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Preto básico
ANTROPÓLOGO CONDENA A ADOÇÃO DO MODELO DE RAÇAS IMPORTADO DOS ESTADOS UNIDOS, QUE SIMPLIFICA A REALIDADE BRASILEIRA NA OPOSIÇÃO PRETO/ BRANCO, E DIZ QUE DESIGUALDADES SOCIORRACIAIS "NÃO SE RESOLVEM NA CAMA"
Não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas os que pertencem a um determinado segmento racial
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FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Nos 16 ensaios reunidos em "A Utopia Brasileira e os
Movimentos Negros" (ed. 34, 440
págs., R$ 54), Antonio Risério
fornece munição de sobra aos
detratores das políticas de ação
afirmativa. Seu foco não é exclusivamente o debate em torno da política de cotas para negros nas universidades públicas ou do Estatuto da Igualdade Racial mas qualquer tentativa de importar categorias ou políticas raciais estranhas ao
contexto brasileiro.
Risério dedica boa parte do
livro ao exame do racismo nos
EUA e identifica no discurso
militante nacional o empenho
em transplantar os mesmos
princípios. "Os EUA são o único país do mundo em que o filho de um preto e de um branco
é classificado como negro. A
importação desse modelo dicotômico falsifica a realidade brasileira", diz.
A raiz da diferença, segundo
o antropólogo e escritor, está
na mestiçagem. Num país onde
a parcela mais expressiva da
população se considera "morena", as políticas de ação afirmativa assentadas sobre categorias binárias cairiam no vazio.
Mas não se trata de mais um
elogio ao mito da democracia
racial. Risério guarda prudente
distância das diluições do pensamento do antropólogo Darcy
Ribeiro, faz distinção entre
mestiçagem e harmonia social,
reconhece a existência de racismo no Brasil e estabelece
um diálogo cerrado com a bibliografia teórica recente, numa prosa que mistura a prolixidade tropicalista à minúcia do pesquisador acadêmico.
Na entrevista a seguir, Risério discorre com mais vagar sobre as linhas de força do livro.
FOLHA - Há algumas semanas, o
Prêmio Nobel James Watson afirmou que os negros são menos inteligentes que os brancos. Poucos meses antes, geneticistas foram à mídia dizer que não existe raça pura,
visto que o ser humano é composto
de genes de origem mais diversa do
que se acreditava. Como avaliar essas linhas de raciocínio? Até que
ponto a ciência pode ser um prisma
eficiente para pensar o preconceito?
ANTONIO RISÉRIO - Falamos de
"raça" para designar grupos relativamente homogêneos, em
suas características físicas externas transmitidas. E o conceito circula, tanto por necessidade quanto por astúcia, no campo das reflexões políticas,
culturais, ideológicas. Quanto a
Watson, cientistas não são
científicos 24 horas por dia
-alguns são músicos, outros
vão à missa.
E a ciência, historicamente,
além de templo da objetividade
é também um espaço de disputas e negociações. O que não se
deve é pretender bloquear pesquisas que contrariem nossas
posturas ideológicas.
É um absurdo, por exemplo,
ver comissários do racialismo
neonegro, no Brasil, se enfurecerem com o geneticista Sérgio
Pena [que pesquisa a ancestralidade africana da população].
Se esses comissários tivessem poder, fechariam o laboratório de Pena, pelo simples fato
de que ele contraria o decreto
ideológico neonegro de que
inexistem mestiços no Brasil.
Acho que o melhor "prisma"
para pensar o preconceito ainda está na antropologia, mas
não vejo a antropologia como
uma ciência.
FOLHA - Na introdução, o Brasil
aparece como o país "mais e menos
racista do mundo", simultaneamente. Poderia explicar?
RISÉRIO - É uma boutade, evidentemente. Mas não está distante da verdade. Disparo a frase para desarmar discursos automatizados e chamar a atenção para a especificidade de
nossas experiências históricas,
sociais e culturais.
A situação brasileira é paradoxal. Conseguimos, ao longo
dos séculos, construir espaços
do mais genuíno convívio inter-racial -e não apenas entre
brancos e pretos mas também
entre árabes e judeus. Ao mesmo tempo, o racismo é onipresente. Temos, simultaneamente, as duas coisas. E, às vezes, manifestando-se contraditoriamente numa mesma pessoa.
FOLHA - Segundo os critérios norte-americanos, quase a totalidade
da população brasileira seria negra,
daí a importância de enfatizar a
mestiçagem, que seria o traço dominante no Brasil. Mas isso não equivale a negar a associação entre condição social e cor da pele? Essa não é
uma relação verificável no Brasil?
RISÉRIO - Não, não equivale a
negar nada. Existe uma coincidência entre fenótipo e lugar
econômico, tanto no Brasil
quanto nos EUA. A maioria dos
mestiços mais escuros, dos pretos, ocupa o porão da sociedade
brasileira. Vive mal, ganha pouco, não tem acesso aos serviços
públicos mais elementares.
