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Campeonato de irrelevâncias
Mobilização em torno da economia de energia mostra que
brasileiros são determinados, mas falta grandeza de objetivos
por Jurandir Freire Costa
A maioria dos brasileiros respondeu com prontidão à crise de energia elétrica. O consumo de
luz, antes mesmo de vigorar o racionamento,
diminuiu de forma significativa. A atitude surpreendeu alguns analistas políticos e cientistas sociais.
Como interpretar a eficiência das pessoas comuns comparada à incompetência dos governantes e dos empresários do setor? Tratar-se-ia, uma vez mais, de repetir o
conhecido jargão esperançoso, "povo bom, elite ruim"?
Ou será que o civismo, diante da decepção com os políticos, só estaria vindo à tona em vésperas de catástrofes
naturais?
Deixo aos especialistas a tarefa de encontrar o sentido
político-social do episódio. Concentro-me em outro aspecto, a disposição para reagir a acontecimentos do gênero. É possível que a presteza dos brasileiros em economizar energia tenha tido a ver com a ameaça das
multas e com o fantasma hollywoodiano -por enquanto!- de um mundo escuro e desértico. Mas, além
disso, pode ter a ver com facetas insuspeitas de nossas
condutas éticas, em especial as relacionadas à vontade e
à responsabilidade.
Infantilidade tem hora
Em primeiro lugar, a
imagem do brasileiro idiotizado pelos "bate-palminhas" dos programas televisivos de domingo cai por
terra. Infantilidade tem hora. Se a coisa é séria, nos
apressamos em voltar a ser adultos nem que seja por alguns dias ou meses do ano. Alugamos facilmente nossas cabeças se se trata de negociar os anéis; na hora de
perder os dedos queremos de volta o comando de nossos destinos.
Primeiro alerta, portanto: nos conduzimos de forma
pueril enquanto acreditamos que o economista "ultramoderno", o político demagogo, o empresário do ano
ou o novo guru da auto-ajuda conhecem o caminho do
Xangri-Lá. Ao constatarmos, porém, que a diferença
entre nós e eles é apenas de grau de cupidez ou diplomas a menos e a mais, recobramos o poder de agir e renunciamos à alienação à vontade do outro.
Ser tutelado é uma comodidade mental que passa a
incomodar se o assunto são as condições básicas de vida. Nesse caso, só existe um "expert", nós próprios. Somos nós ou o desastre.
Em segundo lugar, só bancamos os bobos alegres enquanto vivemos em situações de segurança rotineira ou
de radical sentimento de impotência. No primeiro caso
porque não corremos risco algum; no segundo porque
o risco é tão grande que precisamos minimizá-lo pela
negação. Às vezes é melhor fingir que nada acontece do
que ter consciência de que nada pode ser feito. Se as dificuldades, todavia, não superam os meios que temos de
enfrentá-las, damos um jeito e encontramos saídas.
Segundo alerta, portanto: muitos obstáculos, de fato,
são insolúveis. A maior parte, entretanto, assume essa
aparência porque ignoramos o poder de nossa vontade.
Exemplo típico é o estilo de vida subordinado à moral
do mercado e do consumo. Disseram-nos, por décadas,
que fora dessas "Arcas" não haveria salvação. Muitos
acreditaram e responderam amém. Em duas ou três semanas, entretanto, legiões de crentes no decálogo do
mercado e do consumismo se desfizeram de objetos
sem os quais diziam não poder viver.
Os sacerdotes do mercado, por sua vez, não hesitaram
em renegar, sem o menor pudor, o conteúdo de seus
mais sagrados sermões. O que era "imprescindível" anteontem se tornou bom para sucata hoje. Antigos amuletos da felicidade global, vendidos a preço de ouro ou
exibidos como vitrines da existência moderna, perderam o prestígio. De repente, pasmem!, todos podemos
passar sem "uma hora a mais de shopping center", sem
freezers, microondas, ares-condicionados ou potentíssimos aparelhos eletroeletrônicos.
Mocinhos e vilões
O mocinho, no conto da globalização, virou vilão. A vítima, agora, é a "mãe natureza",
até pouco tempo ridicularizada como mania de desmiolados defensores de samambaias e micos-leões. Em
outros termos, muita coisa tida como "essencial à vida"
foi para os ares com um peteleco, e estamos todos vivos,
alguns, inclusive, fazendo planos de consumo para "depois da chuva".
Em terceiro lugar, o mais importante. Nos últimos
tempos, passamos a discutir as características psicossociais do "sujeito pós-moderno", procurando entender o
comportamento das elites brasileiras. Esse sujeito, diz-se, é alguém que perdeu o sentido da autonomia e da
vontade, em meio à diversidade de modelos de identidade pessoal oferecidos.
Hoje não sabemos o que somos porque não sabemos
o queremos ser. A proliferação de informações, a pluralidade de padrões sexuais e sentimentais, a insegurança
profissional, a relativização das verdades morais e, enfim, a fragilidade das instituições formadoras de identidades desorientaram os indivíduos.
