São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 1999

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Numa noite carioca de 1987, Otto Lara Resende, Rubem Braga e Moacir Werneck de Castro traçam um retrato bem-humorado de Chatô


Rubem Braga - Eu comecei a trabalhar nos jornais do Chateaubriand em Belo Horizonte, n'"O Estado de Minas", mas ele quase não ia lá. O diretor era o Dario de Almeida Magalhães e depois o Afonso Arinos. Mas, um belo dia, eu, que já estava cansado de Belo Horizonte, briguei com o gerente do jornal e resolvi ir embora. Tomei um trem e fui para São Paulo com um dinheirinho no bolso e fui procurar emprego. Isso foi em 1933, porque em 1932 eu fui correspondente na Mantiqueira. Fui lá nos Diários Associados e procurei o Chateaubriand, que me recebeu na mesma hora e foi logo perguntando: - O que é que há com o senhor?
Eu disse que estava meio enjoado de Belo Horizonte e que tinha decidido viver em São Paulo. Ele quis saber como tinha sido minha saída, e eu disse que tinha brigado com o gerente, o Caio Júlio César de Oliveira. Os olhos do Chateaubriand brilharam:
- Mas fez muito bem. Aquele sujeito é uma besta! Isso depõe a seu favor. Temos uma vaga na revisão, e o senhor já pode começar hoje mesmo.
Eu reagi:
- Revisor, não. Eu sou redator, não vou trabalhar na revisão. Não vou andar para trás. Ser revisor eu não quero.
- Então vamos fazer uma experiência. O Caio de Freitas está saindo do jornal, e o senhor fica no lugar dele.
Aí ele me mandou fazer uma reportagem sobre briga de galo. Fiz, ficou muito boa, e ele me convidou para fazer crônicas diárias, que era o que eu já fazia em Minas. Aí fui ficando, mas sempre tinha atritos com ele, porque ele queria que eu fizesse as reportagens mais idiotas. Uma vez tive que descrever a casa de uma daquelas Prado quatrocentonas que ia hospedar um casal de nobres que vinha da Europa. Depois fui fazer uma reportagem sobre uma festa de um daqueles grã-finos paulistas. Era no Hotel Esplanada e no centro da festa havia uma mesa redonda com bebidas de dezenas de países do mundo. A cada passo que se dava, bebia-se uma bebida de um lugar diferente. Quando cheguei ao Equador, eu já estava num porre miserável, acabei me agarrando numa mulher daquelas. Cheguei na redação de porre, não podia nem escrever -ele ficou meio bravo comigo, mas passou.
Uma vez eu fiquei quatro dias sem trabalhar e, quando voltei, ele me chamou ao gabinete. Junto com ele, estava dona Corita, belíssima. Ele perguntou por que eu faltara ao trabalho, respondi que estava doente. Ele quis saber o que eu tinha e, meio sem jeito, disse a ele que era uma "doença de rapaz". Ele insistiu e eu falei:
- Estava com gonorréia, doutor Assis.
Dona Corita ficou espantada com aquilo, mas ele nem ligou:
- Mas o senhor também, seu Braga... Trepando com mulheres vagabundíssimas, só podia acabar assim...
E uma vez ele me chamou para dizer que queria que eu viesse para o Rio dirigir o "Diário da Noite", que, segundo ele, tinha sido um grande jornal, mas que estava "uma lástima". Eu levei um susto. Primeiro, eu não sabia dirigir jornal. Depois, ser diretor significava que eu teria que ficar sob as ordens do Chateaubriand, e via como ele tratava os chefes dele, um negócio horroroso. Recusei polidamente, disse que não podia, dei uma desculpa. Foi aí que ele disse a alguém que estava junto:
- Esse rapaz tem um desprezo olímpico pelo dinheiro!
Ele era incapaz de entender que alguém pudesse não se entusiasmar com um convite para ser diretor do "Diário da Noite". Foi por isso que ele ficou tão safado da vida, quando eu briguei com ele -afinal, ele devia achar que eu devia favores a ele. Mas eu o achava muito desagradável pessoalmente. Onde é que já se viu o sujeito perguntar que doença você tem?
Mas fui indo, fui ficando. Ganhava pouco, mas de vez em quando aparecia alguma matéria paga e o jornal sempre dava uma pequena comissão para o jornalista que escrevesse. Depois o Antoninho Alcântara Machado, que vinha dirigir o "Diário da Noite" do Rio de Janeiro, me convidou para vir para o Rio. Vim para cá no começo de 1935. O Antoninho morreu logo depois, de apendicite. Eu passei a trabalhar na redação do "O Jornal" e a fazer uma crônica diária no "Diário da Noite" -ou então era vice-versa, não me lembro.
Mas a encrenca que eu tinha com ele foi a seguinte: um dia eu fiz uma crônica sobre um negócio de política espanhola. A Igreja na Espanha estava fazendo uma campanha para dar o direito de voto às mulheres. Claro, era uma jogada, porque a maioria das mulheres era católica. E eu fiz uma crônica dizendo que aquilo não ia adiantar nada, porque a Igreja espanhola também era uma pinóia... E, daí a dois dias, o secretário de redação me chama:
- Aquela sua crônica deu um bode danado. Embora o dr. Assis tivesse lido e aprovado a crônica, chegou uma carta para ele, mandada pelo Tristão de Athayde (pseudônimo de Alceu Amoroso Lima).


"Comendo, Chateaubriand era um horror, metia o garfo no prato alheio" RUBEM BRAGA



"Chatô teve a perspicácia de perceber que a imprensa era o caminho para o poder" OTTO LARA RESENDE


O Tristão tinha uma coluna chamada "Coluna do Centro". Cada dia escrevia um cristão do Centro Dom Vital, que tinha sido fundado em 1922 pelo Jackson de Figueiredo. Um dia era o Alceu, outro dia era o Perilo Gomes, no outro era o Hamilton Nogueira ou o Sobral Pinto. E o Tristão era diretor da revista "A Ordem", do Centro Dom Vital. E o Chateaubriand prestigiava o Centro Dom Vital, publicando no jornal uma coluna que era chamada "Coluna do Centro" -na verdade um esperto jogo de palavras: era do Centro Dom Vital e insinuava que fosse, politicamente, de centro. Tanto que ficava bem no centro da página. Mas, na verdade, quem escrevia ali era a direita católica. Ele me deu a carta para ler: o Tristão dizia que infelizmente ia retirar a coluna deles do jornal porque não podia publicar seus textos "ao lado de um sujeito desatinado como esse Rubem Braga". Era um ultimato ao Chateaubriand. O secretário me preveniu: vinha trovoada por aí. Cheguei na sala dele e já o vi gritando:
- Seu Braga, o senhor está querendo arruinar o meu jornal. Como é que o senhor me escreve uma crônica completamente idiota como essa?
Eu ainda tentei me defender:
- Mas, dr. Assis, o senhor é dono do jornal, pode ler o que eu escrevo antes e cortar aquilo de que não gostar.
Ele era mal-educado:
- Eu lá tenho tempo para ler porcaria?
Eu decidi pedir minhas contas. Aí o Dario me procurou para propor que eu voltasse para São Paulo ou para Minas, mas eu não queria voltar para nenhum dos dois lugares. O Dario me disse que então eu poderia escolher entre Recife e Porto Alegre. No Rio, o Tristão não me deixaria ficar -pelo menos nos Associados. Aí fui para o Recife, por imposição do Tristão.
