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XAMANISMO
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro antecipa o tema de sua palestra sobre o pensamento indígena no ciclo "A Outra Margem do Ocidente", da Funarte
Tão humanos quanto animais
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
especial para a Folha
A distinção entre corpo e alma
desempenha um papel importante
nas ontologias indígenas. Trata-se, porém, de algo diferente do
dualismo entre matéria e espírito e
das dicotomias correlatas que por
tanto tempo serviram de balizas à
reflexão ocidental: realidade e representação, fato e valor, natureza
e cultura, universal e particular
etc.
Diz-se que hoje tais balizas ruíram; teríamos ingressado em uma
era pós-dicotômica. Pode ser. Resta que nossa vulgata cosmológica
continua a veicular uma doutrina
multiculturalista, fundada na unicidade da natureza e na multiplicidade das culturas -a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos e das substâncias, a
segunda gerada pela particularidade subjetiva dos espíritos e das
representações. O relativismo
(cultural) é indissociável do universalismo (natural).
O pensamento indígena inverte
tal distribuição. Se somos multiculturalistas, os índios são multinaturalistas: eles postulam uma
unidade transespecífica do espírito e uma diversidade dos corpos. A
"cultura" ou o sujeito são a forma do universal, a "natureza" ou
o objeto, a forma do particular.
É frequente encontrar, na etnografia das Américas, a noção de
que diversos tipos de seres -sobretudo os animais e aqueles que
chamaríamos "espíritos", mas
também plantas, acidentes naturais etc.- são dotados de almas
idênticas à humana, o que os torna
sujeitos ou pessoas. Muitas culturas indígenas sustentam ainda que
os animais, por exemplo, são gente como nós, debaixo de sua aparência corporal característica, e
que é assim que eles se vêem: como seres anatômica e culturalmente humanos. Em contrapartida, os animais não nos vêem como
gente, mas como animais ou espíritos. Cada espécie, assim, se vê a
si mesma como humana e as demais como não-humanas -o que
inclui nossa própria espécie.
As perspectivas cruzadas se aplicam igualmente ao mundo dos
objetos: vendo-se como humano,
cada ser vê as coisas com que interage sob a espécie da cultura (humana). Uma onça lambendo o
sangue de uma presa se vê bebendo cauim de milho; as antas vêem
o barreiro em que se espojam como uma grande casa cerimonial, e
assim por diante.
Aparentemente, portanto, uma
cosmologia relativista como as
que conhecemos: cada espécie representa o mundo de um modo
diferente. Na verdade, trata-se do
oposto: cada espécie vê tudo da
mesma maneira -o ambiente das
onças e das antas é povoado das
mesmas coisas que o humano. O
que muda é o mundo que ela vê.
Não são as representações que variam, mas as coisas: não os significados, mas os referentes.
Dotadas de um mesmo tipo de
alma, as diferentes espécies são
dotadas dos mesmos perceptos e
conceitos, da mesma cultura. O
que, então, produz as diferenças
de perspectiva? Por que, sendo espiritualmente humanos, os animais não nos vêem como humanos, e como os humanos, vemos?
Porque uma perspectiva não é
uma representação. As representações são uma propriedade do espírito, mas o ponto de vista está no
corpo.
Os animais vêem da mesma maneira que nós coisas diversas do
que vemos porque seus corpos são
diferentes dos nossos. Não estou
me referindo a diferenças de fisiologia, mas aos afetos, afecções ou
capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ela come, como se move ou comunica,
onde vive... O que chamo de "corpo", portanto, não é um conjunto
de afecções ou modos de ser. O
corpo como feixe de afecções e capacidades é a origem das perspectivas. Se concebemos uma continuidade física entre os corpos que
ocupam o universo (todos compostos da mesma matéria), concebemos por outro lado uma descontinuidade metafísica: o corpo é
o elemento do universal, o espírito
responde pelo particular -distingue os humanos dos animais, as
culturas entre si, um indivíduo do
outro.
A etnografia indígena sugere o
inverso: uma descontinuidade
"física", corporal-afectual -nada a ver com a matéria, conceito
ausente das ontologias ameríndias- e uma continuidade metafísica, espiritual, entre os seres
(consequentemente, se um de
nossos problemas filosóficos
maiores é o de conjurar o solipsismo, sua contrapartida indígena é
o de controlar o excesso de comunicação entre os humanos e as outras espécies de sujeitos do universo).
