se um de nossos problemas filosóficos maiores é o de conjurar o solipsismo, sua contrapartida indígena é o de controlar o excesso de comunicação entre os humanos e as outras espécies de sujeitos do universo).
Ao nosso par universalismo natural/relativismo cultural, os índios contraporiam, portanto, o par universalismo cultural/relativismo natural: uma unidade subjetiva aplicada a uma diversidade objetiva. Uma só cultura, múltiplas naturezas.
A idéia de um universo habitado por seres dotados de uma mesma forma de autopercepção é o fundamento do xamanismo. O xamanismo ameríndio pode ser definido como a capacidade demonstrada por alguns indivíduos (os xamãs) de atravessar deliberadamente fronteiras ontológicas -entre os humanos e as outras espécies, os vivos e os mortos, a terra e o céu- e de adotar a perspectiva das outras subjetividades existentes, com o propósito de negociar com elas o resgate de almas de humanos raptadas, a liberação de corpos de animais para serem caçados etc. O xamã interage com esses espíritos animais (ou outros) como se interagisse com humanos, pois os vê como eles se vêem.
O xamanismo é um modo de conhecimento guiado por um ideal diferente daquele que nos é mais familiar. Nosso modelo epistemológico de base (perdoem-me mais esta simplificação grosseira) é orientado pela categoria do objeto: conhecer é objetivar, é distinguir, no objeto, o que lhe é inerente daquilo que pertence ao sujeito, e que foi indevida ou inevitavelmente projetado no objeto. Trata-se então de dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito no objeto para reduzi-la o quanto possível. Esse modelo se aplica ao próprio sujeito, quando este se toma como objeto de (re)conhecimento: ele se autoproduz (se reconhece) por meio do objeto que produz, e se conhece "objetivamente" quando é capaz de se ver como, justamente, um "isso". A forma do Outro é a coisa.
No xamanismo indígena, conhecer é personificar; é ser capaz de adotar o ponto de vista daquilo que se conhece, pois o conhecimento xamânico visa "algo" que tem uma perspectiva própria -um outro sujeito. A forma do Outro é a pessoa. Chamava-se isso, na tradição antropológica, de "animismo", pondo-se na conta do narcisismo primitivo e de sua incapacidade de distinguir o desejo subjetivo da realidade objetiva. Hoje parece claro que tal atitude, seja lá qual for sua base cognitiva "inata", está muito longe de ser "natural": ela mostra a positividade e a deliberação de um método. Os animais e outros seres não-humanos não são vistos espontaneamente como pessoas. É preciso saber personificá-los, e personificá-los para saber.
Note-se que o antropomorfismo indígena não poderia estar mais distante de um antropocentrismo: se muitos seres além dos humanos (para nós) são humanos (para si mesmos), então não somos assim tão especiais. Se quisermos exemplos de antropocentrismo, melhor buscá-los na tradição ocidental.
No Marx dos "Manuscritos", por exemplo: "Um animal só produz a si mesmo, ao passo que o homem reproduz o resto da natureza... Um animal forma as coisas de acordo com o padrão e as necessidades da espécie a que pertence, enquanto o homem sabe como produzir conforme os padrões de outras espécies". Os índios dizem que todos os animais são (potencialmente) humanos; Marx, que os humanos são (potencialmente) todos os animais. Quem é o narcisista?
O que vale para o conhecimento, vale para a ação. Nosso paradigma da ação é a produção, avatar antropológico da categoria bíblico-teológica da criação. O homem não apenas foi criado à imagem de Deus, mas cria à imagem deste: "produz". Depois que Deus morreu, então, ele se autoproduz à sua própria imagem. Mais uma vez, registre-se o contraste: a noção de criação, sobretudo "ex nihilo", é raramente tematizada pelas mitologias ameríndias. O processo fundamental ali é a transformação: as diferentes espécies naturais, por exemplo, são concebidas como metamorfoses de um substrato humano primordial: não é a cultura que prolonga e transcende a natureza, mas a natureza que se separa lateralmente da cultura.
Correlativamente, não é a produção e sua díade sujeito-objeto que serve de paradigma, mas a troca e sua díade sujeito-sujeito. Em lugar da série criação, produção e representação, a série transformação, troca e perspectiva.


Eduardo Viveiros de Castro é antropólogo, professor de pós-graduação no Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de "Amazônia" (Edusp) e "Arawete - Os Deuses Canibais" (Jorge Zahar Editor).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.