Uma vez o Ribeiro Couto fez para "O Cruzeiro" uma crônica muito bonita sobre Santa Terezinha do Menino Jesus -que acabou virando livro depois. E o diretor da revista, que era o Lincoln Nery, pediu ao Santa Rosa para fazer a ilustração. Ele fez a santa com rosas na mão, um desenho muito bonito. Quando o Tristão de Athayde soube daquilo foi se queixar com o Chateaubriand, dizendo que era um absurdo deixar um comunista ilustrar um trabalho daquele na revista. O Lincoln ainda defendeu o Santa Rosa, dizendo que não sabia se ele era ou não comunista, mas que o que interessava era a ilustração dele, que não tinha nada de comunista. O Tristão insistiu com o Chateaubriand para que despedisse o Santa Rosa, com um argumento terrível: uma revista democrática como "O Cruzeiro" não podia ajudar a sustentar um comunista. Mas o Santa Rosa acabou ficando.
Fui para Recife trabalhar no "Diário de Pernambuco". Aí funda-se a Aliança Nacional Libertadora lá no Recife. Eles precisavam de alguém para fazer o jornal da ANL em Pernambuco e me chamaram. Eu, que já estava de saco cheio dos Associados, saí. Mas saí sem briga. Fiz o jornal deles, que chamava "Folha do Povo". Aí vim para o Rio trabalhar no "A Manhã". E nessa época o Chateaubriand fez um artigo de pau nos comunistas, dizendo que comunismo no Brasil era uma coisa de humoristas, de détraqués, esculhambando a mim e ao Aporelli.
Aquilo era uma sacanagem: ser chamado de comunista era um risco pessoal naquela época. E eu nem comunista era. Aí resolvi responder no "A Manhã" com uma crônica contra ele. Chateaubriand ficou puto da vida, ficou uma fera comigo, deu um verdadeiro escândalo dentro da redação, me chamou de filho da puta, do diabo. E ele achava que era uma ingratidão eu fazer aquilo, porque, na cabeça dele, eu tinha sobrevivido às suas custas durante muito tempo. Depois eu soube que o que o enfureceu foi eu ter feito uma referência -pouco elegante, reconheço- a umas peladas que ele tinha na cabeça, um negócio que dava uns caminhos-de-rato. Ele não perdoou a sacanagem. Nunca mais nos falamos. Meses depois eu me encontrei na rua com o Dario de Almeida Magalhães e ele me advertiu:
- Você é louco de brigar com o Chateaubriand. Jornalista brasileiro não pode viver aqui se brigar com Chateaubriand. Ou muda de profissão ou muda de país.
Otto Lara Resende - Mas, ô Rubem, você deve ter escrito sobre o Chateaubriand depois disso. Sua memória deve estar falhando. Afinal você escreveu durante muito tempo no "Diário de Notícias", e o Orlando Dantas, que tinha sido gerente do "O Jornal", brigou com o Chateaubriand e fundou o "Diário de Notícias". E, assim como tinha alguns mitos sagrados, como o Arthur Bernardes, o Otávio Mangabeira, o "Diário de Notícias", que foi o jornal que mais resistiu ao Estado Novo, virou um ninho de inimigos do Chateaubriand -Rafael Correia de Oliveira, Osório Borba, você, Rubem, e o próprio Orlando Dantas. Não se perdoava Chateaubriand. Será que você nunca entrou nessas campanhas?
Braga - Eu me lembro de que um dia o Dario foi a São Paulo e me convidou para almoçar com ele e com o Chateaubriand num restaurante. Eu nunca tinha visto o Chateaubriand comendo. Era um horror: falava de boca cheia, metia o garfo no prato alheio. No meio da conversa eu me dirigi ao Dario, chamando-o pelo nome. Chateaubriand se espantou:
- Como é que você deixa esse menino chamá-lo de "Dario", com essa intimidade? Que falta de hierarquia, de respeito!
Lara Resende - Essa história de que ele não falava línguas era folclore. Ele falava várias línguas, mas todas com sotaque nordestino. Dizem que ele uma vez chegou atrasado a um compromisso na França por causa de uma tempestade e disse à pessoa que o esperava que tinha visto "chaque rayon de mettre peur" -cada raio de meter medo! Ou então quando dizia que "avec moi c'est dans la pomme de terre", ou seja, "comigo é na batata". São anedotas expressivas da hostilidade a Chateaubriand.
Braga - Ele era muito malquisto pelos empregados...
Lara Resende - Eu realmente não tive contato direto com o Chateaubriand. O que é uma coisa curiosa, porque eu praticamente convivi profissionalmente com quase todos os diretores de jornais no Rio, intimamente, participando da vida da direção de algumas dessas empresas. Minha relação com ele, portanto, foi muito vaga, tênue, distante. Primeiro eu comecei a colaborar no "O Jornal". Moacir foi diretor do suplemento literário, e lá trabalhavam, entre outros, Vinicius de Moraes e Carlos Lacerda, que foi redator-chefe e diretor da Agência Meridional, no fim do Estado Novo. Mas eu ainda vivia em Minas quando comecei a colaborar com "O Jornal". Porque ele, ao contrário do depoimento do Rubem, ia muito a Minas, porque o jogo político exigia muita presença lá. E, quando ele aparecia em Belo Horizonte, era um vendaval. O "Estado de Minas" ficava na rua Goiás. O "Diário" era ali pertinho, do outro lado, na rua Goitacazes. A "Folha de Minas" era na rua da Bahia, também ali perto. Ou seja, eram todos os jornais muito próximos uns dos outros -e então era inevitável que a presença dele em Minas fosse conhecida por todos nós.
Sobre isso quem pode dar um bom depoimento é o Carlos Castello Branco, que era secretário de "O Estado de Minas". Eu nunca quis trabalhar nos Associados em Minas porque tinha deles uma visão escravocrata: pagavam muito mal, e eu via a vida que o Castelinho levava -ele acordava ao meio-dia, ia para o jornal e só saía de lá de madrugada, quando o jornal rodava. Então ele só tinha livres os domingos. Ele tinha aquela palidez dos sujeitos que não tomam sol.
Moacir Werneck de Castro - É o "amarelo redação".
Lara Resende - Essa história que o Castelinho conta, de que eu nunca o convidei para entrar na minha casa, é mentira dele. Primeiro, ele não tinha tempo. E era muito tímido, não frequentava ninguém.
Braga - Depois, ele era muito feio também, né? Puta que pariu!
Lara Resende - Era sim, mas outro dia encontrei uma foto dele com o Leon Eliachar, o Fernando Sabino, o Afonsinho Arinos -e até que ele está bonitinho, com o cabelinho na testa, depois eu vou te mostrar. Mas ele próprio várias vezes me chamou para ir trabalhar em "O Estado de Minas", mas eu não quis. E, quando o Castello veio para o Rio, em 1944, um dos jornalistas convidados para substituí-lo fui eu.
Braga - Espera aí, que agora eu estou me lembrando do período em que fui correspondente na Revolução Constitucionalista. Eu fui correspondente na Frente do Túnel da Mantiqueira, e o Arnon de Mello foi para o Vale do Paraíba. O Chateaubriand jogou o destino dele ali: ele ficou ao lado da revolução, foi preso junto com Arthur Bernardes. O governo de Minas estava hesitante, e o Chateaubriand achou que os paulistas iam ganhar.
