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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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PONTO DE FUGA

O acordar dos monstros

Jorge Coli
especial para a Folha

A arte talvez seja mesmo o sono e o sonho da razão. Determinantes racionais são suportes necessários para fabricar o quadro, o poema, a sinfonia ou o que mais seja. Mas, como queriam Delacroix e Baudelaire, a matéria real das artes é o imaginário. Vem de uma galáxia onde é possível dizer o indizível, o escuso, o obsceno, o angustiado. Românticos, e surrealistas depois deles, revelaram a força de realidade do irreal, do sobre-real.
Nos anos de 1980, o cinema trouxe inquietações fortes numa série que renovou de forma até um certo ponto involuntária e num gênero nada intelectual o legado do surrealismo. Não importa a qualidade diversa de cada filme: no seu conjunto, "A Hora do Pesadelo" embutiu a morte nos sonhos e criou esse Freddy Krueger, tremenda figura paterna do mal, como o M, de Fritz Lang, mas um vampiro de Düsseldorf muito mais poderoso. Vive dentro de cada jovem, lacerando-os todos com suas garras de aço. Condena-os à vigília, já que o único modo de vencê-lo é não sonhar, para não libertar seus poderes.
Nesse mesmo período, "Sexta-Feira 13", uma outra série, fazia com que Jason Voorhees, criança disforme, vítima da crueldade de seus pequenos colegas e da opressão materna, se tornasse um matador sobrenatural, incansavelmente ressuscitado. O tom era, algumas vezes, meio avacalhado: uma espécie de chanchada "gore", mas com vigor truculento.
Freddy Krueger foi incendiado; Jason afogou-se. Um está sob o signo do fogo e do pai, o outro, da água e da mãe. Um, no campo dos adultos, outro, no da infância. Ambos se prendem à fragilidade adolescente.

Hypnocil - O perverso Freddy, magro, ágil e tagarela, engenhoso nos seus requintes, até agora fizera apenas 38 vítimas. Jason, máquina assassina muda e brutal, chegara a 128. Jason, porém, é o mais doloroso: pesadão, com a máscara de hóquei escondendo sua feiúra, é movido por uma força que se encontra além dele.
"Jason e Freddy, tão século passado tudo isso", escreveu um crítico americano. Uni-los num mesmo filme é uma tentativa de recuperar a fama antiga, em maneira não muito diversa dos últimos "Homem-Aranha" ou "Hulk". São celebridades de outros tempos, mas mitologias ainda vigorosas. Ronny Yu dirigiu essa parceria. Em 1998, ele havia conseguido dar uma nova dinâmica divertida ao boneco assassino Chucky com "A Noiva de Chucky". "Freddy vs. Jason" tem humor mais discreto.
Freddy é um íncubo, vive na memória apavorada; como fora esquecido por todos, busca servir-se de Jason para instaurar de novo o terror: metáfora do próprio filme, querendo ressuscitar os dois velhos sanguinários. Há nele um certo tom de homenagem e invenções oníricas que se embebem de verdadeira poesia surreal. Parece carregar toda a culpa do mundo, culpa indistinta, mas espessa e abominável, que os adultos querem ocultar pelo esquecimento, dopando os jovens. O filme ensina, porém, a insistente persistência dos horrores.

Rave - "As Regras da Atração", de Roger Avary, é como um "slasher movie" que não precisasse de assassinos monstruosos. Os jovens estudantes estão lá, e eles se bastam enquanto abominações. São vítimas e carrascos de si mesmos. Apresenta um fundo melodramático e moralista e um estilo de série TV, mas ainda, com convicção deprimente, uma sordidez suicida.

Relógio - Em "As Regras da Atração", o tempo parece se apagar nas cenas que são mostradas em sentido inverso; por exemplo, uma cusparada volta para a boca. "Irreversível", de Gaspar Noë, é montado ao contrário, os episódios seguem do fim para o começo, sublinhando que o tempo não se apaga. Como num teorema às avessas, a escalada para o início demonstra as razões para a vingança brutal que abre a narração.
Velada por uma luz imprecisa, a cena de violência furiosa, que escandalizou tanto, não vai mais longe do que as de um Freddy ou Jason. Muito mais insustentável é o longo estupro, visto com uma calma imóvel e descritiva. O sentimentalismo dos motivos, embalado em atmosfera idílica, não anula, por sorte, o impulso animal que impregna as energias do filme.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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