São Paulo, domingo, 17 de abril de 2005

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Defesa da supremacia étnica cultivada pelo imperialismo japonês determinou o atual nacionalismo de Estado na China e Coréia do Norte e explica a passividade das populações aos regimes totalitários

A pátria ideológica

Kim Kyung-Hoon - 21.ago.2003/Reuters
Norte-coreanas seguram bandeiras do país durante abertura de jogos universitários, em Taegu (Coréia do Sul)


IAN BURUMA

No nordeste da China, a aproximadamente 32 quilômetros de Harbin, podem ser vistos os remanescentes de um imenso complexo murado, equipado com celas de prisão, locais usados para cirurgias, quartéis, incineradores e até mesmo um aeroporto particular, onde, durante a Segunda Guerra Mundial, médicos do Exército japonês pertencentes à unidade 731 conduziram experimentos médicos, em sua maioria fatais, com prisioneiros chineses, coreanos e russos.
Na realidade, nada resta do complexo exceto partes do incinerador e o principal prédio administrativo. O resto foi destruído pelos japoneses antes de sua derrota, em 1945.


Trata-se de um nacionalismo étnico somado a um darwinismo social; os fracos devem morrer


Hoje, o prédio administrativo abriga um dos muitos museus criados recentemente na China para exibir as atrocidades infligidas aos chineses pelas forças do Japão. Muito dinheiro e muita atenção foram investidos nesses museus.
A maioria foi construída nos últimos dez anos, mais ou menos, e outros estão sendo erguidos neste ano de aniversário do fim da "guerra antijaponesa", como ela é chamada na China.
Os museus são um misto peculiar de câmaras de horrores e memoriais sagrados que destacam o chamado "martírio" chinês. Sua arquitetura com freqüência trai a influência do museu judaico de Daniel Libeskind, em Berlim, embora não possuam nada de seu refinamento artístico. Eles seguem um estilo memorial genérico, feito de extremidades rasgadas e espaços quebrados.
Passei o dia de Natal no museu de Harbin, examinando diversas atrocidades recriadas em "quadros vivos" feitos de pedra ou cera. Ali é possível ver como as vítimas eram sujeitas a experimentos com congelamento ou então submetidas à vivissecção, como recebiam injeções de germes fatais ou eram atacadas por bombas contendo ratos ou pulgas contaminados. Uma dessas cenas, que mostra camponeses morrendo de tifo, uma morte atroz, é acompanhada por sons amplificados de gemidos e gritos.

Educação patriótica
O objetivo de tudo isso é exposto em textos escritos nas paredes (acompanhados, em um museu desse gênero, em Shenyang, por olhos que choram lágrimas de sangue): deixar claro que o povo chinês, com seus 5.000 anos de civilização, nunca mais se deve deixar humilhar por agressores estrangeiros.
Apenas uma nação grande e forte poderá garantir a sobrevivência da raça chinesa. É o que é conhecido na China como "educação patriótica". E o museu em Harbin é descrito oficialmente como "local de educação patriótica".
Esse patriotismo, baseado num sentimento coletivo de vitimização e na determinação em fazer da China a sobrevivente suprema entre as nações, acabou por tomar o lugar do marxismo-leninismo e do pensamento de Mao Tse-tung como a ideologia oficial da República Popular da China. Os líderes do governo chinês são hábeis em utilizar a culpa japonesa pela guerra para influir sobre a diplomacia sino-japonesa.
Um dos maiores pomos de discórdia entre os dois países é o fato de o primeiro-ministro do Japão, Junichiro Koizumi, prestar seus respeitos no santuário de Yasukuni, em Tóquio, onde são veneradas as almas daqueles que morreram pelo imperador (incluindo criminosos de guerra condenados por suas ações). Quando o Japão protestou contra uma recente investida de um submarino chinês em águas japonesas, os chineses trouxeram à baila novamente a questão de Yasukuni.
Os coreanos, tanto os do Sul quanto os do Norte, são tão afeitos quanto os chineses a definir sua identidade nacional em termos da agressão japonesa. A legitimidade da dinastia Kim, na Coréia do Norte, é baseada no papel em grande medida mítico exercido por Kim Il-sung como herói da resistência antijaponesa.
Na Coréia do Sul, boa parte do museu patriótico erguido perto de Seul pelo último regime militar do país, na década de 1980, é dedicada ao mesmo tipo de "quadros vivos" vistos na China, mostrando japoneses demoníacos e coreanos martirizados. A mensagem é semelhante: para que possa sobreviver, a Coréia precisa ser disciplinada e forte.
Talvez Koizumi devesse ter mais sensibilidade em relação aos sentimentos das antigas vítimas de seu país, como observa com freqüência a imprensa liberal japonesa. Com certeza, os crimes do passado -não importa a que país esse passado pertença- não devem ser esquecidos.

