São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+(L)ivros

Paranóia crítica

Obra do escritor Roberto Piva, publicada em 1963 e agora reeditada, faz a alucinação se passar por poesia


Em que a alucinação tem a ver com poesia? A transgressão afeta a algo mais do que o mais primário dos enunciados?


LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Publicado originalmente em 1963, republicado em 2000, "Paranoia", obra do então estreante Roberto Piva, recebe sua terceira edição.
Qualquer coisa que se diga sobre sua qualidade, é inegável sua excelência como objeto gráfico, qualificado seja pela editoração, seja pelo acompanhamento fotográfico de Wesley Duke Lee, seja pela introdução de Davi Arrigucci.
Do ponto de vista do leitor interessado em uma apreciação efetiva do livro, "Paranoia" compensa com vantagem os hiatos em que esteve esgotado -assinale-se que, além da edição resenhada, toda a obra do poeta paulista está hoje reunida em três volumes lançados pela ed. Globo- pela cobertura crítica de dois de nossos melhores intérpretes: Alcir Pécora e Davi Arrigucci.
Desse modo, o autor é retirado do limbo que cobre a poesia brasileira entre os anos de 1950 e começos do década seguinte. Na falta de um estudo exaustivo, o leitor é levado a pensar que o panorama poético brasileiro -fora dos nomes consagrados de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, a que então ainda se agregava o de Augusto Frederico Schmidt e ainda não se somava o de Oswald de Andrade- se resumia, por um lado, aos continuadores da chamada "geração de 45", da qual com razão se excluía João Cabral, integrado ao outro lado, o do vento em popa que impelia a poesia concreta.
A presente edição de "Paranoia", tendo ao fundo suas obras completas, e os estudos de que nomeamos apenas os mais salientes, transforma aquele panorama.
Sem considerar a arca dos consagrados e a mediocridade da "geração de 45", podemos dizer que as linhas antagônicas eram a construtivista, formada por Cabral e os primeiros concretos, e a passional-emocionalista, de que Roberto Piva era a figura por excelência.
Mesmo porque construtivismo e passional-emocionalismo eram extremos que não se tocavam, não estranha que os intérpretes se manifestem a favor de uma ou outra linha e que o mesmo abismo se repita em sua divulgação. (Agora, por exemplo, pedem-me que resenhe a reedição de Piva, ao passo que não encontro menção aos livros que se reeditam de Augusto de Campos nem às suas traduções novas de Byron-Keats e de August Stramm.)

"Escrita libertina"
Que dúvida há em caracterizar a posição de Arrigucci quando o vemos definir a linhagem concreta como "poesia espiralada em concha que roça o silêncio, distante dos ecos do mundo, solitária e estéril em busca do absoluto no branco do papel"?
Quanto a Pécora, embora seu prefácio ao primeiro volume das "Obras Completas" não trate da linha contraposta, é nítido seu endosso à poética de Piva: "A escolha sem nuances é condição desta escrita libertina, no sentido forte do termo: aquele no qual está em jogo assinalar os interditos e investir decididamente contra eles, num gesto cujo valor fundamental é o da transgressão (...)."
Como as linhas são bem discordantes, é mais do que certo que as apreciações também o sejam. A minha, por exemplo, diverge das que venho mencionando. No entanto, como a interpretação do ficcional poético não se confunde com o tomar partido a priori e, então, passar a torcer por um dos lados, devo mostrar a razão da divergência.

Mundo em frangalhos
Em "Paranoia", afirma Arrigucci, a "Pauliceia Desvairada" de Mário de Andrade encontra seu novo cantor. É provável que a radicalidade que o marca não tivesse o endosso de Mário.
Poder-se-ia alegar, contudo, que "a cidade estilhaçada" naquele Brasil pré-golpe e o mundo em frangalhos provocam um "efeito de alucinação" (Pécora), ante o qual Mário ainda se inibia. E, mesmo onde os dois intérpretes literalmente discordam, ainda é possível encontrar um terreno comum.
Assim, se Arrigucci acentua a proximidade com o surrealismo e Pécora considera excessiva essa alegação, ambos estariam de acordo em que os versos de Piva "se enraizam em coisas brasileiras mais próximas". Para Arrigucci, o mundo de Piva supõe a constituição de um "mundo delirante", em que os "versos longos, obscuros e sem ponto final" resultam da consonância entre "seu comportamento desregrado" e "o modo de ser de sua linguagem".
Parece evidente que, embora o autor fale em "versos claudicantes", os aprova como produtos de um poeta. Pécora vai mesmo além: "Recusar-se ao sentido é (...) um tipo de violência exigida pelo verso novo contra o comodismo. (...) A dificultação da leitura é aqui elemento estruturante do sentido".
Em ambos os intérpretes, parte-se do suposto que a transgressão é o investimento indispensável para que se estruture um sentido novo. Mas, ao assim fazerem, não pressupõem que a relação seja de causa e efeito? Contra a suposição, tomem-se os primeiros versos do primeiro poema, "Visão 1961": "As mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo/ invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma/ flor de saliva".

Lampejos aqui e ali
Em que a alucinação (provocada sobre a página) tem a ver com poesia? A transgressão afeta a algo mais do que o mais primário dos enunciados? É certo que nem tudo, no livro, é tão alucinado. Semelhantes a várias passagens, o final de "Poema Porrada" é: "Eu preciso dissipar o encanto do meu velho/ esqueleto/ eu preciso esquecer que existo".
A alucinação é suspensa em favor de seu agente/paciente. É também certo que aqui e ali surgem lampejos que prenunciam chegar à qualidade, como nos dois versos descontínuos de "Boletim do Mundo Mágico": "Meus pés sonham suspensos no Abismo/ eu sou uma solidão amarrada a um poste".
Mas são fagulhas que apenas ameaçam crestar o euísmo que nutre o extenso delírio. Que a poesia tem a ver com isso?


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais! .


PARANOIA

Autor: Roberto Piva
Editora: Instituto Moreira Salles (tel. 0/ xx/11/ 3371-4455)
Quanto: R$ 60 (208 págs.)


Texto Anterior: +(s)ociedade: Os anos loucos
Próximo Texto: + lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.