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+(s)ociedade
Haiti nas trevas
Relato de um viajante francês escrito em 1892 descreve a pobreza, a violência e o ódio racial que tomavam conta do país
GUERRIT VERSCHUUR
A baía de Porto Príncipe é uma das mais
encantadoras que
conheço. Em formato de ferradura,
ela é toda circundada por uma
exuberante vegetação.
Ao fundo, do lado direito, ergue-se a cidade em forma de
anfiteatro, cidade cujas ruas
convergem todas em direção a
um forte, situado no alto de
uma colina.
Em Porto Príncipe, não é tão
simples desembarcar como em
outros lugares da ilha. Para obter a permissão de desembarque é necessário submeter a
lista dos passageiros ao ministro do Interior e ao presidente
da República, de modo que somente três ou quatro horas depois de ancorar é que se tem a
bendita autorização para desembarcar.
O médico do porto, que nos
fez uma visita, encarregou-se
de levar a nossa lista às autoridades competentes. [...] O hotel
Bela Vista, situado nos limites
da cidade, na praça das Armas,
é horrível, segundo me disseram outros viajantes que lá
pernoitaram.
Ruas imundas
Em razão disso, aceitei prontamente o amável convite do
senhor Bieber, gerente de uma
das principais casas de comércio da metrópole [a França], e
hospedei-me em sua bela propriedade de Turgeaut, localizada a cinco quilômetros da cidade, sobre uma elevação que domina a cidade e o mar.
Turgeaut é o local de residência da maior parte dos negociantes estrangeiros e cônsules,
pois aí pode-se desfrutar de um
ar fresco, de uma atmosfera salubre e de umas variadas e pitorescas perspectivas.
Infelizmente, o caminho que
vai da cidade até este lugar é um
verdadeiro caminho haitiano,
pleno de pedras e de enormes
buracos.
[...] Porto Príncipe conta com
umas poucas casas modernas e
confortáveis e com um mercado, cuja estrutura é de ferro.
O visitante não encontrará
mais nada que indique progresso ou tentativa de promover
um maior bem-estar dos habitantes. As ruas da cidade são
ainda mais imundas do que as
de Jacmel e Les Cayes, estando
a sua limpeza entregue somente ao vento e à chuva.
Certo dia, numa via, que tem
o sugestivo nome de rua dos
Milagres, encontrei uma mula
morta obstruindo a circulação;
no dia seguinte, o corpo do pobre animal encontrava-se intocado no mesmo lugar.
Foi somente dois dias mais
tarde que, "por milagre", a infecta carcaça foi removida.
Há cerca de três anos, foi
inaugurada uma linha de bonde
elétrico na cidade, mas não deu
certo, pois os carris elevados
atrapalhavam a circulação e,
por vezes, causavam acidentes.
Exército cômico
A instalação de telégrafos, a
construção de caminhos de ferro, a abertura de estradas e uma
série de outras coisas necessárias terão de esperar pelo próximo século, o século 20.
O país é ainda semisselvagem
e, sem o auxílio e o empenho
dos estrangeiros, nem as coisas
mais elementares estariam disponíveis.
A lavagem das ruas, que todos os dias são invadidas por
uma poeira insuportável levantada pelos ventos -poeira que
quase cega os transeuntes-,
seria extremamente fácil de ser
realizada, pois a água que desce
das montanhas corre pelas beiras das calçadas.
Talvez uma nova geração
consiga solucionar esse problema tão simples.
O serviço de correios não tem
igual: se um vapor postal ancorar no sábado, depois do almoço, as cartas somente serão distribuídas na segunda.
Por diversas vezes, vi sacos
de correspondências abandonados, durante horas, dentro
de uma canoa, parada ao lado
do escritório da aduana.
O Exército haitiano parece
saído de uma ópera cômica; o
estrangeiro em visita ao país
que deixar de ver a revista da
tropa estará perdendo um divertimento que reputo único
no mundo.
Em Porto Príncipe, tal revista ocorre nos primeiros domingos do mês, na praça das Armas.
O exército haitiano tem tantos
oficiais quanto soldados; o número de generais e coronéis é
enorme, e os uniformes são os
mais variados e bizarros que se
pode conceber.
[...] É pena que Jacques Offenbach [compositor de operetas] jamais tenha assistido a
uma revista da tropa em Porto
Príncipe, pois, sem dúvida, ele
teria assunto para uma obra
nova, que alcançaria enorme
sucesso.
Certo dia, o cônsul inglês levou-me para conhecer a Câmara dos Deputados, um belo edifício de madeira, amplo e arejado. Os deputados sentam-se no
meio do recinto, o público se
instala atrás de uma balaustrada e o presidente ocupa uma
tribuna.
Entramos no prédio no exato
momento em que o ministro da
Guerra terminava o seu discurso, o qual provocara, de um lado, admiração e, de outro, protestos veementes.
Depois dele, diversos deputados pediram a palavra e não
economizaram na sua eloquência. O deputado que viajara no
meu navio, que também discursou, reconheceu-me e veio ter
conosco.
Tive oportunidade, então, de
elogiar a sua verve e de ser
apresentado a diversos colegas
seus. A Câmara é composta por
60 representantes, nomeados
por três anos, que recebem US$
200 por mês.
Há também um Senado,
composto por 30 membros, escolhidos pelos representantes a
partir de lista elaborada pelos
colégios eleitorais; os eleitos
ocupam o cargo por dez anos e
recebem US$ 125 por mês.
Ao retornar da sessão, vi um
agente de polícia perseguir o
pobre diabo de um negro, que
roubara uma galinha. O representante da lei deu uma dura
pancada no malfeitor com um
bastão enorme. Uma única
pancada daquele bastão seria
suficiente para pôr qualquer
ser humano fora de combate,
mas a cabeça de um haitiano é
dura como um pote de ferro.
Ladrões
O negro somente deixou cair
o objeto do crime e continuou a
correr do policial. Nesse ínterim, a galinha foi recolhida por
um outro ladrão, que fugiu o
mais rápido que pôde.
Os ladrões, a propósito, não
são poucos por aqui, sobretudo
depois do entardecer, por isso,
é comum ver brigas e ouvir tiros de pistola pela cidade.
Aos ladrões vêm ainda se juntar os bêbados, os marinheiros
em licença e uma enorme variedade daqueles tipos que estão sempre prontos para se meterem em discussões e armarem brigas.
É também comum encontrar
loucos perambulando pela cidade, sendo os casos de loucura
mais comuns entre os negros
do que entre os brancos.
Apesar de tal incidência, no
entanto, Porto Príncipe não
conta com nenhum hospício.
Os loucos inofensivos são abandonados à sua própria sorte e
aqueles que constituem um perigo para a seguridade pública
são metidos na prisão.
Aqui no Haiti o comportamento da população das cidades em relação aos brancos é
muito diverso daquele da população do campo. Os negros urbanos, embora pareçam cordiais e solícitos, odeiam os europeus do fundo de suas almas.
Os casos corriqueiros de envenenamentos e de incêndios
de propriedades de brancos
que ocorrem em Porto Príncipe
geralmente se devem ao ressentimento e ao desejo de vingança. No campo, ao contrário,
onde as relações entre negros e
europeus são mais raras, essa
animosidade dissimulada ainda não existe.
Tradução de Jean Marcel C. França .
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