São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Campeonato de irrelevâncias

Mobilização em torno da economia de energia mostra que brasileiros são determinados, mas falta grandeza de objetivos

por Jurandir Freire Costa

A maioria dos brasileiros respondeu com prontidão à crise de energia elétrica. O consumo de luz, antes mesmo de vigorar o racionamento, diminuiu de forma significativa. A atitude surpreendeu alguns analistas políticos e cientistas sociais. Como interpretar a eficiência das pessoas comuns comparada à incompetência dos governantes e dos empresários do setor? Tratar-se-ia, uma vez mais, de repetir o conhecido jargão esperançoso, "povo bom, elite ruim"? Ou será que o civismo, diante da decepção com os políticos, só estaria vindo à tona em vésperas de catástrofes naturais? Deixo aos especialistas a tarefa de encontrar o sentido político-social do episódio. Concentro-me em outro aspecto, a disposição para reagir a acontecimentos do gênero. É possível que a presteza dos brasileiros em economizar energia tenha tido a ver com a ameaça das multas e com o fantasma hollywoodiano -por enquanto!- de um mundo escuro e desértico. Mas, além disso, pode ter a ver com facetas insuspeitas de nossas condutas éticas, em especial as relacionadas à vontade e à responsabilidade.

Infantilidade tem hora
Em primeiro lugar, a imagem do brasileiro idiotizado pelos "bate-palminhas" dos programas televisivos de domingo cai por terra. Infantilidade tem hora. Se a coisa é séria, nos apressamos em voltar a ser adultos nem que seja por alguns dias ou meses do ano. Alugamos facilmente nossas cabeças se se trata de negociar os anéis; na hora de perder os dedos queremos de volta o comando de nossos destinos. Primeiro alerta, portanto: nos conduzimos de forma pueril enquanto acreditamos que o economista "ultramoderno", o político demagogo, o empresário do ano ou o novo guru da auto-ajuda conhecem o caminho do Xangri-Lá. Ao constatarmos, porém, que a diferença entre nós e eles é apenas de grau de cupidez ou diplomas a menos e a mais, recobramos o poder de agir e renunciamos à alienação à vontade do outro. Ser tutelado é uma comodidade mental que passa a incomodar se o assunto são as condições básicas de vida. Nesse caso, só existe um "expert", nós próprios. Somos nós ou o desastre. Em segundo lugar, só bancamos os bobos alegres enquanto vivemos em situações de segurança rotineira ou de radical sentimento de impotência. No primeiro caso porque não corremos risco algum; no segundo porque o risco é tão grande que precisamos minimizá-lo pela negação. Às vezes é melhor fingir que nada acontece do que ter consciência de que nada pode ser feito. Se as dificuldades, todavia, não superam os meios que temos de enfrentá-las, damos um jeito e encontramos saídas. Segundo alerta, portanto: muitos obstáculos, de fato, são insolúveis. A maior parte, entretanto, assume essa aparência porque ignoramos o poder de nossa vontade. Exemplo típico é o estilo de vida subordinado à moral do mercado e do consumo. Disseram-nos, por décadas, que fora dessas "Arcas" não haveria salvação. Muitos acreditaram e responderam amém. Em duas ou três semanas, entretanto, legiões de crentes no decálogo do mercado e do consumismo se desfizeram de objetos sem os quais diziam não poder viver. Os sacerdotes do mercado, por sua vez, não hesitaram em renegar, sem o menor pudor, o conteúdo de seus mais sagrados sermões. O que era "imprescindível" anteontem se tornou bom para sucata hoje. Antigos amuletos da felicidade global, vendidos a preço de ouro ou exibidos como vitrines da existência moderna, perderam o prestígio. De repente, pasmem!, todos podemos passar sem "uma hora a mais de shopping center", sem freezers, microondas, ares-condicionados ou potentíssimos aparelhos eletroeletrônicos.

Mocinhos e vilões
O mocinho, no conto da globalização, virou vilão. A vítima, agora, é a "mãe natureza", até pouco tempo ridicularizada como mania de desmiolados defensores de samambaias e micos-leões. Em outros termos, muita coisa tida como "essencial à vida" foi para os ares com um peteleco, e estamos todos vivos, alguns, inclusive, fazendo planos de consumo para "depois da chuva". Em terceiro lugar, o mais importante. Nos últimos tempos, passamos a discutir as características psicossociais do "sujeito pós-moderno", procurando entender o comportamento das elites brasileiras. Esse sujeito, diz-se, é alguém que perdeu o sentido da autonomia e da vontade, em meio à diversidade de modelos de identidade pessoal oferecidos. Hoje não sabemos o que somos porque não sabemos o queremos ser. A proliferação de informações, a pluralidade de padrões sexuais e sentimentais, a insegurança profissional, a relativização das verdades morais e, enfim, a fragilidade das instituições formadoras de identidades desorientaram os indivíduos. O excesso causou a escassez. O sujeito, privado dos valores tradicionais, passou a se identificar com os personagens de sucesso midiático e a se tornar um mero consumidor de sensações e desejos imediatos. A pretensa riqueza de opções resultou, na verdade, em um massacrante conformismo, responsável pelo abandono dos ideais de justiça e liberdade comuns a todos. O indivíduo pós-moderno, em tese dono de uma liberdade irrestrita, se tornou um pífio clone do que a cultura tem de mais pobre e massificado.