Raça superior
Não obstante há algo de perturbador na ideologia patriótica do Leste asiático, especialmente na chinesa. O fato de a verdade sobre os massacres cometidos pela China contra seus próprios cidadãos ainda ser oculta, enquanto os sentimentos antijaponeses são alimentados continuamente, cheira a hipocrisia. Muito mais chineses morreram às mãos do presidente Mao do que pelas mãos do Exército imperial japonês.
Mas há outra coisa, também. A educação patriótica é repleta de um tipo de nacionalismo -nascido na Europa e transplantado na China e na Coréia, muitas vezes passando pelo Japão- que já teve conseqüências mortíferas no passado. Trata-se de um nacionalismo étnico somado a um darwinismo social. É a luta pela sobrevivência das nações e das raças que têm as melhores condições para isso. Os fracos devem morrer.
Essa idéia implacável e impiedosa foi atrelada à causa da conquista norte-americana e do imperialismo europeu, hoje defunto. A propaganda política da Primeira Guerra, especialmente na Alemanha, era profundamente imbuída dela.
O anti-semitismo nazista e o genocídio resultante representaram uma versão extrema dessa idéia. E foi ela que motivou os conquistadores japoneses na China e na Coréia na primeira metade do século 20. Na condição de raça superior na Ásia, como era dito aos súditos japoneses, era dever deles revigorar as raças asiáticas mais fracas, com a ajuda de um firme estalido do chicote imperial.
Agora os chineses estão ouvindo que apenas disciplina, vigilância e força nacional ainda maiores poderão salvar a China de humilhações futuras. O patriotismo cívico do tipo republicano francês ou tradicional norte-americano não tem lugar num sistema autoritário como é o da República Popular da China, muito menos o idealismo pós-nacional indefinido da União Européia.
O pacifismo oficial do Japão, que está desmoronando rapidamente, não exerce grande apelo. Ideologicamente, a República Popular da China, assim como a Coréia do Norte -e, em grau bem menor, a Coréia do Sul- estão presas com firmeza no final do século 19, a época em que as idéias darwinistas primeiro causaram impressão.
Nos últimos 200 anos, a influência ocidental no mundo não-ocidental tem sido em parte ligada a uma luta ideológica cujos ecos ainda podem ser ouvidos hoje, inclusive no Oriente Médio. Deve o conceito moderno de nação ser erguido com base em sangue e solo ou em um senso comum de cidadania? Democracia liberal francesa ou anglo-saxã ou autoritarismo russo-germânico?
Ambos os modelos tiveram seus altos e baixos, mas o último geralmente saiu vencedor no Extremo Oriente, pelo menos até algumas décadas atrás. Ele ainda está ganhando na China, e uma das razões é o histórico de agressões do Japão.
Quando o então primeiro-ministro japonês Tanaka Kakuei teve um primeiro encontro com o presidente Mao, em 1972, este teria agradecido calorosamente ao líder japonês, já que, em suas palavras, sem a guerra japonesa o comunismo teria sido derrotado. Ele tinha razão. Mas o nacionalismo chinês pós-Mao deve igualmente aos japoneses. E há lições importantes a tirar disso, à luz do que acontece no Iraque hoje.
Durante o período Meiji, no final do século 19, o Japão era fonte de inspiração para os reformistas asiáticos. Depois de passar por sua própria revolução, na década de 1860, o Japão se tornou modelo de modernidade ocidentalizada. O liberalismo e o darwinismo social freqüentemente andavam de mãos dadas. Um dos grandes livres-pensadores japoneses do século 19, Fukuzawa Yukichi, era obcecado com a idéia do vigor nacional.

