São Paulo, domingo, 17 de fevereiro de 2002

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+ memória

A aprendizagem do crítico

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Profissionais trabalham na Redação da "Folha da Manhã"/"Folha da Noite", em prédio na rua do Carmo (SP), nos anos 40


Leia, a seguir, carta em que Antonio Candido comenta o ambiente da Folha nos anos 40 e relembra como a coluna que passou a assinar no jornal aos 24 anos impulsionou sua carreira

Prezado sr. Octavio Frias de Oliveira,

Parabéns pelos 80 anos da Folha. Vendo o noticiário, fiquei pensando que sou talvez um dos colaboradores mais antigos ainda vivos, pois publiquei nela o primeiro artigo em janeiro de 1943. Isso me faz remontar ao passado, repassando recordações que talvez lhe interessem. Não garanto a exatidão de muitos dados, pois na minha idade a memória arma curiosas ciladas. Mas como se trata de carta pessoal, os erros serão menos perniciosos.
Para mim tudo começou quando, em 1942, o proprietário, Otaviano Alves de Lima, resolveu modernizar o jornal. Foi então contratado como superintendente Jorge Martins Rodrigues, que orientou a reforma. O secretário de Redação era Hermínio Sacchetta e ambos foram os iniciadores da nova fase. Jorge era amigo de Lourival Gomes Machado e o chamou para a crítica de arte; e como resolveram estabelecer a figura do "crítico titular", que devia semanalmente comentar os livros novos em artigo situado no rodapé, Lourival me indicou, pois fazíamos parte do grupo de jovens reunidos em torno da revista "Clima", fundada em 1941. Sacchetta, que eu não conhecia, me entrevistou longamente e deu sinal verde. Assim, me tornei aos 24 anos crítico de um jornal importante e me lancei na vida intelectual em larga escala.
Pelo mesmo tempo, Guilherme de Almeida, então figura de absoluta primeira plana, passou a fazer uma crônica diária e, pouco depois, Mário de Andrade iniciou o rodapé hebdomadário "Mundo Musical", uma das seções mais importantes que já houve na imprensa brasileira.
O jornal funcionava num velho prédio da rua do Carmo, perto do Salão das Classes Laboriosas, ficando a Redação no primeiro andar, ao cabo de uma escada espremida entre paredes, com os degraus de madeira já muito gastos. Eu ia lá aos sábados à tarde, levar o meu rodapé, que saía aos domingos. Eram de cinco a seis laudas tamanho ofício, com 30 linhas de 70 toques, cujo revisor era um estudante de direito que também ainda está vivo, Hideo Onaga. A remuneração era boa, para um novato: no começo, 100 mil réis por artigo; depois, 150. Já Mário de Andrade, grande e famoso escritor, ouvi dizer que ganhava 400 mil réis por artigo.
Na redação eu me detinha a conversar com Sacchetta, jornalista competentíssimo, de grande inteligência e extraordinária vivacidade. Quem encontrei lá muitas vezes nos primeiros tempos, e parece que exercia uma espécie de preeminência, foi Rubens do Amaral. Creio que na fase precedente fora o mentor, e, para muita gente, encarnava a Folha, pois esta procurava atender aos interesses da lavoura e ele era um especialista no ramo. Não lembro se ainda colaborava regularmente, mas era um figurão da casa. A ele devo algo importante, pois certo dia me disse abruptamente: "Eu não leio os seus artigos", e explicou por quê: "Você não abre parágrafos". Ensinou-me, então, que é preciso arejar a matéria, dividindo-a segundo as unidades de pensamento, de maneira a deixá-la clara e facilitar a leitura.
