São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 2010

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+(s)ociedade

Haiti nas trevas

Relato de um viajante francês escrito em 1892 descreve a pobreza, a violência e o ódio racial que tomavam conta do país

GUERRIT VERSCHUUR
A baía de Porto Príncipe é uma das mais encantadoras que conheço. Em formato de ferradura, ela é toda circundada por uma exuberante vegetação. Ao fundo, do lado direito, ergue-se a cidade em forma de anfiteatro, cidade cujas ruas convergem todas em direção a um forte, situado no alto de uma colina.
Em Porto Príncipe, não é tão simples desembarcar como em outros lugares da ilha. Para obter a permissão de desembarque é necessário submeter a lista dos passageiros ao ministro do Interior e ao presidente da República, de modo que somente três ou quatro horas depois de ancorar é que se tem a bendita autorização para desembarcar.
O médico do porto, que nos fez uma visita, encarregou-se de levar a nossa lista às autoridades competentes. [...] O hotel Bela Vista, situado nos limites da cidade, na praça das Armas, é horrível, segundo me disseram outros viajantes que lá pernoitaram.

Ruas imundas
Em razão disso, aceitei prontamente o amável convite do senhor Bieber, gerente de uma das principais casas de comércio da metrópole [a França], e hospedei-me em sua bela propriedade de Turgeaut, localizada a cinco quilômetros da cidade, sobre uma elevação que domina a cidade e o mar. Turgeaut é o local de residência da maior parte dos negociantes estrangeiros e cônsules, pois aí pode-se desfrutar de um ar fresco, de uma atmosfera salubre e de umas variadas e pitorescas perspectivas. Infelizmente, o caminho que vai da cidade até este lugar é um verdadeiro caminho haitiano, pleno de pedras e de enormes buracos.
[...] Porto Príncipe conta com umas poucas casas modernas e confortáveis e com um mercado, cuja estrutura é de ferro. O visitante não encontrará mais nada que indique progresso ou tentativa de promover um maior bem-estar dos habitantes. As ruas da cidade são ainda mais imundas do que as de Jacmel e Les Cayes, estando a sua limpeza entregue somente ao vento e à chuva.
Certo dia, numa via, que tem o sugestivo nome de rua dos Milagres, encontrei uma mula morta obstruindo a circulação; no dia seguinte, o corpo do pobre animal encontrava-se intocado no mesmo lugar.
Foi somente dois dias mais tarde que, "por milagre", a infecta carcaça foi removida. Há cerca de três anos, foi inaugurada uma linha de bonde elétrico na cidade, mas não deu certo, pois os carris elevados atrapalhavam a circulação e, por vezes, causavam acidentes.

Exército cômico
A instalação de telégrafos, a construção de caminhos de ferro, a abertura de estradas e uma série de outras coisas necessárias terão de esperar pelo próximo século, o século 20. O país é ainda semisselvagem e, sem o auxílio e o empenho dos estrangeiros, nem as coisas mais elementares estariam disponíveis.
A lavagem das ruas, que todos os dias são invadidas por uma poeira insuportável levantada pelos ventos -poeira que quase cega os transeuntes-, seria extremamente fácil de ser realizada, pois a água que desce das montanhas corre pelas beiras das calçadas. Talvez uma nova geração consiga solucionar esse problema tão simples.
O serviço de correios não tem igual: se um vapor postal ancorar no sábado, depois do almoço, as cartas somente serão distribuídas na segunda. Por diversas vezes, vi sacos de correspondências abandonados, durante horas, dentro de uma canoa, parada ao lado do escritório da aduana. O Exército haitiano parece saído de uma ópera cômica; o estrangeiro em visita ao país que deixar de ver a revista da tropa estará perdendo um divertimento que reputo único no mundo.
Em Porto Príncipe, tal revista ocorre nos primeiros domingos do mês, na praça das Armas. O exército haitiano tem tantos oficiais quanto soldados; o número de generais e coronéis é enorme, e os uniformes são os mais variados e bizarros que se pode conceber. [...] É pena que Jacques Offenbach [compositor de operetas] jamais tenha assistido a uma revista da tropa em Porto Príncipe, pois, sem dúvida, ele teria assunto para uma obra nova, que alcançaria enorme sucesso.
Certo dia, o cônsul inglês levou-me para conhecer a Câmara dos Deputados, um belo edifício de madeira, amplo e arejado. Os deputados sentam-se no meio do recinto, o público se instala atrás de uma balaustrada e o presidente ocupa uma tribuna. Entramos no prédio no exato momento em que o ministro da Guerra terminava o seu discurso, o qual provocara, de um lado, admiração e, de outro, protestos veementes.
Depois dele, diversos deputados pediram a palavra e não economizaram na sua eloquência. O deputado que viajara no meu navio, que também discursou, reconheceu-me e veio ter conosco.
Tive oportunidade, então, de elogiar a sua verve e de ser apresentado a diversos colegas seus. A Câmara é composta por 60 representantes, nomeados por três anos, que recebem US$ 200 por mês.
Há também um Senado, composto por 30 membros, escolhidos pelos representantes a partir de lista elaborada pelos colégios eleitorais; os eleitos ocupam o cargo por dez anos e recebem US$ 125 por mês.
Ao retornar da sessão, vi um agente de polícia perseguir o pobre diabo de um negro, que roubara uma galinha. O representante da lei deu uma dura pancada no malfeitor com um bastão enorme. Uma única pancada daquele bastão seria suficiente para pôr qualquer ser humano fora de combate, mas a cabeça de um haitiano é dura como um pote de ferro.

Ladrões
O negro somente deixou cair o objeto do crime e continuou a correr do policial. Nesse ínterim, a galinha foi recolhida por um outro ladrão, que fugiu o mais rápido que pôde.
Os ladrões, a propósito, não são poucos por aqui, sobretudo depois do entardecer, por isso, é comum ver brigas e ouvir tiros de pistola pela cidade. Aos ladrões vêm ainda se juntar os bêbados, os marinheiros em licença e uma enorme variedade daqueles tipos que estão sempre prontos para se meterem em discussões e armarem brigas.
É também comum encontrar loucos perambulando pela cidade, sendo os casos de loucura mais comuns entre os negros do que entre os brancos. Apesar de tal incidência, no entanto, Porto Príncipe não conta com nenhum hospício.
Os loucos inofensivos são abandonados à sua própria sorte e aqueles que constituem um perigo para a seguridade pública são metidos na prisão. Aqui no Haiti o comportamento da população das cidades em relação aos brancos é muito diverso daquele da população do campo. Os negros urbanos, embora pareçam cordiais e solícitos, odeiam os europeus do fundo de suas almas. Os casos corriqueiros de envenenamentos e de incêndios de propriedades de brancos que ocorrem em Porto Príncipe geralmente se devem ao ressentimento e ao desejo de vingança. No campo, ao contrário, onde as relações entre negros e europeus são mais raras, essa animosidade dissimulada ainda não existe.


Tradução de Jean Marcel C. França .


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