Melhoria genética
Ele era defensor acirrado das liberdades civis, mas também acreditava que os japoneses deveriam se casar com ocidentais e comer mais carne para fortalecer seu físico e melhorar o pool genético nacional. Liang Qichao, um reformista chinês destacado, recebeu muitos de seus conhecimentos do Ocidente de Fukuzawa e outros intelectuais japoneses.
Mas seu darwinismo social era de tipo mais autoritário. Ele acreditava que "liberdade significa liberdade para o grupo, não para o indivíduo". Para evitar ser escravizado por outras raças, dizia, devemos ser escravos da nossa própria raça.
Essa idéia profundamente não-liberal também contribuiu para o nacionalismo leninista de Mao. O relativo êxito do Japão -até a tomada do poder por ultranacionalistas, na década de 1930- em erguer instituições liberais deveria haver servido à causa da democracia asiática.
Em lugar disso, porém, os japoneses pensaram que deviam impor a outros asiáticos sua versão própria de modernidade, sem democracia. O imperialismo militar japonês não deveu quase nada às idéias liberais e muito mais à versão mais autoritária do darwinismo social.
A Manchúria foi transformada em Estado fantoche japonês, onde os japoneses construíram as ferrovias mais modernas do mundo, belos hotéis, grandes instalações industriais, hospitais excelentes e uma burocracia eficiente, tudo em nome da modernização asiática. Na propaganda oficial, o nacionalismo étnico japonês abriu caminho ao nacionalismo asiático. Isso agradou a alguns setores da elite chinesa, mas não convenceu à maioria das pessoas.
Então os japoneses tentaram conquistar o resto da China pela força, adotando um ar de superioridade racial e cultural que era profundamente humilhante para os chineses.

Súditos inferiores
O nacionalismo étnico teve papel ainda maior na Coréia. Como os taiwaneses, mas diferentemente dos chineses, os coreanos foram feitos súditos do imperador japonês, forçados a adotar nomes japoneses e proibidos de usar sua língua própria. Como o japonês "puro" ainda era visto como superior, coreanos e taiwaneses foram levados a sentir-se como súditos japoneses inferiores.
Apesar dessa humilhação, muitos membros das elites coreanas e taiwanesas colaboravam com seus senhores japoneses, acreditando ser esse o caminho mais rápido até a força nacional e a modernização.
Embora a tentativa japonesa brutal de impor um imperialismo moderno tenha fracassado, boa parte de sua propaganda foi convincente. Os chineses e coreanos se convenceram, mais do que nunca, de que sua sobrevivência étnica dependia do vigor étnico e da força nacional, baseados em instituições autoritárias.
Seguindo a linha de Liang Qichao, eles seriam escravos de seus próprios líderes, para nunca se tornarem escravos de estrangeiros. É isso o que explica que o vazio ideológico deixado pela morte do maoísmo (mas não do Partido Comunista) tenha sido tão rapidamente preenchido pelo nacionalismo étnico. E também explica por que a questão de Taiwan continua a ser explosiva.
Do ponto de vista do nacionalismo baseado em sangue e solo, a independência de Taiwan é uma abominação, algo que não permite à China esquecer a humilhação do imperialismo japonês. Mas os taiwaneses, especialmente aqueles cujos antepassados deixaram a China continental séculos atrás, enxergam a situação de outra maneira. Eles já são democratas. O fato de falarem chinês não constitui motivo para se submeterem a um governo autoritário sediado no continente chinês.
Os coreanos do sul também já se tornaram democratas. Não é coincidência, com certeza, que, com instituições mais abertas, a satanização do Japão diminua. Na verdade, as relações com o Japão poucas vezes estiveram tão boas. O alvo do opróbrio histórico se deslocou do Japão propriamente dito para os antigos colaboradores coreanos, hoje oficialmente denunciados como traidores do povo coreano.

Traidores, simplesmente
Para fazer essa idéia "pegar", foi redigida uma lei que proíbe o uso do termo "pró-japonês" na descrição oficial desses vilões. Eles são traidores, pura e simplesmente. Pode ser que isso não passe de iniciativa populista de um governo "antielitista", mas o fato de uma lei tão peculiar ter sido proposta mostra até que ponto são fortes os sentimentos despertados em torno do passado recente.
A mobilização autoritária em nome da guerra darwiniana certamente é capaz de desencadear energias imensas entre povos. Talvez os surtos extraordinários de crescimento econômico na China e na Coréia do Sul não pudessem ter acontecido sem o patriotismo acirrado e a disciplina rígida que acompanha esse darwinismo.
Mas essas energias também podem ser atreladas a causas mais sombrias, tais como a conquista externa. O Extremo Oriente não é a única parte do mundo em que essa luta típica do século 19 continua a ser travada, e cabe a nós, que vivemos no Ocidente, ficarmos atentos a ela -entre outras razões porque fomos nós quem começamos tudo isso.

Ian Buruma é escritor e "fellow" no Instituto Woodrow Wilson de Humanidades, em Washington, e professor no Bard College, em Nova York. É autor de "A Japanese Mirror" (Um Espelho Japonês, Vintage Books) e "Bad Elements" (Maus Elementos, Random House), entre outros. Este texto foi publicado no "Financial Times".
Tradução de Clara Allain.


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