Naquele tempo ainda havia uns restos do velho hábito jornalístico da colaboração em verso, de tom jocoso ou satírico. Quem se encarregava dessa parte era Otacílio Gomes, já de meia-idade, cujas produções, às vezes longas, mas divertidas, eram frequentemente ilustradas por Belmonte, que encontrei várias vezes na Redação, sempre polido e reservado. Lembro também de Vítor de Azevedo, amigo e correligionário de Sacchetta, não sei se apenas colaborador ou exercendo alguma função, que naquela altura publicou um livro interessante: "Feijó - Vida, Paixão e Morte de um Chimango". Lembro, ainda, de Luís Amaral, que se não me engano escrevia sobre cooperativismo e era autor de um livro sobre assunto então pouco versado aqui: as civilizações pré-colombianas.
Quem talvez prestasse serviços à Folha, pois estava sempre lá, era (José?) Ribeiro Pena, rapaz muito simpático que trabalhou durante anos em Londres, na BBC. E acho que pertencia ao quadro Herculano Cruz, que um dia me alertou para tomar cuidado, pois o escritor Fulano tinha comprado uma bengala para me bater, devido a um rodapé bastante restritivo sobre o seu último romance. Felizmente a ameaça não se cumpriu... Eu era um jovem crítico por vezes severo, e alguns dos meus artigos, contundentes; mas no caso a dureza se justificava.
Naqueles anos a Folha se impôs como jornal de qualidade, não só pela orientação ágil e inteligente de Sacchetta, mas devido ao mérito da maioria dos colaboradores, a começar por Guilherme de Almeida e, sobretudo, Mário de Andrade, sem falar nos avulsos, como Otto Maria Carpeaux. Foi nela que se lançaram para um público maior intelectuais do porte de Lourival Gomes Machado e Florestan Fernandes. Este ganhou logo a estima de Sacchetta, que o encarregou de fazer a cobertura do 1º Congresso Brasileiro de Escritores, no fim de janeiro de 1945. O Congresso foi um verdadeiro acontecimento, reunindo intelectuais de várias tendências, animados pelo espírito de oposição à ditadura do Estado Novo. No fim, reivindicou a volta das liberdades democráticas num manifesto que não pôde ser divulgado nos jornais e correu em volantes.
A censura era feroz, e creio que a partir de certo momento o seu executor em São Paulo, um oficial do Exército, optou pela forma mais temível: a autocensura. Os jornais deviam eles próprios decidir o que podia ou não ser publicado, arcando com as consequências. Sacchetta, ardente militante de esquerda, era obrigado a contemporizar no interesse da Folha, e certa vez resolveu não publicar um rodapé onde eu tomava a defesa de Erico Verissimo, atacado por um padre do Rio Grande do Sul como autor imoral e pernicioso.
O Congresso de Escritores coincidiu com uma virada dramática no jornal. No fim de janeiro soubemos que o proprietário, sem avisar ninguém, o tinha vendido "de porteiras fechadas". A revolta foi grande e muita gente se demitiu, inclusive Sacchetta, Guilherme de Almeida, Lourival e eu. (Mário de Andrade morreu dali a menos de um mês e creio que Jorge Martins Rodrigues tinha deixado o jornal fazia tempo, acabada a sua tarefa reformadora). Por isso, não cheguei a publicar o último artigo de uma série de quatro sobre T.S. Eliot. Os demissionários fundaram depois o "Jornal de São Paulo", que era bem feito, mas não conseguiu sobreviver. Não colaborei nele.
Resumindo, eu diria que foi na Folha que me tornei conhecido e amadureci o meu tirocínio de crítico militante, tarefa difícil, pois tem como pressuposto a capacidade de avaliar em cima da hora quais são os que valem e os que não valem entre os livros que vão aparecendo e são muitas vezes devidos a estreantes desconhecidos, de tal modo que o erro ou o acerto decidem a reputação do crítico. A condição de "crítico titular" foi uma grande oportunidade de aprendizagem.
Com os votos de mais 80 anos de bom serviço, aqui fica muito atenciosamente o
Antonio Candido de Mello e Souza

P.S. De repente me lembrei: quem sugeriu o convite a Mário de Andrade para colaborar regularmente foi Guilherme de Almeida.


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