Ao nosso par universalismo natural/relativismo cultural, os índios contraporiam, portanto, o
par universalismo cultural/relativismo natural: uma unidade subjetiva aplicada a uma diversidade
objetiva. Uma só cultura, múltiplas naturezas.
A idéia de um universo habitado
por seres dotados de uma mesma
forma de autopercepção é o fundamento do xamanismo. O xamanismo ameríndio pode ser definido como a capacidade demonstrada por alguns indivíduos (os xamãs) de atravessar deliberadamente fronteiras ontológicas
-entre os humanos e as outras
espécies, os vivos e os mortos, a
terra e o céu- e de adotar a perspectiva das outras subjetividades
existentes, com o propósito de negociar com elas o resgate de almas
de humanos raptadas, a liberação
de corpos de animais para serem
caçados etc. O xamã interage com
esses espíritos animais (ou outros)
como se interagisse com humanos, pois os vê como eles se vêem.
O xamanismo é um modo de conhecimento guiado por um ideal
diferente daquele que nos é mais
familiar. Nosso modelo epistemológico de base (perdoem-me mais
esta simplificação grosseira) é
orientado pela categoria do objeto: conhecer é objetivar, é distinguir, no objeto, o que lhe é inerente daquilo que pertence ao sujeito,
e que foi indevida ou inevitavelmente projetado no objeto. Trata-se então de dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito no objeto
para reduzi-la o quanto possível.
Esse modelo se aplica ao próprio
sujeito, quando este se toma como
objeto de (re)conhecimento: ele se
autoproduz (se reconhece) por
meio do objeto que produz, e se
conhece "objetivamente" quando é capaz de se ver como, justamente, um "isso". A forma do
Outro é a coisa.
No xamanismo indígena, conhecer é personificar; é ser capaz de
adotar o ponto de vista daquilo
que se conhece, pois o conhecimento xamânico visa "algo" que
tem uma perspectiva própria
-um outro sujeito. A forma do
Outro é a pessoa. Chamava-se isso, na tradição antropológica, de
"animismo", pondo-se na conta
do narcisismo primitivo e de sua
incapacidade de distinguir o desejo subjetivo da realidade objetiva.
Hoje parece claro que tal atitude,
seja lá qual for sua base cognitiva
"inata", está muito longe de ser
"natural": ela mostra a positividade e a deliberação de um método. Os animais e outros seres
não-humanos não são vistos espontaneamente como pessoas. É
preciso saber personificá-los, e
personificá-los para saber.
Note-se que o antropomorfismo
indígena não poderia estar mais
distante de um antropocentrismo:
se muitos seres além dos humanos
(para nós) são humanos (para si
mesmos), então não somos assim
tão especiais. Se quisermos exemplos de antropocentrismo, melhor
buscá-los na tradição ocidental.
No Marx dos "Manuscritos",
por exemplo: "Um animal só produz a si mesmo, ao passo que o
homem reproduz o resto da natureza... Um animal forma as coisas
de acordo com o padrão e as necessidades da espécie a que pertence, enquanto o homem sabe
como produzir conforme os padrões de outras espécies". Os índios dizem que todos os animais
são (potencialmente) humanos;
Marx, que os humanos são (potencialmente) todos os animais.
Quem é o narcisista?
O que vale para o conhecimento,
vale para a ação. Nosso paradigma
da ação é a produção, avatar antropológico da categoria bíblico-teológica da criação. O homem
não apenas foi criado à imagem de
Deus, mas cria à imagem deste:
"produz". Depois que Deus morreu, então, ele se autoproduz à sua
própria imagem. Mais uma vez,
registre-se o contraste: a noção de
criação, sobretudo "ex nihilo", é
raramente tematizada pelas mitologias ameríndias. O processo fundamental ali é a transformação: as
diferentes espécies naturais, por
exemplo, são concebidas como
metamorfoses de um substrato
humano primordial: não é a cultura que prolonga e transcende a natureza, mas a natureza que se separa lateralmente da cultura.
Correlativamente, não é a produção e sua díade sujeito-objeto
que serve de paradigma, mas a
troca e sua díade sujeito-sujeito.
Em lugar da série criação, produção e representação, a série transformação, troca e perspectiva.
Eduardo Viveiros de Castro é antropólogo,
professor de pós-graduação no Museu Nacional
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor
de "Amazônia" (Edusp) e "Arawete - Os Deuses
Canibais" (Jorge Zahar Editor).
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