São Paulo, domingo, 17 de janeiro de 1999

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PONTO DE FUGA

A analogia da identidade

JORGE COLI
em Nova York

Os mais jovens que se interessam pelas artes decerto não fazem idéia do que foi o tirânico domínio da abstração nas décadas de 50 e 60. A essência do artístico parecia ter chegado com a definitiva eliminação de um erro que persistira desde o início dos tempos: a imitação do visível. Para ser aceita, uma imagem devia ser disfarçada, e quanto mais, melhor. Senão, não era arte, era lixo. "Na escola, eu era obrigado a ser moderno. Tentei fazer abstração. Mas sempre punha um braço ou um nariz." Declarações do escultor Duane Hanson (1925-1996), que foi um modesto professor até os anos 60, quando, enfim, graças à nova liberdade da pop art, passou a fabricar figuras causadoras de grande impacto. Elas lembram as de um museu de cera, mas Hanson configura -com minúcia maior- pessoas comuns: trabalhadores, turistas, aposentados, crianças. Nenhuma fotografia permite perceber o poder dessas presenças. Sua atual retrospectiva no Whitney Museum demonstra a insubstituível e estranha experiência. Não se sabe nunca quantas pessoas "reais" estão na sala. O espectador confunde-se com as obras. Com um ar ausente, elas provocam uma aflitiva melancolia por encontrarem-se num hiato inativo, indicando o absurdo das ações que preenchem suas vidas. Mais ainda, estão lá para serem vistas, e o público descobre-se um voyeur paradoxal, podendo detalhar a orelha, os pelos do nariz, ou ler por cima do ombro de alguém que poderia ser um de nós.

SANGUE - "Electra", de Sófocles, sob a direção tensa de David Leveau, no Ethel Barrimore Theatre. Cenário: entrada de um velho galpão, com tijolos aparentes e enorme porta corrediça, terra solta no chão, canalizações no alto que gotejam durante o espetáculo. Uma grande prancha branca, lisa, inclinada sobre um capitel, única reminiscência clássica. Mundo "pós-Armageddon", devastado, mas oferecendo uma suave harmonia na combinação de matérias e de tons. Electra é uma formidável atriz, Zoë Wanamaker; ela surge num grande casaco surrado, comporta-se como um clown, lembra a Gelsomina de "La Strada". O espectro de sua voz soa inesgotável, estranho, rouco, ora agudo, ora grave. Em contraste, Clitemnestra possui a suprema beleza de Claire Bloom e um timbre pleno, magnífico. A contenda entre ambas, filha desesperada e grotesca, mãe elegante e soberana, fez tremer a platéia. O sofrimento de Electra diante das falsas cinzas de Orestes, o reencontro dos dois, impõe a magia de um grande teatro que sabe arrancar lágrimas, ligando épocas remotas às nossas próprias angústias.

RAIOS - Em "A Tempestade" (1860), Ostrovsky criou uma Mme. Bovary sem bovarismo, sinceramente apaixonada, vítima de uma sociedade mesquinha. Esse grande texto foi transformado em ópera por Leos Janacek em 1921, que a intitulou "Katya Kabanova", obra-prima indiscutível. A "Met", em NY, retoma uma antiga produção muito anêmica, e o espetáculo se salva pela fortíssima regência de Mackerras e pela dramática interpretação de Catherine Malfitano no papel da protagonista.

MONSTROS - Professores de um colégio tomados por alienígenas, na tradição de "Body Snatchers": a idéia é bastante boa. Porém, desde "El Mariachi" -cuja paupérrima primeira versão mexicana (US$ 7.000 de custo) fez imenso sucesso, revelando um diretor astucioso- que Robert Rodriguez foi devorado por Hollywood. Seu novo filme, "The Faculty", tem um bom início, ótimas situações, personagens e um elenco formidável, mas termina inundado por efeitos especiais supérfluos e naufraga em dinheiro.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com




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