Lara Resende - Ora, Rubem, o Chateaubriand jamais aceitaria um correspondente na guerra que ele apoiava que não passasse pelo nihil obstat dele.
Braga - Bem, tinha censura no jornal, claro. E lá no front tinha outra censura -e quem fazia era o doutor Benedito Valadares, que era prefeito de Pará de Minas e tinha sido comissionado como chefe de polícia das Forças em Operação -fardado e tudo. Um dia os mineiros estavam preparando um ataque e os paulistas tiveram sorte e mataram um sujeito da infantaria mineira que era um sujeito queridíssimo, valente -era o comandante do Sexto Batalhão. Esse coronel -que se chamava Fulgêncio-, operado pelo Juscelino Kubitschek, que era médico, morreu. E o chefe do Estado-Maior, um coronel da Força Pública, achou que ali eu estava correndo riscos e me prendeu -para me proteger- e me mandou para Belo Horizonte. Lá fui eu.
Werneck de Castro - O que eu não acho é que as forças políticas que apoiaram a Revolução de 1930 fossem automaticamente ficar ao lado do Getúlio em 1932. Porque a Revolução de 32 era de São Paulo, mas também era a questão da redemocratização do Brasil. Porque Getúlio se autoproclamava "ditador", chamava o regime de "ditadura". Mas havia também um conteúdo revanchista da plutocracia paulista decaída em 1930, mas isso não tirava o caráter redemocratizador do movimento.
Lara Resende - Mas o Chateaubriand conheceu em 1932 o Benedito Valadares, que era um personagem que não tinha sido inserido ainda na vida política nacional, assim como o Juscelino Kubitschek, o general Falconiéri, o Góes Monteiro, o Dutra -que iniciou a resistência do mineiros a partir de Muzambinho e fez os paulistas recuarem até o túnel. E essa Revolução de 1932 fixou nomes que vieram a ser importantes na paisagem brasileira, militar e civil. Eles entraram para o clube do poder. Então, quando o Chateaubriand ia a Minas, eu suspeito que ele ia também em função do peso de Minas naquela época. O Benedito era o único interventor que mantinha o título de governador.
Em 37, quando veio o golpe do Estado Novo, o Chateaubriand apoiava o Zé Américo -eu também era Zé Américo cem por cento. Mas Minas teve muita responsabilidade na sucessão que deveria acontecer em 1938. O Benedito era uma peça fundamental. Foi ele quem lançou o candidato oficial, que era considerado uma candidatura "subversiva" -uma coisa curiosíssima, porque era aquela ambiguidade: o Zé Américo era o candidato oficial e era taxado de esquerdista, sem autorização, sem licença do establishment, sobretudo do establishment paulista. São Paulo quatrocentão apoiava Armando de Salles Oliveira, homem do doutor Julinho (Júlio de Mesquita Filho, diretor-responsável de "O Estado de S. Paulo" até 1969), inserido naquele contexto de poder paulista que era importante.
Então eu tenho a impressão de que o Chateaubriand em 1932 já tinha feito a opção dele. Você pode dizer que há vários tipos de inteligência. Eu diria que ele tinha a inteligência do rato: a luz está apagada e o rato está num salão que tem um único buraquinho num rodapé. Nenhum ser humano seria capaz de acertar o buraco de saída. O rato não dá uma cabeçada, passa direto no buraco. E, se o buraco for menor do que seu corpo, ele afina. Isso é uma forma de inteligência fantástica! Inteligência é capacidade de adaptação para sobreviver...
Braga - Agora lembrei de uma coisa: quando Chateaubriand fez esse artigo, que me esculhambava, eu respondi escrevendo um negócio lembrando uma frase do Prestes. O Prestes o chamava de "o nauseabundo Chateaubriand". Eu usei essa expressão no meu artigo e ele não me perdoou.
Lara Resende - Mas então eu dizia: ele chegou ao Rio com fama de ser muito inteligente. Ele fez um concurso em Pernambuco e ganhou a tal fama de que, depois do Tobias Barreto, e sem contar o Gilberto Amado, ele era a grande fulguração do Nordeste. Ele era o sol. Ou seja, chegou ao Rio precedido de uma fama incomparável.
Braga - Lembrei de outra coisa: um dia apareceu um redator novo lá no "Diário de São Paulo". Um rapaz simpático, e um dia fomos a um botequim beber umas coisas e eu perguntei a ele: "O que você está fazendo no jornal?". O sujeito me contou que na verdade ele não tinha nada que ver com jornal, mas que, quando o Chateaubriand esteve preso, em 1932, esse cara tinha sido uma espécie de carcereiro dele. E o Chateaubriand disse que estava com uma mulher nova e que tinha porque tinha que se encontrar com ela na cadeia. Toda noite a mulher ia lá encontrar-se com ele. O sujeito deixava e ganhou a gratidão eterna dele. Quando saiu da cadeia, o Chateaubriand nomeou-o redator do jornal em São Paulo. Ele não fazia nada, apenas frequentava a redação e recebia salário. Chateaubriand era muito esquisito com a família também. Tem um artigo em que ele chama de puta a mãe do Gilberto, filho dele. E chama o Gilberto de veado.
Lara Resende - Quando o Gilberto passou no concurso para o Itamarati, eu encontrei o Chateaubriand na rua e disse para ele: "Dr. Assis, e o Gilberto, hein? Que coisa boa, passou no concurso do Itamarati". Ele disse: "Só um cretino como ele poderia entrar num concurso do Itamarati". Mas, voltando ao começo: ele chegou ao Rio precedido de uma tradição fantástica, com um arsenal intelectual invejável, com o brilho da aura de ter vencido o Joaquim Pimenta no concurso. Ou seja, o sujeito abandonava o posto de vice-rei no Recife para vir fazer carreira no Rio. O destino dele no Rio não era o jornalismo apenas -era o poder. O Chateaubriand identificava o interesse dele.
Em 1932 ele pode até ter achado que aquilo seria o melhor para o Brasil, mas o que o levou a apoiar o movimento foi a perspectiva de vitória -porque ele nunca entrava em fria. Ele sempre escolhia o lado vencedor. O que ele teve foi a perspicácia de perceber que a imprensa era o caminho para o poder. Um jornal não era um órgão de informação ou de opinião, aquela bobagem de "quarto poder" -o jornal pertencia ao poder, era apenas uma folha que defendia uma determinada facção.
Veja a história da compra de "O Jornal", que tinha sido fundado pelo Renato Toledo Lopes. O Toledo Lopes era um homem respeitável no Rio de Janeiro, como o dr. Dario, dr. Gudin. O jornal dele ia mal e aí aquele nordestinozinho miúdo, que tinha tido uma passagem pelo "Jornal do Brasil", simplesmente vai lá e compra o jornal. O que ele queria era influir -ele se considerava um igual de todas as pessoas poderosas. Ele tinha uma relação de igual para igual com essa gente, o que não excluía a bajulação. Mas ele era um homem do clube do poder no Brasil. Ele tinha uma liberdade moral total, porque achava que os objetivos dele eram certos, então todos os métodos para atingi-los eram válidos.
Werneck de Castro - Como era o tratamento dele com os poderosos?