Mas não devemos confundir
as coisas. A mestiçagem é um
processo biológico e cultural,
não um mecanismo de redução
das distâncias sociais. Não implica a localização do indivíduo
neste ou naquele ponto da hierarquia social.
O problema das desigualdades sociorraciais jamais se resolveu ou se resolverá na cama.
Essas disparidades exigem,
para a sua superação, não um
incremento de mesclas genéticas, mas crescimento econômico, investimentos em educação, equalização de oportunidades, aumento da oferta de
empregos. São questões que dizem respeito a ordens distintas
de coisas.
FOLHA - O sr. diz que os negros no
Brasil são todos mestiços -e que a
mestiçagem é um processo tão
abrangente e irreversível quanto ignorado pelo discurso racialista. Essa
visão não corre o risco de alimentar
o mito da democracia racial?
RISÉRIO - De modo nenhum.
Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra
coisa são as ideologias da mestiçagem. No passado, a mestiçagem brasileira ganhou leituras mistificadoras, senhoriais.
Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco
primário: em vez de rediscutir a
questão, resolveram eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua
deixou de existir. Mas continuamos mestiços. E a mestiçagem não é indestacável da fantasia da "democracia racial".
Recusar-se a usar a noção é
como se recusar a falar de "raça", por conta do uso que os nazistas deram ao conceito, combatendo ferozmente, aliás, a
mestiçagem.
Se não entendermos nossas
misturas, genéticas e simbólicas, não entenderemos a nós
mesmos. E é bom sublinhar
que mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o
conflito nem a discriminação.
A melhor prova disso é o próprio Brasil.
É preciso
abolir o instituto da herança para que as pessoas possam, de fato, ter igualdade de oportunidades
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FOLHA - O sr. se diz "não exatamente contra as cotas". Tendo em
vista a virulência das críticas destinadas às políticas "racialistas", o
que sobraria de positivo nelas?
RISÉRIO - Os pobres, no Brasil,
não são todos pretos. Há pobres
de todas as cores. Não temos o
direito de privilegiar, em meio
às massas pobres do país, apenas os que pertencem a um determinado segmento racial.
Isso não tem nada a ver com
democracia ou justiça social,
mas com o sentimento de culpa
das elites branqueadas, o poder
de pressão dos movimentos negros e a excessiva reverência do
poder diante das "minorias".
O Brasil pode tomar duas atitudes para resolver os
problemas da educação e do
acesso ao mercado de trabalho.
De uma parte, realizando investimentos maciços em educação, porque o sistema educacional brasileiro não merece o nome de "sistema", e é preciso
fazer um esforço muito grande
para tentar aceitá-lo como
"educacional".
De outra, abolindo o instituto da herança, para que as pessoas possam, de fato, ter igualdade de oportunidades. Com a
vigência da herança, já nascemos desiguais.
FOLHA - A abolição da herança não
lhe parece uma solução mais controversa que a das cotas?
RISÉRIO - Como a ambição
transformadora é muito maior
do que a da mera adoção de cotas raciais, o problema é bem
mais complexo. A herança significa a transmissão hereditária de vantagens sociais e econômicas.
Logo, é determinante na definição de mais oportunidades.
Quem nasce em família pobre
já vem ao mundo em desvantagem, com a perspectiva de poucas oportunidades na vida.
Dinheiro de heranças, em
vez de premiar indivíduos pelo
simples fato de terem nascido
em famílias ricas, poderia ser
investido em função de necessidades coletivas, nos campos
da saúde e educação, por exemplo. E sem privilegiar nenhum
segmento social ou racial.
FOLHA - O livro faz um exame detalhado do racismo nos EUA. Em que
pese o emprego do racismo de Estado no passado recente, hoje a situação nos EUA, pelo menos no que diz
respeito ao acesso ao mercado de
trabalho, não é mais favorável aos
negros do que no Brasil?
RISÉRIO - A vida não começa
nem termina no mercado de
trabalho. Pense, por exemplo,
no assassinato espiritual dos
africanos nos EUA. Se tivesse
acontecido no Brasil e em Cuba
o que aconteceu nos EUA, não
teríamos hoje um só orixá em
toda a vastidão territorial das
Américas.
Ainda assim, devo lembrar
que os EUA são mais ricos que o
Brasil, e não é surpresa que os
pretos de lá tenham uma situação trabalhista melhor do que a
dos pretos daqui. Mas os EUA
são também a mais desigual de
todas as democracias ricas do
planeta. A pobreza que lá existe
é, basicamente, pobreza preta.
Os pretos norte-americanos
podem ter mais acesso ao mercado de trabalho. Mas a questão do mercado é superável. A
destruição cultural, não.
