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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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+ brasil 504 d.C.

RELAÇÃO CENTRO-PERIFERIA DETERMINA LUGAR DO FORASTEIRO NA ORDEM MUNDIAL E MINIMIZA VARIANTES SOCIOECONÔMICAS

A TERRA NÃO É REDONDA

Luiz Costa Lima

A partir das últimas décadas do século 20, tornou-se frequente a referência à globalização do mundo. Embora a expressão originalmente tivesse um significado apenas econômico, logo assumiu maior extensão: também à cultura se propiciaria um alcance global. Antes mesmo de a questão estar bem divulgada, um posicionamento positivo era exposto, em 1993, por Carlos Rincón, ensaísta colombiano e professor na Alemanha: "Na América Latina, o fenômeno de maior relevância cultural nos anos 1980 foi a mudança na vida social provocada pela introdução de novas tecnologias eletrônicas nos "mass media" (...). Ao mesmo tempo, as sociedades latino-americanas eram percebidas como parte de um mercado cultural no processo de industrialização e globalização. (Daí) o surgimento de culturas urbanas sem memória territorial, agora diretamente enlaçadas aos meios audiovisuais". A aludida reconfiguração provocaria duas consequências: (a) enquanto fundada na idéia de unidade, "a nação é um modelo social que simplesmente não se adapta aos começos do século 21"; (b) "em nossos dias, o tradicional e o moderno já não são opostos entre si e a divisão entre alta cultura, cultura popular e cultura industrial (como categorias exclusivas e fechadas) não tem sentido". Tais mudanças ensejariam uma mais séria: a oposição entre centro e margens -cujo cume coincidira, entre o final do século 19 e o começo do 20, com o alto modernismo- teria perdido a validez, as "correntes do capital cultural" pondo no mesmo nível as produções culturais quer do centro, quer das margens.

Otimismo descabido
As conclusões parecem demasiado apressadas, sobretudo quando seu autor afirma a ultrapassagem da oposição entre alta cultura e meios audiovisuais. Essa oposição, diria de minha parte, assume significados diversos, conforme a encaremos do ponto de vista do centro ou da periferia. No centro, a chamada alta cultura mantém condições de produção e circulação; na periferia, sua sobrevivência se torna cada vez mais rala, arrastada pelo arruinamento das instituições universitárias. O otimismo de Rincón é descabido: a desarticulação de uma cultura exclusivamente letrada provocou, na verdade, uma relativa abertura para a produção cultural das margens -os exemplos básicos de Rincón são os romances de García Márquez e a telenovela brasileira. Mas o resultado é paradoxal: ao passo que a facilidade dos meios de reprodução permite que um membro da alta cultura -a ficção de García Márquez- passe a estimular a ficção de centro e periferia, na própria periferia o estímulo se concentra no cinema comercial, que explora a la Hollywood as misérias locais, o romance documental e os seriados da TV. A mudança tecnomercadológica apenas parcialmente reconfigura a oposição entre centro e periferia. Quanto às manifestações de alta cultura na área periférica, as debilita e ameaça reduzi-las à insignificância. Para testar a refutação, parto de um pequeno ensaio do sociólogo Alfred Schütz. Em "The Stranger" (1944), ele se propunha como questão: que peculiaridade apresenta a conduta do forasteiro que procura interpretar o padrão cultural de um grupo outro a que tenta se integrar? Para Schütz, o forasteiro se depara com a exacerbação do que cada homem encontra no cotidiano. Neste, somos guiados por padrões incoerentes, só parcialmente claros e não isentos de contradições. Assim sucede porque o indivíduo comum não está interessado em buscar a verdade e em se indagar pelo que seria certo. "Como pai, cidadão, empregado, membro de uma igreja, o indivíduo pode ter as opiniões mais diversas e incongruentes, em matéria de moral, política e economia." Na vida cotidiana, o homem tem por meta "pensar (e agir) como sempre se fez". O que significa tentar conservar o estoque de "receitas" a que, desde que possível, sempre recorrerá. A dificuldade então que o forasteiro encontra resulta de seu receituário não se ajustar ao do grupo outro. "Como túmulos e lembranças não podem ser transferidos nem conquistados", estabelece-se um hiato inelutável entre o forasteiro e o grupo outro. A situação ainda seria contornável se as "receitas" próprias e alheias pudessem ser traduzidas em palavras. Isso é impossível, pois as palavras do "receituário" integram molduras ("frames"), isto é, têm uma coloração afetiva que os dicionários não consignam. Eis a dificuldade que o forasteiro só vencerá ao substituir as suas pelas receitas do grupo a que então terá se integrado. O calcanhar-de-aquiles que encontro em "O Forasteiro" está em o autor não considerar de onde vem o forasteiro e em que lugar se encontra o grupo outro. Afirmar o dilema do forasteiro sempre idêntico equivale a considerar que a terra, de fato, é redonda. Socialmente, não o é. Há de se distinguir se o forasteiro e o grupo outro pertencem a uma sociedade central ou periférica. Simplifiquemos ao máximo a reflexão, perguntando-nos não sobre a atitude do eventual forasteiro, mas pelas expectativas do grupo outro quanto a alguém ou um produto de fora. A mudança de ótica então permite que se trate de lugares centrais ou periféricos. Definimos um lugar como central ou periférico em razão de duas variáveis: (1) trata-se ou não de um lugar integrado a uma situação socioeconomicamente estável; (2) da qual decorre um sentimento de confiança ou insegurança diante de seus valores e "receitas".