"Se Chateaubriand não estivesse de acordo, Samuel Wainer não tinha tirado Getúlio do ostracismo" OTTO LARA RESENDE



"Um dia, encostou um caminhão na porta de uma mercearia e mandou encher de caixas de champanhe francês" RUBEM BRAGA


Lara Resende - Ele tinha uma atitude de certa bravura, ele corria riscos. Mas, depois de um certo momento, ele se confundiu de tal maneira com o poder que, por exemplo, ele apoiou a queda do Getúlio em 1945, e isso não o incompatibilizou com o Getúlio. Quem é que manda o Samuel Wainer lá no Sul para entrevistar o Getúlio? Ele! Quem devolve Getúlio à cena política é o Samuel. O Chateaubriand sabia que o Samuel tinha um tino como o dele para identificar o poder. E, se o Chateaubriand não estivesse de acordo, não teria publicado nada daquilo -aliás, ele foi até acusado de tentar ressuscitar o Getúlio, que estava completamente fora do jogo político.
Getúlio tinha apoiado o Dutra no último momento, por meio de uma gestão feita pelo João Neves da Fontoura, tinha mandado votar no Dutra para impedir a vitória da UDN, dos inimigos dele, mas estava completamente afastado da política. Ou seja, Chateaubriand era um homem do poder -a imprensa para ele era apenas um instrumento do poder. A partir da compra do "O Jornal" o comportamento dele -um homem inteligente, com grande facilidade de expressão e de identificação de seus interesses, e ao mesmo tempo um homem com uma visão muito otimista do Brasil-, ele passou a tocar em todos os pontos nevrálgicos do Brasil.
Realmente ele tinha uma visão de futuro, às vezes até sob um lado paranóico. E vivia a situação de homem solitário: o código moral do Chateaubriand era o interesse dele; na sua cabeça, o interesse dele era o interesse do Brasil. Ele se via como um grande brasileiro. E, depois que ele teve sucesso, que comprou outros jornais, rádios, televisão, a partir daí então ele foi aceito pelo poder, pelo establishment brasileiro, mas pela intimidação. Esse folclore, essa coisa de "Ordem do Jagunço", esse lado festivo, tudo isso era uma forma de intimidação. Era uma forma de ridicularizar, intimidar os poderosos.
Werneck de Castro - Como é que vocês analisam o estilo jornalístico do Chateaubriand, pelos artigos dele? Como é que se compararia Chateaubriand, por exemplo, a Macedo Soares?
Lara Resende - A partir de certa altura os artigos de Chateaubriand já não tinham mais importância. Quando queria elogiar alguém ele utilizava um estilo de retórica muito peculiar. Então, se queria puxar o saco de um ministro, dizia lá no artigo: "Esse cangaceiro anafalbeto já nasceu com a sabedoria no berço...", quer dizer, era uma forma agressiva de elogiar, uma mistura que deixava o elogiado meio perturbado, tinha que ler duas ou três vezes para entender se era elogio ou insulto. E ele escrevia muito, escrevia no avião, escrevia em todo lugar -e isso de escrever em qualquer lugar acabou se tornando clichê. Parece que era ele quase sempre que escrevia. O que eu sei é que três relatórios que eu fiz para ele foram publicados como artigos dele, assinados.
Braga - Lá em São Paulo também era assim. Para agradar aquele Garibaldi Dantas, muitas vezes ele mandava um redator fazer um artigo sobre a política do algodão, por exemplo. Depois pegava o miolo da coisa, punha um parágrafo dele em cima, outro embaixo e mandava publicar.
Lara Resende - É, ele não tinha escrúpulos de burguês, de classe média. Ele se considerava um homem liberto, uma pessoa que não tinha superego. Ele era o próprio superego. Ele se considerava um homem livre para tudo, um homem com liberdade total. Tratava todo mundo da mesma maneira. E, quando ele vira o homem do mundo, essa aspereza seria um pouco atenuada pelo cargo de embaixador. Porque ele era um sujeito pequeno, nordestino, feio, com um certo nanismo -atenção, é nanismo, não onanismo. É nanismo, de anão. Era um homem que buscava o êxito a qualquer preço. E que se sentia com liberdade moral para ir direto ao objetivo dele. E ele sempre achou que os objetivos dele eram o que podia haver de melhor para o Brasil: tirar o país da monocultura, internacionalizar a economia, integrar o Brasil no mundo econômico mundial. Tanto que, nos anos 20, logo depois de comprar "O Jornal", ele foi o grande defensor do Percival Farquhar, da Itabira Iron. E isso foi uma coisa fundamental para a carreira dele.
Braga - Lembrei de uma coisa agora. Em São Paulo havia uma famosa mercearia, na esquina da Líbero Badaró com o largo São Francisco (Rubem Braga se refere à Casa Godinho, existente até hoje), e eu fui encarregado de fazer uma reportagem sobre um condomínio de luxo que o dono da mercearia estava fazendo. Só depois é que eu soube que um dia o Chateaubriand encostou um caminhão do jornal na porta da tal mercearia, mandou encher de caixas de champanhe francês e entregar na casa de uma mulher. Um caminhão de champanhe! Mas ele simplesmente não pagou a conta. E depois convenceram o dono da mercearia a lotear um terreno que ele tinha -o jornal pagaria a conta da bebida com reportagens sobre o tal condomínio. Reportagens feitas inocentemente por mim.
Lara Resende - É, ele não gostava de pagar contas -ele se sentia com licença para tudo... Ele não tinha superego, não tinha pecado original e tinha todos os direitos. Em 1965 eu fui a um jantar em Estocolmo, oferecido por um jornal de lá. Éramos 22 jornalistas da América Latina e só dois brasileiros -um deles era eu. A certa altura o anfitrião aproxima-se de mim e pergunta:
- Como vai o Assis Chateaubriand?
Eu contei que ele estava doente e o sujeito me disse que Chateaubriand era um "personagem inesquecível" para ele e eu quis saber por quê. O sueco tinha um ar meio irônico ao falar de Chateaubriand e contou que, anos antes, ele dera ali, em Estocolmo, um jantar faraônico para príncipes, princesas, atrizes e chefes de Estado de vários países. Continuei indagando por que o sujeito não se esquecia dele. O cara disse:
-Ele ficará na nossa lembrança para sempre pelo sucesso do jantar, que abalou Estocolmo na época, mas principalmente pelo fato de que ele não pagou a conta. Assinou as notas e foi embora para o Brasil.
E ele devia achar que a Suécia é que ficou em dívida com ele.
Werneck de Castro - Mas você se lembra de alguma história dos quadros?
Lara Resende - Quem pode contar isso é o Hugo Gouthier. Mas o Chateaubriand adorava esse negócio de homenagear os outros, inventar padrinho disso, paraninfo daquilo. Então chamava um figurão -Manuel Ferreira Guimarães, Augusto Trajano, Pedro Brando- e, na hora de saudar o homenageado, no meio de um jantar, ele metia um discurso de surpresa:
- Tenho o prazer, o privilégio de anunciar aos nossos amigos o que até agora era um segredo entre o nosso homenageado e eu: ele comunicou-me que é o doador do Renoir que aqui está!
O doador ficava sabendo daquilo ali, na hora. E ninguém ousava dizer que não. Os sujeitos achavam graça e viam que o melhor era contribuir mesmo.
