São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 2010

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Ponto de Fuga

Os anos passam


O Masp não tem um programa sério de restaurações; suas obras-primas são reparadas ao acaso de circunstâncias e doadores


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

2009, ano França-Brasil, como foi chamado. No que concerne à cultura, houve, nesse quadro, realizações desconjuntadas e soltas, sem planificação no todo. Algumas foram relevantes. Entre elas, as óperas francesas de Manaus, bem realizadas, embora verbas prometidas tivessem sido cortadas na última hora, obrigando à supressão das admiráveis e raras "Le Cid", de Massenet, e "Diálogo das Carmelitas", de Poulenc.
Outras realizações foram pífias. Na lista heteróclita, que vai do bom ao pior e ao insignificante, está, porém, um acontecimento maior e duradouro: a restauração do "Hymenaeus Travestido durante Um Sacrifício a Príapo", tela prodigiosa de um mestre imenso: Nicolas Poussin [1594-1655]. Foco central na pintura do século 17, Poussin inventa, nesse quadro de grandes dimensões, uma guirlanda de braços femininos, em que os cotovelos e as mãos criam articulações.
São ângulos que pairam com leveza no ar. Estrutura e dança, paradoxo do movimento imóvel. Em tal arte, não existe a miragem de contemplações fugidias, mas a certeza de ritmos puramente visuais, ordenados e estáveis. A obra pertence ao Masp, em São Paulo e, até recentemente, esteve num triste estado, recoberta por repintes antigos, e por melancólicos véus, tristes camadas de vernizes superpostas ao longo dos séculos.

Lápis-lazúli
O Poussin do Masp permitia, antes, perceber o equilíbrio de uma concepção mental inserindo-se na visualidade. Mas era impossível conhecer o sentimento da cor que possui. Ele se revelou depois da restauração. A superfície pintada brilha agora com uma rutilante autoridade, firme e intensa, aderindo aos volumes. Pontua de laranjas, verdes, vermelhos e azuis, suntuosos, os tempos fortes. A obra se oferece aos olhos com o rigor da arquitetura e da música.
A luz está presente sem enfraquecer os volumes, os planos são respeitados sem que a tonalidade geral se perca, e a harmonia do conjunto brota de notas cromáticas, intensas. A mão é leve, a matéria está presente, mas sem peso. Nem profusão, imprecisão ou virtuosidade, mas ordem e escolha. Nenhuma nervosidade, nenhum deixar por conta, nenhuma improvisação. O que não significa fórmula convencional ou frieza de teórico estéril; tudo é invenção, tudo é engenho e descoberta, mas tudo é clássico, num sentido muito singular, muito individual, nesse século 17 ofuscado pelas aparências da teatralidade.
Seria possível aplicar a Poussin a frase que Focillon escreveu sobre Cézanne: obsessão do eterno na fantasmagoria dos fenômenos.

Miséria
Há mais de 50 anos nas coleções do Masp, o "Hymenaeus" de Poussin está enfim visível, graças à faina de Regina Moreira, restauradora brasileira que trabalha no Louvre. Graças também a 200 mil de patrocinadores, segundo disseram os jornais; 200 mil para governos, políticos e ricaços não é nada. Mas foi preciso esperar o ano França-Brasil chegar para que o quadro fosse restaurado.

Tardança
O Masp não tem um programa sério de restaurações. Suas obras-primas são reparadas ao acaso de circunstâncias e doadores. Assim, dorme nas reservas, em mau estado, um tondo crucial do Renascimento, "A virgem, o Menino e São João". Obra altíssima de Piero di Cosimo, ela foi citada por Vasari, estudada por Ragghianti, Longhi e Zeri, ou seja, por alguns dos historiadores máximos das artes. Aguarda um ano Itália-Brasil, se isso existir alguma vez. Então, quem sabe, algum industrial, algum banqueiro lhe venha em socorro.

jorgecoli@uol.com.br


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