Os EUA são o único país do mundo em que o filho de um preto e de um branco é classificado como negro
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FOLHA - A importação do discurso
norte-americano, apesar do binarismo e da inadequação ao contexto
brasileiro, não pode contribuir para
intensificar a discussão em torno de
um problema que está longe de ser
equacionado? Não faltam marcos
jurídicos no Brasil capazes de reduzir
o fosso entre negros e brancos?
RISÉRIO - Não aposto na obsessão ianque em "marcos jurídicos". E sei que discursos não
precisam ser corretos para ter
repercussão na vida de uma sociedade. O discurso do movimento estudantil, na década de
1960, passava ao largo do movimento real da vida brasileira,
mas agitou o país.
Já o discurso racialista acaba
dando voz a enormes carências
sociais das massas negromestiças. Mas tenta enfiar a riqueza
cromática brasileira na camisa-de-força do binarismo norte-americano. Os EUA são o único
país do mundo em que o filho
de um preto e de um branco é
classificado como negro. Em
que uma poderosa fantasia racista não reconhece a existência de mestiços.
E a importação desse modelo
dicotômico falsifica a realidade
brasileira. A experiência histórica de um povo não pode ser
substituída pela experiência
histórica de outro. E a transformação da sociedade brasileira
não tem de passar, necessariamente, por linhas étnicas rígidas. Precisamos pensar o Brasil
por nossa conta e risco.
FOLHA - É marcante no livro a oposição à idéia, defendida por parte do
discurso universitário brasileiro, de
que só faz sentido falar em "cor" no
interior das ideologias raciais. Por
que faz mais sentido falar em cor do
que em raça?
RISÉRIO - Os ideólogos racialistas abrem fogo contra o modelo
brasileiro de classificação racial, com todos os seus muitos
matizes. Acham que o nosso
critério de "cor" é mistificação
e que o critério norte-americano de "raça" -que considera
negro todo indivíduo que, por
mais claro que seja, tenha uma
gota de sangue negro- é objetivo, científico. Mas é científica
uma classificação que atropela
o fato biológico em nome de
uma fantasia ideológica essencialmente racista?
No início da história brasileira, tivemos uma classificação
binária. Mas ela foi superada e
logo passamos a reconhecer a
existência de híbridos. É interessante, aliás, que negromestiços norte-americanos estejam
fazendo agora um percurso inverso ao de nossos ideólogos e
militantes neonegros: reivindicando o reconhecimento de sua
birracialidade, aproximando-se do modelo brasileiro.
FOLHA - É forte no livro a crítica à
"alienação universitária". Mas a
maior parte dos autores de que o sr.
se vale para embasar seus argumentos são também acadêmicos. A que
parcela do meio universitário o sr.
dirige seus reparos?
RISÉRIO - Aos arautos do racialismo neonegro. Eles simplesmente voltaram as costas ao
que aconteceu e acontece no
Brasil, submetendo-se, por motivos nem sempre confessáveis,
ao jugo mental de uma certa
faixa militante e discursiva do
mundo universitário norte-americano.
Para esses norte-americanos
e suas crias locais, os EUA são o
modelo e a medida de tudo. A
visão multicolorida que o Brasil
tem de si mesmo é coisa do passado. O país tem de delimitar
com nitidez seus campos raciais. O que é moderno e desejável, para eles, não é a hibridez
ou a variabilidade, mas a polarização, o dualismo tão característico do pensamento puritano, com seu horror a misturas.
Mulatos e morenos aparecem, assim, como miragens
ideológicas reacionárias e mesmo racistas. Não há lugar para
eles no mundo sonhado pelos
racialistas.
E isso, na minha opinião, é
puro, simples e rasteiro capachismo mental, ameaçando
transformar a universidade
brasileira num McDonald's de
sanduíches conceituais alheios,
servidos na bandeja dos "civil
rights" [direitos civis, liberdade
civil], numa mescla de desajuste, alienação e ignorância.
FOLHA - No prefácio ao livro,
Eduardo Giannetti defende a instituição de uma política igualitária
"visando a democracia racial como
valor a ser perseguido, e não como
fato". Isso não é apenas uma maneira branda de rechaçar qualquer mudança efetiva no quadro social?
RISÉRIO - Muito pelo contrário.
O que se propõe é muito mais
profundo e radical do que o
atual "racialismo de resultados", com suas reivindicações
por cotas, melhores salários,
mais empregos na burocracia
estatal etc. Sabemos muito
bem que não vivemos numa democracia racial. Longe disso.
Mas podemos e devemos lutar para um dia chegar lá. Para
fazermos com que o mito se encarne na história, instaurando
uma verdadeira democracia racial no país. Como ensinava
Florestan Fernandes [1920-95], a meta de uma democracia
social, transcendendo todas as
barreiras étnicas, é o ideal mais
elevado que uma coletividade
pode propor a si mesma.
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