Werneck de Castro - O Pedro Brando era o homem do Henrique Lage, era o diretor da Costeira. O Chateaubriand telefonou para o Pedro Brando, que tinha um luxuoso palacete na Vieira Souto, uma réplica da Casa dos Contos, de Ouro Preto, e disse a ele: -Faça um coquetel aí amanhã que eu preciso convidar umas pessoas ilustres. O Pedro, que é pai da Maria da Glória, atual mulher do Renato Archer, fez o tal negócio. No dia seguinte o Chateaubriand aparece lá com os convidados e arma a cena tal como o Otto contou: "Está aqui o nosso grande empresário, que nos contou que acaba de doar esse maravilhoso Velásquez aqui da parede". E o Chateaubriand simplesmente levou o quadro para o museu.
Lara Resende - Era assim, ele "confiscava" os quadros. Ele era um homem audacioso, extrovertido e se considerava como tendo conquistado o direito de fazer essas coisas com as pessoas. Onde quer que chegasse era paparicado. E transformava isso em poder. Ele vetou o nome do Dario de Almeida Magalhães para o Ministério da Educação e o Dutra obedeceu. O Dario tem todo um dossiê sobre o Chateaubriand -e é um dos homens mais altivos do Brasil.
Braga - Mas depois eles se reconciliaram.
Lara Resende - O que revela o lado generoso de ambos. Você sabe que o Chateaubriand pôs o nome do Dario no prédio dos Associados de Belo Horizonte? E tirou o nome do irmão, Oswaldo, para pôr o nome do Dario. E foi até um gesto de caridade do Dario aceitar a reconciliação -afinal, aquele que estava ali na cadeira de rodas era quase que um detrito do Chateaubriand de verdade que ele conhecera.
Braga - Vai, Otto, fale mais de sua experiência pessoal com Chateaubriand.
Lara Resende - Pois eu vou até fazer minha confissãozinha aqui: eu também escrevi na "Coluna do Centro", de que o Rubem falou antes. Escrevi já na fase final da existência dela, já nos anos 40. Porque ela chegou até o tempo da guerra. Era aquela época em que o país estava muito radicalizado pelo pós-1935 (Otto refere-se à revolta comunista de 1935), em que toda tentativa de progresso social era identificada com o comunismo. Foi quando se gerou esse horror zoológico ao comunismo, essa monomania da segurança nacional, da repressão, do combate à subversão. Então aquela Igreja Católica pré-conciliar tinha uma evidente identificação com aquela idéia do integralismo. Muitos dos membros do Centro Dom Vital nem chegaram a ser integralistas -alguns até foram antiintegralistas. Uma das colunas de combate ao integralismo saiu de lá do Centro Dom Vital. O próprio Tristão nunca foi integralista.
Braga - Tem um famoso artigo em que ele aconselhava os jovens católicos que tivessem vocação política a entrarem para o integralismo, mas ele próprio nunca foi integralista.
Lara Resende - Isto está num livro dele intitulado "Indicações Políticas". O artigo, se não me engano, chama-se "Catolicismo e Integralismo". O Tristão se converteu ao catolicismo em 1928, pouco antes da morte do Jackson de Figueiredo, grande amigo dele, com quem ele trocou enorme correspondência. Mas o Tristão pertencia àquela aristocracia fluminense a quem o Chateaubriand rendia todas as homenagens. O Chateaubriand queimava seu incenso junto ao Bezerro de Ouro.
Sabendo-se um homem muito bem dotado, muito inteligente e com propósitos de conquistar o mundo, ele veio disposto a realizar um projeto muito ambicioso. E com uma grande liberdade moral, uma desenvoltura moral muito grande. Ocorre que o Alceu de Amoroso Lima era amigo, por ligações familiares, do fundador do "O Jornal". E foi o homem que começou a escrever notas desde o número um de "O Jornal" -e que depois viraram notas contra o modernismo. Então daí vinha o prestígio do Alceu com o Chateaubriand. E que o Alceu era o último vínculo do Chateaubriand com "O Jornal" original, com a gênese de "O Jornal". Ele tinha lá o seu temor, o seu respeito reverencial por essa figura fundadora de "O Jornal" que era o Tristão.
Ele era absolutamente inserido no meio aristocrático-burguês fluminense -Amoroso Costa, Amoroso Lima, toda aquela gente que vinha da nascente burguesia industrial e comercial, ele próprio era diretor da fábrica Cometa, era ligado até por árvore genealógica, era um fruto sumarento da burguesia fluminense. Era tão incompatível a atividade intelectual com a situação burguesa de um bom filho de família, como era o Alceu, que ele não quis assinar Alceu de Amoroso Lima. Ele achava que assinar coisas em jornais não era compatível com um cidadão como ele, que tinha aquela situação, que lia inglês, francês, alemão, que tinha ido à Europa, que lia Marcel Proust -em 1924 ele já falava em Marcel Proust aqui no Brasil, imagine! Então ele adotou o pseudônimo de Tristão de Athayde para não ser identificado.
No dia 4 de novembro de 1928 morreu o Jackson de Figueiredo, afogado na Barra, na Gruta da Imprensa, pescando num domingo de sol maravilhoso, diante do filho e de um amigo. E em seguida o Alceu, que vinha com uma correspondência de quatro ou cinco anos com ele, converteu-se ao catolicismo e saiu daquela posição de cético, liberal, burguês, para uma posição radical no momento em que o mundo estava virando. Ele adota então a posição da LEC -a Liga Eleitoral Católica- e da Ação Católica, que se confundia muito, em alguns aspectos políticos pragmáticos, com o integralismo. Porque era muito difícil, a partir do momento em que você não tinha uma posição marxista ou socialista, para um sujeito que não fosse católico, era muito difícil não apoiar uma coisa como aquela. Mas a coluna do Centro Dom Vital não era algo integralista. Depois de escolher o nome é que ele descobriu que houve um navegador português chamado Tristão de Athayde.
Werneck de Castro - O Tristão, além de presidente do Centro Dom Vital, era o mentor, diretor, da revista "A Ordem". Essa posição do Tristão chegou muito perto do integralismo, nessa época...
Lara Resende - Mas ele não vestiu a camisa do integralismo. E condenou o "Juramento ao Chefe"...
Werneck de Castro - Mas ele aconselhava os jovens que tivessem vocação política a entrarem para o integralismo. Ele foi o mentor daquela juventude que levou, por exemplo, o Gerardo Mello Mourão a se tornar um espião nazista, a denunciar brasileiros...
Lara Resende - Aí eu contesto. Ninguém leva ninguém a ser espião. Quem foi espião tem que assumir a própria culpa...
Werneck de Castro - Toda essa geração de direita, à qual o Vinicius de Moraes esteve ligado, o Octavio de Farias, tudo isso caminhava para o nazismo se alguns deles, como o nosso Vinicius, não tivessem recuado a tempo. Mas o que eu quero dizer é que o Tristão chegou a escrever um artigo, naquele delírio direitista, em que ele dizia que "o Anísio Teixeira tem que assumir a responsabilidade pelas suas posições que geraram isso que está aí" -e isso logo depois da Intentona (Comunista).
Mas você não pode ver o Tristão esteticamente com essa posição que ele teve nessa época. Porque depois ele deu um depoimento ao Medeiros Lima, jornalista, em que ele faz lisamente uma penitência -como ele diria, como católico, e não uma autocrítica, como diria um comunista-, com uma revisão de suas posições naquele tempo. Ele se penitencia da posição que teve em relação a Anísio Teixeira, que nem era comunista e a quem ele praticamente denunciou -ele fez uma coisa muito limpa, e eu considero isso uma coisa muito importante na vida do Alceu. Tudo isso para você saber o que era a posição da "Coluna do Centro", que era quem dava, na verdade, a orientação ideológica aos Diários Associados por volta de 1935, 1936. Era a direita clerical.