O excesso causou a escassez. O sujeito, privado dos
valores tradicionais, passou a se identificar com os personagens de sucesso midiático e a se tornar um mero
consumidor de sensações e desejos imediatos. A pretensa riqueza de opções resultou, na verdade, em um
massacrante conformismo, responsável pelo abandono
dos ideais de justiça e liberdade comuns a todos. O indivíduo pós-moderno, em tese dono de uma liberdade irrestrita, se tornou um pífio clone do que a cultura tem
de mais pobre e massificado.
Sujeito bifronte
A interpretação é plausível. A cultura brasileira das elites, entretanto, é mais complexa
em seu dinamismo. Convertemos, sem dúvida, os indivíduos à ideologia do prazer de si e para si. Exigimos deles, em contrapartida, um domínio dos impulsos digno
dos Padres do Deserto. Prazer, sim! Mas ao custo da autodomesticação, do esforço tirânico para dobrar a si
mesmo quando e se necessário. O brasileiro de elite já
foi definido como passional, sensual, gentil, servil, cruel
ou qualquer outro adjetivo imaginado pelos que aceitam a idéia de um "caráter nacional". É possível que ele
seja tudo isso ou nada disso. Em todo caso, no presente,
é um sujeito bifronte com um lado hedonista em luta
permanente com o lado ascético.
A gemelidade emocional é explorada, a todo momento, pelo individualismo ideológico e pela economia de
mercado. Em épocas de vacas gordas, convoca-se o hedonista para o turismo do prazer. São as férias do asceta. Tudo vai bem no melhor dos mundos; "la vie est en
rose". Miséria, analfabetismo, criminalidade urbana,
crianças de rua, nada disso é de sua conta. A culpa é dos
corruptos, dos incapazes no governo, dos bandidos, do
síndico ou do vizinho antipático. Em épocas de seca,
puxam-lhe as orelhas e acusam-no de irresponsável, perdulário e egoísta. O asceta volta, então, à cena e mostra, com virtuosismo, o que é tenacidade e disciplina.
Economizar luz de modo quase puritano é agir, em períodos de exceção, de forma caseira e cotidiana. Fizemos na urgência o que fazemos no dia-a-dia.
Mas fomos adestrados a recalcar a importância em
nossas vidas desses exercícios abstinentes, para manter
viva a fantasia do prazer onipresente na "sociedade da
abundância". Ora, de fato, funcionamos o tempo todo
com a marcha a ré engatada, prontos a deixar o País das
Maravilhas assim que os patrões ordenarem: "Acabou a
brincadeira".
Senão, vejamos. Vivemos em um festival romano de
comidas, bebidas e drogas, mas ai dos abusados que ousam passar dos limites! Vivemos entupidos de tagarelices sobre sexo e sentimentalismo choroso, mas ai dos
que levam a sério histórias de carochinha! Vivemos para comprar tudo e mais alguma coisa, mas ai dos inadimplentes e maus pagadores!
O costume, visto à distância, impressiona pelo montante de vontade investido no autocontrole. É um jogo
exaustivo, cuja regra é prometer a saciedade sem jamais
saciar e cujo prêmio é o gozo com o triunfo sobre a própria concupiscência. Domar o que quer ser indômito,
frustrar depois de atiçar, eis o autêntico deleite do universo do "consumo".
Recusa e descontrole
Os que se recusam a jogar o
jogo são vistos como "fracassados", "enrustidos", "neuróticos", "masoquistas", "esquerdistas capa-preta",
"distímicos" ou "baixo-astrais"; os que se descontrolam
no ato de jogar, como "estressados", "dependentes em
qualquer coisa", "imaturos", "inseguros", "fracos de
vontade", "panicados", em suma, como ineptos para
governar a si próprios.
O sujeito, fascinado pelo poder de dizer não aos impulsos que ele mesmo excita, ignora os megawatts de
vontade gastos no desafio insano. Ao se render aos três
grandes ícones do mercado -droga, sexo e cartão de
crédito-, desenvolve uma imensa vontade que desconhece a si mesma e se dissipa a troco de nada.
A vontade do indivíduo é, desse modo, mobilizada no
que tem de maior para servir ao minúsculo. Participamos de um campeonato de irrelevâncias com o entusiasmo de quem vai pôr os Andes no lugar dos Alpes.
Não nos faltam vontade e determinação; falta-nos grandeza de objetivos que espelhem o tamanho de nosso poder de agir e iniciar o novo.
De tanto querer pouco, acabamos por medir o esforço
da busca pela insignificância do que é buscado. Usamos
a potência da vontade humana para atingir propósitos
mesquinhos, assim como um insensato que resolvesse
acender holofotes para procurar alfinetes na escuridão.
Não há maior desperdício. Com a crise de energia, uma
coisa, pelo menos, ficou clara: neste país não temos crise
de vontade. Temos, apenas, metas bem aquém de nossa
capacidade de criar.
Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros,
"Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ambos pela ed. Rocco). Escreve regularmente na seção "Brasil 502 d.C.".
E-mail: jfreirecosta@alternex.com.br
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