Sujeito bifronte
A interpretação é plausível. A cultura brasileira das elites, entretanto, é mais complexa em seu dinamismo. Convertemos, sem dúvida, os indivíduos à ideologia do prazer de si e para si. Exigimos deles, em contrapartida, um domínio dos impulsos digno dos Padres do Deserto. Prazer, sim! Mas ao custo da autodomesticação, do esforço tirânico para dobrar a si mesmo quando e se necessário. O brasileiro de elite já foi definido como passional, sensual, gentil, servil, cruel ou qualquer outro adjetivo imaginado pelos que aceitam a idéia de um "caráter nacional". É possível que ele seja tudo isso ou nada disso. Em todo caso, no presente, é um sujeito bifronte com um lado hedonista em luta permanente com o lado ascético.
A gemelidade emocional é explorada, a todo momento, pelo individualismo ideológico e pela economia de mercado. Em épocas de vacas gordas, convoca-se o hedonista para o turismo do prazer. São as férias do asceta. Tudo vai bem no melhor dos mundos; "la vie est en rose". Miséria, analfabetismo, criminalidade urbana, crianças de rua, nada disso é de sua conta. A culpa é dos corruptos, dos incapazes no governo, dos bandidos, do síndico ou do vizinho antipático. Em épocas de seca, puxam-lhe as orelhas e acusam-no de irresponsável, perdulário e egoísta. O asceta volta, então, à cena e mostra, com virtuosismo, o que é tenacidade e disciplina. Economizar luz de modo quase puritano é agir, em períodos de exceção, de forma caseira e cotidiana. Fizemos na urgência o que fazemos no dia-a-dia. Mas fomos adestrados a recalcar a importância em nossas vidas desses exercícios abstinentes, para manter viva a fantasia do prazer onipresente na "sociedade da abundância". Ora, de fato, funcionamos o tempo todo com a marcha a ré engatada, prontos a deixar o País das Maravilhas assim que os patrões ordenarem: "Acabou a brincadeira". Senão, vejamos. Vivemos em um festival romano de comidas, bebidas e drogas, mas ai dos abusados que ousam passar dos limites! Vivemos entupidos de tagarelices sobre sexo e sentimentalismo choroso, mas ai dos que levam a sério histórias de carochinha! Vivemos para comprar tudo e mais alguma coisa, mas ai dos inadimplentes e maus pagadores! O costume, visto à distância, impressiona pelo montante de vontade investido no autocontrole. É um jogo exaustivo, cuja regra é prometer a saciedade sem jamais saciar e cujo prêmio é o gozo com o triunfo sobre a própria concupiscência. Domar o que quer ser indômito, frustrar depois de atiçar, eis o autêntico deleite do universo do "consumo".

Recusa e descontrole
Os que se recusam a jogar o jogo são vistos como "fracassados", "enrustidos", "neuróticos", "masoquistas", "esquerdistas capa-preta", "distímicos" ou "baixo-astrais"; os que se descontrolam no ato de jogar, como "estressados", "dependentes em qualquer coisa", "imaturos", "inseguros", "fracos de vontade", "panicados", em suma, como ineptos para governar a si próprios.
O sujeito, fascinado pelo poder de dizer não aos impulsos que ele mesmo excita, ignora os megawatts de vontade gastos no desafio insano. Ao se render aos três grandes ícones do mercado -droga, sexo e cartão de crédito-, desenvolve uma imensa vontade que desconhece a si mesma e se dissipa a troco de nada.
A vontade do indivíduo é, desse modo, mobilizada no que tem de maior para servir ao minúsculo. Participamos de um campeonato de irrelevâncias com o entusiasmo de quem vai pôr os Andes no lugar dos Alpes. Não nos faltam vontade e determinação; falta-nos grandeza de objetivos que espelhem o tamanho de nosso poder de agir e iniciar o novo.
De tanto querer pouco, acabamos por medir o esforço da busca pela insignificância do que é buscado. Usamos a potência da vontade humana para atingir propósitos mesquinhos, assim como um insensato que resolvesse acender holofotes para procurar alfinetes na escuridão. Não há maior desperdício. Com a crise de energia, uma coisa, pelo menos, ficou clara: neste país não temos crise de vontade. Temos, apenas, metas bem aquém de nossa capacidade de criar.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ambos pela ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 502 d.C.".
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br


Texto Anterior: + 5 livros Sobre a loucura
Próximo Texto: Laymert Garcia dos Santos: Sociedade iluminada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.