Lara Resende - Quando eu colaborei na "Coluna do Centro" já tinha passado essa radicalização de direita e esquerda. Porque nessa época do Alceu era muito difícil a um católico, por exemplo, não tomar o partido do Franco, contra a República, porque havia uma identificação evidente com a Igreja. E o sujeito engajado está na luta -muitas vezes você vai silenciando razões pessoais, mas vai porque tem que ir, porque está na luta, porque a política não permite os tons frios, cinzas. É preto ou branco. Chega o momento em que você tem que fazer uma opção. Você não encontra na minha vida, por exemplo, esses fatais erros que cometeu o Alceu. Mas é porque eu nunca estive engajado. Apesar da minha ardência em certos momentos cívicos, eu sempre tive uma certa distância e um certo ceticismo. E além disso o Alceu tinha aquele fervor do convertido, do cristão novo, do soldado -e que até contrariava o temperamento dele. E depois ele caminhou para uma posição até lírica...
Braga - Quando o Tristão mudou de orientação política -era um homem de direita, apaixonado-, ele fez um artigo, acho que no "Diário de Notícias", em que dizia que afinal de contas a democracia é que valia a pena, que a guerra tinha acabado, enfim, um artigo declarando-se democrático. Eu então fiz uma crônica, não sei mais onde, saudando aquela adesão à causa democrática, mas dizendo que, como ele tinha aconselhado os jovens a entrarem para o integralismo, tinha obrigação, agora, de avisar aos jovens que a nova opção era a democracia. O João Mangabeira, sempre que me encontrava, dava uma gargalhada e dizia: "Como é? Quando é que ele vai avisar os rapazes?".
Lara Resende - Mas eu quero contar como é que o Alceu, depois de "O Jornal", foi parar no "Diário de Notícias". Quando o Chateaubriand ganhou importância e o Alceu, tendo se catolicizado e virado um militante da Ação Católica, perdeu importância -afinal ele anunciara em 1928 que abrira mão até do prestígio burguês que ele tinha, que vinha da família. Quando veio a Guerra Mundial e a Guerra Civil na Espanha, ele tinha uma posição que era difícil nuançar. Não havia como fazer matiz ali, não dava. Na dúvida virava suspeito dos dois lados. Quando houve o pacto germano-soviético, ninguém teve dúvida: quem estava engajado no lado soviético ficou com o pacto. Depois, com a perspectiva histórica, algumas situações parecem monstruosas, mas é preciso ver no contexto.
Eu não estou querendo defender o Alceu, mas a verdade é que ele não foi pró-vitória da Alemanha, ele não escreveu a favor do nazismo, ele não desejou a derrota dos aliados. Ele traduziu "A Noite de Agonia em França", de Jacques Maritain, que foi no momento em que a França caiu. O Maritain já estava em Princeton, nos Estados Unidos, e publicou um livro que é um dos primeiros pronunciamentos a favor da Resistência -e ele traduziu e fez um prefácio que é maior do que o livro. E nesse prefácio ele não tem uma palavra de concessão ao nazismo. Então ele já não era mais aquele porta-voz de dom Sebastião Leme. A partir de certo momento ele mudou. Ele nunca foi nazista, nunca pediu a vitória de Hitler, mas ele foi evoluindo...
Mas a certa altura o Chateaubriand já não tinha mais no Alceu a figura importante, do ponto de vista social, burguês. Até porque ele virou um pastor, um pregador. E essa inflexibilidade de suas opiniões não interessava ao Chateaubriand, que não gostava de pessoas assim, como não gostava do Rubem Braga. Chateaubriand não suportava pessoas com essa nitidez política, ideológica. Chateaubriand era um oportunista, era o camundongo que acerta o buraco no escuro.
Werneck de Castro - Mas como foi a saída dele dos Associados?
Lara Resende - Logo depois da guerra todo mundo começou a brigar com o Chateaubriand. O Rafael Correia de Oliveira saiu dos Associados e organizou-se um almoço em homenagem ao Rafael, precedido de um abaixo-assinado. Isso deve ter sido coisa do Osório Borba. E quem foi a esse almoço, quem prestigiou o Rafael, entrou na lista negra do Chateaubriand -jornalistas ou não, pouco importava. Porque o Chateaubriand tinha "black-list" no duro -e ela era executada no duro: o sujeito entrava na lista negra dele e não saía mais no jornal, era agredido pelos Associados, o Chateaubriand inventava coisas contra ele. Não tinha conversa.


"Ele queria fazer um Brasil satélite, à sombra das grandes metrópoles" MOACIR WERNECK DE CASTRO



"Odiava Brasília; Por que JK não muda a capital para a Baixada Fluminense?'" OTTO LARA RESENDE


Aí o Alceu Amoroso Lima, que nunca tinha ido a almoço de ninguém, porque nunca desceu de Petrópolis -mesmo quando estava no Rio, ele ficava em Petrópolis-, tinha sempre aquela visão burguesa de quem vê o povo lá de Petrópolis, que é até uma visão caridosa... Em 1945 quando a UDN o convidou para ser candidato a senador, ele ficou surpreso, não quis e indicou o Hamilton Nogueira, seu colega de "Coluna do Centro", que foi eleito junto com o Prestes. Mas então o Alceu -que não veio ao almoço- passou um telegrama de solidariedade ao Rafael. O Chateaubriand parou imediatamente de publicar os artigos do Alceu.
Werneck de Castro - Mas foi nessa época que você escreveu na "Coluna do Centro"?
Lara Resende - Quando eu escrevi na "Coluna do Centro", ela já era um espaço aliadófilo, maritainista, era católico de esquerda. Mas, então, voltando: o Chateaubriand ficou indignado com o telegrama do Alceu. E o Rafael nessa época era articulista diário do "Diário de Notícias" e chefe da sucursal carioca de "O Estado de S. Paulo". Era um homem veemente, que escrevia numa temperatura mais alta que o Osório Borba, que era indignado, mas ranheta, ranzinza. Enfurecido com aquilo, Chateaubriand procurou Carlos Castello Branco, a quem ele via rapidamente -porque o Castello não é de conversar senão com o Zé Aparecido- e chamou-o como o tratava sempre:
- Pequeno sabotador: não me publique mais esse homem.
O Castello ainda tentou fazer ver ao Assis que o Alceu era fundador do jornal, colaborava desde o número um, ia ficar uma situação constrangedora para todos, mas o Chateaubriand foi irredutível:
- Faça como o senhor quiser, mas aqui não sai mais. E não me desobedeça!
Bem, aí começaram a chegar artigos. Ele mandava em geral dois ou três. O Castello meteu aquilo na gaveta e ficou esperando. Aí eu não me lembro exatamente se eu era redator de "O Jornal" ou se fazia o suplemento literário. Porque o suplemento, quem fez, foi você primeiro, não é, Moacir? E depois o Vinicius, não?
Werneck de Castro - É, eu fiz mais ou menos de novembro de 1944 a março de 1945. Eu substituí o Vinicius.
