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Ponto de Fuga
Os anos passam
O Masp não tem um programa
sério de restaurações; suas obras-primas são reparadas ao acaso de circunstâncias e doadores
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
2009, ano França-Brasil,
como foi chamado. No
que concerne à cultura,
houve, nesse quadro, realizações desconjuntadas e soltas,
sem planificação no todo. Algumas foram relevantes. Entre
elas, as óperas francesas de
Manaus, bem realizadas, embora verbas prometidas tivessem sido cortadas na última
hora, obrigando à supressão
das admiráveis e raras "Le
Cid", de Massenet, e "Diálogo
das Carmelitas", de Poulenc.
Outras realizações foram pífias. Na lista heteróclita, que
vai do bom ao pior e ao insignificante, está, porém, um acontecimento maior e duradouro:
a restauração do "Hymenaeus
Travestido durante Um Sacrifício a Príapo", tela prodigiosa de
um mestre imenso: Nicolas
Poussin [1594-1655].
Foco central na pintura do
século 17, Poussin inventa, nesse quadro de grandes dimensões, uma guirlanda de braços
femininos, em que os cotovelos
e as mãos criam articulações.
São ângulos que pairam com
leveza no ar. Estrutura e dança,
paradoxo do movimento imóvel.
Em tal arte, não existe a miragem de contemplações fugidias,
mas a certeza de ritmos puramente visuais, ordenados e estáveis. A obra pertence ao Masp,
em São Paulo e, até recentemente, esteve num triste estado, recoberta por repintes antigos, e
por melancólicos véus, tristes
camadas de vernizes superpostas ao longo dos séculos.
Lápis-lazúli
O Poussin do Masp permitia,
antes, perceber o equilíbrio de
uma concepção mental inserindo-se na visualidade.
Mas era impossível conhecer
o sentimento da cor que possui.
Ele se revelou depois da restauração.
A superfície pintada brilha
agora com uma rutilante autoridade, firme e intensa, aderindo aos volumes. Pontua de laranjas, verdes, vermelhos e
azuis, suntuosos, os tempos
fortes. A obra se oferece aos
olhos com o rigor da arquitetura e da música.
A luz está presente sem enfraquecer os volumes, os planos
são respeitados sem que a tonalidade geral se perca, e a harmonia do conjunto brota de notas
cromáticas, intensas.
A mão é leve, a matéria está
presente, mas sem peso. Nem
profusão, imprecisão ou virtuosidade, mas ordem e escolha. Nenhuma nervosidade, nenhum deixar por conta, nenhuma improvisação. O que não
significa fórmula convencional
ou frieza de teórico estéril; tudo
é invenção, tudo é engenho e
descoberta, mas tudo é clássico,
num sentido muito singular,
muito individual, nesse século
17 ofuscado pelas aparências da
teatralidade.
Seria possível aplicar a Poussin a frase que Focillon escreveu sobre Cézanne: obsessão
do eterno na fantasmagoria dos
fenômenos.
Miséria
Há mais de 50 anos nas coleções do Masp, o "Hymenaeus"
de Poussin está enfim visível,
graças à faina de Regina Moreira, restauradora brasileira que
trabalha no Louvre.
Graças também a 200 mil
de patrocinadores, segundo
disseram os jornais; 200 mil
para governos, políticos e ricaços não é nada. Mas foi preciso
esperar o ano França-Brasil
chegar para que o quadro fosse
restaurado.
Tardança
O Masp não tem um programa sério de restaurações. Suas
obras-primas são reparadas ao
acaso de circunstâncias e doadores. Assim, dorme nas reservas, em mau estado, um tondo
crucial do Renascimento, "A
virgem, o Menino e São João".
Obra altíssima de Piero di
Cosimo, ela foi citada por Vasari, estudada por Ragghianti,
Longhi e Zeri, ou seja, por alguns dos historiadores máximos das artes. Aguarda um ano
Itália-Brasil, se isso existir alguma vez.
Então, quem sabe, algum industrial, algum banqueiro lhe
venha em socorro.
jorgecoli@uol.com.br
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