Conquistas intelectuais
Ainda que fosse preciso pensar a relação entre as duas variáveis, limitemo-nos a dizer que (2) não é um mero corolário de (1). Como nos mostraria o exame da Alemanha durante a República de Weimar (1918-1933), pode faltar a estabilidade socioeconômica sem que se abale o sentimento de confiança. Em Weimar, este se mantinha com base nas conquistas intelectuais passadas, que então alimentavam a extraordinária inventiva do período. Por mais delicado que seja o exame das relações entre as duas variáveis, temos de nos contentar com essa explicação tosca. Distingamos pois como se caracterizariam a produção e a recepção culturais a partir de um lugar central.
Para alguém que cresceu e se formou em um lugar central, a socialização se processa sob a confiança na eficácia das molduras internalizadas. O que vale dizer, para o indivíduo central as "receitas" e os valores aprendidos podem ser empregados sem discussão. Daí resulta a primeira maneira de operar no cotidiano, quer com os outros membros do mesmo grupo, quer com os estranhos.
Essa maneira, no limite, se caracteriza pela automatização das receitas-moldura. Ela se atualiza pela suposição de que, em todas as partes do mundo, lhes será suficiente o uso de sua língua e o reconhecimento da qualidade de seus padrões de conduta e apresentação. As redes de turismo respondem à expectativa de seus clientes e oferecem "resorts" a tal ponto duplicadores dos critérios de excelência que, se tudo funcionar bem, no fim das férias o cliente terá a sensação de haver viajado sem viajar. A automatização da conduta provoca o resultado paradoxal da neutralização da diferença: a mesmidade do mundo. Isso vale tanto para turistas como para scholars. A segunda maneira de atuação do agente central é radicalmente distinta. E já não poderá ser integrada no conceito de "receita". Seja por efeito do etos da atividade exercida, seja por vicissitudes de sua biografia, o agente central se torna consciente do significado de suas respostas automatizadas. Sofre o que se poderia chamar uma epifania leiga. Em vez de automatização, teremos uma conduta caracterizada pela exploração dos limites dos valores internalizados. Seria aqui interessante exemplificar com "Morte em Veneza" (1912), de Thomas Mann. Limitemo-nos a notar: ameaçado de impotência, Aschenbach abandona o reconhecimento que o cerca e se lança contra as molduras que reprimiam sua homossexualidade. Para isso, escolhe um lugar de risco: Veneza, com suas águas pantanosas. Lê-se mal a atração dionisíaca que sofre, sem tampouco renunciar à interdição de uma proximidade física maior com o jovem Tadzio, se a interpretamos como marca do esteticismo do autor.