Lara Resende - E, quando você saiu, entrei eu para ser diretor. Nessa época estavam lá o Carpeaux, o Zé Guilherme, o Hélio Pellegrino -e na verdade não era apenas o suplemento cultural, mas todos os suplementos, que se chamavam "Revista do "O Jornal'" -era literário, rural, o diabo. A gente ia para a oficina, paginava, pegava o paquê, tirava prova de escova -tudo o que eu já fazia em Minas. E, quando o Castello saía do jornal, à noite, nós nos encontrávamos para jantar no restaurante Colombo -não era o Colombo da rua Gonçalves Dias, era outro. Então o Castello veio me pedir ajuda, "como católico, redator da "Coluna do Centro' e amigo do Tristão", para solucionar o desconforto de ter que engavetar os artigos dele por ordem do Chateaubriand. Eu decidi ir ao "Diário de Notícias" e procurei o Orlando Dantas, com quem eu trabalhava. Contei a história e ele tinha um tal ódio do Chateaubriand que bastava os Associados serem contra alguém para ele acolher.
Braga - Diga-se de passagem que o Dantas era muito burro.
Lara Resende - Não, Rubem... Ele não era um intelectual, mas...
Braga - Perto do Chateaubriand, por exemplo, ele era uma besta.
Lara Resende - Bom... Mas do ponto de vista da inteligência o Chateaubriand não tem quem se lhe compare, como diria Jânio Quadros, nesse ranking de diretores de jornais. Talvez um Paulo Bittencourt, mas que não tinha o fascínio, o vôo do Chateaubriand. Mas aí o Dantas se animou com a perspectiva de levar "esse grande crítico do modernismo" para o seu jornal. O Tristão uma vez fizera uma espécie de hierarquia entre os ditadores -Mussolini, Hitler, Franco e Salazar- que deixara o Oswald de Andrade furioso... Mas o seu Dantas aceitou a colaboração do Tristão. Eu já tinha levado vários colaboradores para o "Diário de Notícias" -e o seu Dantas, que era muito udenista, tinha ódio ao Chateaubriand, horror ao Getúlio, que ele considerava "o mal do Brasil", a "ruína do Brasil".
Mas ele tinha um demônio, um satã, que fazia mal ao Brasil, que era o Oswaldo Aranha. Quem quisesse ganhar a simpatia do Dantas tinha apenas que falar mal do Oswaldo Aranha... Politicamente o que era o seu Dantas? Ele tinha uma vaga simpatia por um socialismo democrático -conquistado pelo Hermes Lima, João Mangabeira, esquerda democrática, aquela coisa... Tudo isso por volta de 1946. Aí o Tristão foi para o "Diário de Notícias", mas aí surge um problema: quanto pagar a ele? O seu Dantas quis saber quanto ele ganhava n'"O Jornal". O Castelinho não sabia, o Barata não sabia, finalmente descobriu-se que ele ganhava uma bobagem -ele ganhava 50 cruzeiros por artigo, e não lhe pagavam havia 17 anos. Afinal ele foi para lá ganhando 400 cruzeiros por artigo...
Braga - O Oswaldo Penido já morreu?
Lara Resende - Ô Rubem, deixa eu falar... Mas aí foi a grande fase de Alceu de Amoroso Lima. Para mostrar como foi rápida a conversão do Alceu para a democracia, basta dizer que ele foi fundador do PDC -que era uma forma de social-democracia cristã. Foi aí que ele começou sua projeção política -e daí ele foi para o "Jornal do Brasil", quando o "Diário de Notícias" desapareceu. Mas, então, resumindo, esse período do Tristão na "Coluna do Centro", de direita, durou o quê? Uns oito, dez anos, mais ou menos... Deve ter começado em 35, 36. E na guerra ele já estava pró-aliados. Mas o Chateaubriand nunca teve o menor remorso de perder um homem como o Tristão -como nunca teve com o Rafael.
Werneck de Castro - Mas fala do Chateaubriand, Otto...
Lara Resende - Já falei, sô. Do que eu me lembro mais? Bem, eu sei que, apesar daquele delírio deambulatório dele, o Chateaubriand, quando tinha que parar em algum lugar, parava n'"O Jornal", que era o ovo, o princípio, o início da vida dele. Era chamado de "o órgão líder dos Diários Associados". Tudo o mais era importante, mas era ali que ele escrevia, tinha o Figueiredo, o linotipista que entendia a letra dele, tinha o gabinete dele. Nos últimos anos ele dormia muito em público -muitas vezes em jantares ele me pedia: "Se eu dormir, você me acorda...". Tinha que cutucá-lo. E depois ele vira o homem importante.
Com a queda do Getúlio ele teve uma certa importância. O Chateaubriand optou pela queda do Getúlio e apoiou o Dutra, que tinha um verdadeiro pavor do Chateaubriand -porque o Chateaubriand era "a" imprensa. Então todas aquelas bandalheiras que o Chateaubriand fez, aquela coisa do laboratório Schering, tudo foi feito com a conivência do governo. A Schering fazia parte dos bens do Eixo incorporados à União e redistribuídos, o Virgílio Mello Franco foi nomeado interventor no Banco Alemão... E, acabada a guerra, esses bens -a Bayer inclusive- foram loteados entre os amigos do poder. E ao Chateaubriand coube o laboratório Schering, que ele usaria depois para destruir os concorrentes. Ele acabou sendo dono também dos laboratórios Raul Leite e Licor de Cacau Xavier. Eu me lembro também de ver o Chateaubriand naqueles comícios da queda do Getúlio e das comemorações da vitória, ele aparecia muito, fazia discursos, falava, aquela figura esfuziante.
Werneck de Castro - Há pouco você falou do momento em que ele conhece a condessa Pereira Carneiro. Como foi isso?
Lara Resende - Ah, isso foi muito tempo depois. É que, quando ela casou com o conde Ernesto Pereira Carneiro, que tinha ficado viúvo... Porque o conde comprou o "Jornal do Brasil" do Cândido Mendes, avô do Cândido Mendes atual -ele era conde do Vaticano, conde papalino. Nessa época áurea do Chateaubriand de que falamos, a condessa não existia, era secretária do conde -depois é que ela se casa com o conde, que não tinha filhos, não tinha herdeiros, que não deixou legado para ninguém, e ela só tinha uma filha, que é a Leda... Ou seja, foi o maior golpe do baú do mundo.
Werneck de Castro - O Chateaubriand devia ter casado com a condessa...
Braga - Ou com o conde...
Lara Resende - Então, a certa altura, numa reunião social qualquer, o Chateaubriand me disse que não conhecia a dona Maurina. Eu não acreditei naquilo, lembrei que ele tinha sido redator-chefe do "Jornal do Brasil" e ele respondeu que aquilo tinha sido "na pré-história". Então eu o apresentei à condessa. Ela, muito recatada, começou a lembrar que ele tinha sido redator-chefe do jornal, aquela coisa muito composta, ele fazendo reminiscências sobre sua chegada ao Rio e aí, surpreendentemente, passou o braço pela cintura da condessa e saiu dançando com ela pelo salão. Isso deve ter sido perto dos anos 50...
Werneck de Castro - Eu também já dancei com a condessa, mas foi no Cairo...
