São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

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+ música

O poeta e crítico analisa as principais obras do compositor alemão Stockhausen e relembra sua importância para o grupo concreto

Stockhausen, multimúsico

Não é difícil mensurar hoje, quando já célebre e celebrado o compositor Karlheinz Stockhausen, o significado que teve, para nós, do grupo concreto, a sua descoberta nos anos 50. Contemporâneo nosso, um ano mais moço que Pignatari, suas primeiras composições de choque foram aparecendo ao mesmo tempo em que as nossas no campo da poesia, ao longo daquela década. Boulez e ele nos pareceram, desde logo, especialmente a partir da escuta de "Le Marteau sans Maître" (O Martelo sem Mestre, de 1952-54) e "Gesang den Jünglinge" (Canto dos Adolescentes, de 1955-56), as estrelas maiores de uma constelação de florescentes talentos musicais que incluía Nono e Berio, Pousseur, Ligeti, Xenakis e outros compositores jovens de magna expressão. Boulez, ademais da música, por seus escritos de crítica musical, notáveis não só pela implacável lucidez como pela beleza estilística, quase mallarmaica, de sua linguagem. Por isso mesmo -e pela sintonia que tinha a nossa poesia com as propostas musicais que formulavam- foram eles muito invocados por nós e postos, emblematicamente, em lugar de honra no "Plano Piloto para a Poesia Concreta", de 1958.
De todos os compositores daquela extraordinária geração que emergiu na Europa na segunda metade do século 20, Stockhausen foi talvez aquele que mais ostensivamente ilustrou a passagem do universo pré-serial weberniano para o da nova música serial eletro-eletrônica (refiro-me, evidentemente, ao uso abstrato, não-referencial e não-imitativo dos recursos das novas mídias sonoras). Boulez, concentrado e perfeccionista, seguiu polindo e repolindo seus diamantes. Stockhausen, multimúsico, mais aberto e desmesurado, explorou praticamente todas as linguagens sonoras abertas pelas mídias eletroacústicas.
Tendo-me ocupado tanto de música contemporânea, não cheguei a escrever detidamente sobre ele, embora sempre o referisse com destaque, talvez porque o brilho de sua obra fosse tão evidente e sua notoriedade tão precocemente reconhecida que eu tenha preferido tratar de outros compositores menos difundidos ou mais questionados, dando por óbvia a sua identificação como protagonista principal da renovação da música contemporânea na segunda metade do século 20.
Mas nunca é demais relembrar a sua relevância, ao se anunciar a segunda visita do compositor, já septuagenário, ao Brasil para uma apresentação de suas obras, ainda mais quando se considera a desconsideração com que é tratada a música erudita moderna entre nós, sonegada de programas e concertos, rejeitada por regentes e intérpretes tão timoratos quanto carreiristas e servida sempre em doses medidas e homeopáticas. Stockhausen é compositor prolífico e não vou fazer aqui a análise de todas as suas obras, sempre brilhantes e inovadoras, que já no fim dos anos 70 abrangiam nada menos que 40 LPs só no catálogo da Deutsche Grammophon. Destacarei algumas, dentre as que mais me tocaram, além do já citado "Canto dos Adolescentes", peça fundante, que combina com admirável harmonia sons vocais cantados e produzidos eletronicamente, transformando o texto bíblico em que se baseia, atomizado e espacializado, num novo alfabeto sonoro no qual as palavras flutuam, ressensibilizadas, como que pronunciadas pela primeira vez, em diversos graus de inteligibilidade.