Em um só exemplo, temos comprovada a imitação dos periféricos e a manutenção de receitas automatizadas por um pensador do porte de Adorno


Exploração dos limites
Escolhendo não fugir da peste que assola a cidade, o protagonista ratifica sua opção por eros, ao mesmo tempo em que impede que a assunção de eros transtorne sua identidade "legalizada". Ou seja, explora os limites do valor atribuído à identidade sexual sem que deixe de respeitá-la. Há exploração de limites, e não o seu transtorno. Mas a exploração pode ser muito mais radical. Joyce ou Beckett seriam seus protótipos. A exploração mais extrema sempre mantém alguma parcela do estabelecido. Pois, como logo veremos, é essa manutenção de parte dos valores estabelecidos que distingue a exploração de limites da atitude correspondente do agente periférico. Venhamos então a este. Também aqui se assinalam duas atitudes opostas. Na negativa, o agente periférico, marcado pela insegurança ante seus próprios valores e "receitas", se define pela tendência à imitação, isto é, pela admissão de que traz consigo um traço de inferioridade. Dois exemplos. Na "Minima Moralia" [ed. Ática], Adorno notava, entre os estudantes negros de economia em Oxford e nos historiadores da arte e musicólogos de extração pequeno-burguesa, a tendência de unir o novo com "um imoderado respeito pelo estabelecido". Tão importante quanto a observação é, entretanto, o título que dava ao item: "Os Selvagens Não São Homens Melhores". E por que haveriam de sê-lo, nos perguntamos, salvo para aqueles que mantêm estável a crença no homem natural de Rousseau? Em um só exemplo, temos comprovada a imitação dos periféricos e a manutenção de receitas automatizadas por um pensador do porte de Adorno. O segundo exemplo abre outro horizonte. Em suas memórias, "Out of Place" [Fora de Lugar, ed. Vintage, 2000], Edward Said conta sua educação no Cairo. Como seu pai era um palestino com passaporte norte-americano e a família pertencia à burguesia de dinheiro, o jovem Edward podia frequentar as escolas britânica e norte-americana. As brigas físicas em que entrava com os colegas seriam normais em sua idade se os adversários não fossem filhos de ingleses, de norte-americanos, de canadenses. Em certa parte, narra uma dessas desavenças. O adversário, um menino belgo-americano, ganhava dele e Edward estava a ponto de desistir. Nesse momento, porém, ouve um dos espectadores, que lhe adverte que o adversário já não se aguenta. Edward o escuta, reage e ganha. O que importa é a reflexão feita mais tarde por Said: "A sensação completa que tive foi de minha identidade mal-ajustada como americano, dentro da qual se ocultava a identidade árabe, de que não tirava força, mas sim aturdimento e mal-estar". A figuração da dupla identidade é preciosa. Seu reconhecimento por Edward o abria para a insegurança e daí para a adoção de uma conduta imitativa. Mas, conhecendo o leitor o que caracterizaria o Said adulto -a comprometer-se e participar ativamente, como professor de uma universidade norte-americana, da luta palestina-, nos é possível antecipar que a atitude negativa, imitativa, não é a única entre os periféricos. Chamamos a seu oposto explosão de limites.

Revoluções incompletas
Como a explosão e exploração de limites se distinguem? Adiantemos: se automatização e imitação, como atitudes negativas, ainda podem ser equiparadas, a explosão e a exploração de limites assinalam com força a assimetria das duas posições e, portanto, dos dois lugares. Enquanto a exploração de limites oferece a seu agente um marco de segurança, a possibilidade de manter o pé em terra firme, a explosão de limites supõe a constante descontinuidade, a necessidade de sempre partir do ponto zero. Prova-o Sérgio Buarque ao dizer, já em 1940, que "nossa literatura até aqui tem evoluído menos por progressão contínua do que por meio de revoluções periódicas".
E o que são revoluções contínuas senão revoluções que não se completam, que mutuamente se destroem, cuja herança é o acúmulo de ruínas? Forçado pela insegurança que o rodeia, tentado ao mesmo tempo que distanciando-se da imitação praticada pela maioria, o agente que explode os limites paga com a própria pele sua ousadia: seu reconhecimento ou é postergado ou depende de que venha de fora de um lugar central. Em qualquer dos casos, tende a ser facilmente esquecido sob o nome de "precursor".
Habitantes de um continente periférico, nossa primeira obrigação é reconhecermos a assimetria que nos condiciona. Depois desse reconhecimento, começa a tarefa mais difícil: combatê-la.Ou ainda pensamos que ela se resolverá por soluções econômicas?!

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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