Lara Resende - O Chateaubriand tinha aquela posição extremamente antinacionalista e aquela coragem na tribuna do Senado, e falava todo dia. Quando estava lá, ele falava. Eu era repórter, cobria o Senado. E o Kerginaldo Cavalcanti, que era um senador que defendia o monopólio do petróleo, vivia às turras com ele. A minoria nacionalista era ruidosa. E sempre que ele chegava, de chapéu, já ia pedindo a palavra, impondo um temor reverencial. E ia de um assunto para outro. Ele tinha uma visão muito otimista, muito de futuro, mas seria aquilo que hoje se chamaria de uma visão multinacional -ele era o símbolo do entreguismo. O Arthur Bernardes dizia que o Chateaubriand era "um caixeiro-viajante da Standart Oil"... Ele primeiro paparicou os ingleses, depois os americanos.
Werneck de Castro - É preciso lembrar ao Fernando (Morais) que essa gente representava os interesses ingleses e americanos no Brasil - Eugênio Gudin, Raul Fernandes, Percival Farquhar, Manuel Leão, o Guinle com as docas de Santos- e as ligações do Chateaubriand com esse pessoal.
Lara Resende - Esse tipo de interesses tinha no Chateaubriand um defensor aguerrido, descarado. Ele no Senado fazia uma defesa absoluta desses interesses -ele na tribuna era um inferno. Ele tinha um projeto de Brasil. A venalidade dele, em seu ponto de vista, não era crime.
Werneck de Castro - Ele queria fazer um Brasil satélite, queria fazer um Brasil à sombra das grandes metrópoles...
Lara Resende - Um dia eu ia saindo do banheiro do Senado e ele estava chegando. Nos cumprimentamos e eu comentei com ele que o banheiro do Senado era um negócio nojento, nauseabundo. Eu não cobria o dia-a-dia, só fazia o "off". Levei-o para ver a sujeira das latrinas e ele se impressionou com aquilo, e eu, malandramente, sugeri que ele fizesse um discurso sobre aquilo. Pois não é que ele foi para a tribuna e fez um discurso dizendo que "um país que não tem as latrinas limpas não pode ter democracia"? Ele começou falando das latrinas para pedir "um governo autoritário, que limpasse a latrina em que tinha se transformado o Brasil". Pediu o fim da democracia, fez um discurso apocalíptico.
Werneck de Castro - E o fim da vida dele, como foi?
Lara Resende - Quando tomou partido contra o "Última Hora", do Samuel Wainer, ele escreveu um artigo extremamente cruel, que terminava, se não me engano, dizendo que "fulano de tal foi isso, beltrano fez aquilo, Carlos Lacerda foi o promotor. De Samuel Wainer resta remover o cadáver". E ele estava brigado com Lacerda. Se não foi exatamente assim, foi pior. Eu nunca tive razões para ter intimidade com ele. E já vim muito prevenido contra o Chateaubriand -ele já era um pouco sinônimo de imprensa venal, de corrupção. Mas ele tinha o lado pioneiro, inteligente. E, embora tivesse horror a quem divergisse dele, tinha também um fascínio e uma enorme capacidade de identificar talento. E o Lacerda faz um artigo elogiando a campanha dele para o Senado. Não é à toa que ele teve, apesar de suas posições, os melhores profissionais do Brasil nos seus jornais.
Werneck de Castro - Ele e o Samuel talvez fossem os dois diretores de jornal que mais tiveram tino e instinto para procurar os seus talentos no mercado.
Lara Resende - O que ele nunca suportou no Samuel -e partiu para agredi-lo por causa disso- é que ele tivesse se transformado num competidor. E o Samuel também nunca acreditou que o Chateaubriand fosse ficar contra ele como ficou -e nunca imaginou que o Chateaubriand um dia fosse fazer as pazes com Carlos Lacerda. Eu me lembro de ter ido levar o Samuel em casa, no parque Guinle, de madrugada, em plena guerra movida contra ele pelo Lacerda, e o Chateaubriand não tinha aderido ainda à campanha contra o "Última Hora". E o Samuel, ingenuamente, coisa que eu acho que o Chateaubriand não cometeria, achava que o Chateaubriand não se reconciliaria com o Carlos Lacerda e que não daria acesso ao Lacerda à televisão para malhar o Samuel.
O Lacerda já estava se preparando para ocupar a TV Tupi e o Samuel ainda achava que o Chateaubriand não daria espaço a ele. E o Chateaubriand entrou na briga associado ao Lacerda de uma maneira brutal, implacável, como nesse artigo em que chamava o Samuel de "cadáver". E eu tive oportunidade de conversar com o Chateaubriand sobre isso. Foi uma das raras vezes que ousei comentar atitudes dele. A outra tinha sido naquela campanha dele contra Franklin de Oliveira e Neiva Moreira lá no Maranhão. Quando os ataques dele ao Samuel chegaram ao paroxismo, eu disse a ele, com muito cuidado:
- Mas, dr. Assis, a águia não pode descer ao galinheiro. O senhor tem tantas causas para combater e está descendo muito, está entrando na mesquinharia... Um general como o senhor não pode usar metralhadora para matar galinha.
Achei que aquilo fosse mexer com o ego dele, que era enorme, e fazê-lo desistir daquela campanha. Mas ele era um homem que, quando brigava, não tinha qualquer inibição de ordem moral. Ele me deu uma resposta curta:
- Seu Otto, essa sua argumentação é tão cretina quanto o patife que o senhor quer defender. Não toque mais nesse assunto comigo.
Para começo de conversa, o Chateaubriand tinha a perfeita noção de que o Brasil era governado por um poder elaborado num círculo restrito ao qual, se ele não pertencia, pelo menos ele influía nele. Com Getúlio havia a relação cordial, mas não permitia a abordagem ao estilo Chateaubriand. O Dutra tinha um medo pânico do Chateaubriand, não quis contrariar o Chateaubriand -tinha medo de rádio, de jornal, de televisão. Ao Getúlio ele tratava com ambiguidade -o Getúlio tinha aquela coisa nacionalista, dos humildes, que contrastava com o Chateaubriand.
Sobre Juscelino, o Chateaubriand tinha uma certa ascendência, os dois tinham aquela visão louca do Brasil, de um grande país à maneira deles. Mas o Chateaubriand tinha horror a Brasília. Verdadeiro horror. E acabou sendo uma coisa cruel do destino que o Chateaubriand tenha tido a trombose no dia da inauguração de Brasília. Até onde eu me lembro ele não agredia nem atacava Brasília ou o Juscelino abertamente, mas tinha verdadeiro horror. Quando eu lhe perguntei se Brasília não era uma maneira de ocupar o país, ele ficou indignado:
- Já que Juscelino quer mudar a capital, por que não muda para a Baixada Fluminense? Aquilo é muito melhor que o sertão goiano!
E o Juscelino, ao nomear o Chateaubriand embaixador, fez algo que o Getúlio não faria. O Getúlio daria um jeito de contornar esse problema. Mas o Juscelino não só fazia o que o Chateaubriand queria, como tinha até interesse em se ver livre dele. Em Londres ele deixou o governo em paz. Ele tinha um traço curioso: em Londres ele fazia questão de ser o vaqueiro, o nordestino, era o folclore dele. E no Brasil era o britânico, o representante de Londres, o que recebia homenagens na Bahia de fraque, casaca e cartola. Apesar da centelha de gênio, aqui ele transmitia um certo desdém, quase um desprezo pelo Brasil. Ele se considerava um ser de escol, de elite. Ele quis fazer campanhas pela criação de uma elite nacional... Tudo dele era no sentido de aprimorar o Brasil para transformá-lo numa pátria digna de Assis Chateaubriand.



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