Até o limite
Da primeira fase ainda, "Zeitmasze" (Medidas de Tempo, de 1955-56), para quinteto de sopro, que distende até o limite as durações dos instrumentos e inclui marcações como "tão rápido ou tão lento quanto possível", perturbando a noção de temporalidade sonora. "Carré", 1959-69, para quatro orquestras e quatro coros, investigando ao máximo a espacialização e a interação dos grupos instrumentais. "Kontakte", 1959-69, uma das primeiras, mais convincentes e mais consequentes peças eletrônicas jamais elaboradas, incorporando ademais, na segunda versão, percussão e piano num intercâmbio rico de consequências entre o elétrico e o acústico. As peças para piano ("Klavierstücke"), as mais difíceis e indigestas, com seu ápice na 11ª (1956), arquipélago-móbile de ilhas sonoras, uma resposta às provocações da indeterminação de Cage (na partitura, uma única folha de 53 x 93 cm, 19 grupos de notas distribuídos irregularmente ensejam a escolha aleatória do desenvolvimento e alguns parâmetros sonoros por parte do intérprete), composição que, no dizer de Kyle Gann, faz o piano emular o sintetizador. "Ziklus" (1959-60), para percussão, com o executante em movimento aleatório no centro de um círculo de instrumentos, expandindo as pesquisas de forma aberta iniciadas com "Klavierstück 11". Suma de todas as pesquisas anteriores, "Hymnen" (1966-67/1969), obra concreto-eletrônica, incorpora hinos de inúmeros países, da Internacional e da Marselhesa (até oito vezes mais lenta que o original) a hinos africanos, tornados menos reconhecíveis ou irreconhecíveis pelo tratamento sonoro, com intervenções dos mais variados sons e ruídos (aves, avião, navio, flamenco, vozerio coletivo, conversas, respiração), numa pasta distorcida de sons fugidios ("algaravia internacional de rádio em ondas curtas", na expressão do compositor) misturados a sons eletrônicos. Na primeira parte, dominada pela Internacional, uma litania em torno da palavra "vermelho" em várias línguas, de arrepiar. No mais, uma arrebatadora viagem sonora em que eletronia pura e sons/ruídos do cotidiano se interpenetram com uma consistência que não encontramos nas colagens lineares da "musique concrète" de marca francesa. Consciente ou inconscientemente, Jimi Hendrix, no Festival de Woodstock, "desafinando" e arrebentando aos uivos lancinantes de sua guitarra elétrica o "Star Spangled Banner" (Sousândrade, antes: "Em farrapo "Bandeira Estrelada" se viu") deu uma bela resposta intuitiva à provocação dos "Hymnen". De uma carta a Caetano, então em Londres (15/10/ 1970): "Comprei o "woodstock" no dia da morte de jimi. estava ouvindo aquelas coisas todas sem grande entusiasmo quando cheguei no jimi. tive aquele choque de emoção. pois o antihino de jimi era a réplica barbárica do pensamento popbruto aos hymnen stockhausenianos corroídos pela microfonia e pelas ondas de estática do rádio. woodstockhausen! estava nesse contentamento de redescoberta, eram umas 8 da noite, quando meu filho mais moço veio dizer q a TV estava noticiando a morte de jimi". Outras obras magníficas: a pré-espectral "Stimmung" (palavra polissêmica, sentido principal: afinação, mas também disposição, humor), para seis vozes (1968), explorando os harmônicos superiores em mágicos acordes improvisados à invocação de palavras-chave -divindades como Vishnu, Rea, Urano, Ísis, Viracocha, Varuna- e embutindo em sua textura belos poemas sonoristas como "ruseral" (veja ao lado), em cuja espiral gráfica se inscrevem as instruções partiturais para a leitura e o canto. "Mantra" (1969-70), para dois pianos e címbalos, de colorido sonoro tão peculiar, multiplicando-se numa gama profusa e inesperada de combinações a partir de uma única célula-mater de 13 sons. "Musik im Bauch" (Música no Ventre) e "Zodíaco" (1974-75), em que o compositor joga com a delicada sonoridade dos címbalos, sinos, marimbas e até caixas de música. "Sirius" (1975-77), obra complexa na qual os vôos eletrônicos de "Kontakte" se projetam em escala teatral, pré-operística, associando-se a trompete, clarinete-baixo e vozes de soprano e baixo para proporcionar insólitas fusões eletrônico-vocais-instrumentais.

Coro de buzinas
Pode-se questionar a prolixidade da polêmica macroópera "Licht" (Luz) -compósito de sete óperas- iniciada na década de 80 e ainda não terminada, o projeto principal de Stockhausen nas últimas décadas. Quanto a mim, não me arrisco a julgá-la, já que não a ouvi na íntegra nem com o necessário empenho, sendo confessa a minha inapetência por óperas e megaobras. O que posso dizer, com segurança, é que "Licht" tem momentos sensacionais, como aquela imprevista irrupção de um coro de buzinas e motores de motocicleta, na cena "Der Jahreslauf" (O Curso dos Anos), de 1977, que saiu em disco isolado -uma idéia musical que repercutiu depois, nitidamente, nos prelúdios de buzina de carros da ópera "Le Grand Macabre", de György Ligeti.
A última composição de Stockhausen que ouvi, o "Quarteto dos Helicópteros" (1993), em execução do quarteto Arditti, onde os rotores fazem um pedal sônico para as intervenções dos instrumentistas do quarteto de cordas, cada um postado em seu helicóptero, comunicando-se com os outros e com a assistência por câmaras de vídeo, microfones e circuitos auditivos, mostra, pelo menos, que ele não arredou pé do caminho exploratório das vanguardas históricas. O que não tem pouco significado para um compositor que, tendo atingido a celebridade, poderia facilmente se acomodar nos louros da fama e seguir por caminhos menos ásperos e mais palatáveis para o grande público. Não. Stockhausen permanece Stockhausen. Se o grande (quantitativo) público ainda o desconhece, Stockhausen também é grande (qualitativo). O adjetivo, tão profusamente desvalorizado pela leviandade do seu uso, mas que reservamos para poucos como Schoenberg ou Stravinski, Webern ou Varèse, não parece demais para ele.


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Expoemas" e "Despoesia" (ed. Perspectiva), entre outros.


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