São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001

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Sai no Brasil "Dissipatio H.G.", de Guido Morselli, considerado um dos principais romancistas italianos do pós-guerra

Sonho de dissolução

Morselli suicidou-se em 1973, após ter recebido o manuscrito do seu último romance, rejeitado, como os anteriores, pelas editoras

Lucia Wataghin
especial para a Folha

Um homem decide matar-se. Nas páginas do diário que precedem a narração da catástrofe universal anunciada no título do romance -"Dissipatio H.G."-, o protagonista conta sua tentativa de suicídio: o projeto é "sumir sem deixar rastro", "um misterioso aniquilamento, uma dissolução no nada". Desiste do propósito: o corpo não obedece, não está disposto a morrer. Ao voltar para casa, descobre que seu sonho de dissolução se realizou. O premiado, porém, não foi ele: durante sua breve ausência, a humanidade evaporou, nebulizou-se.
Os corpos humanos foram raptados, arrastados de suas casas ou de qualquer lugar onde estivessem (erudito detalhe de humor negro: os corpos levam consigo sua roupa, talvez porque, como observava Agostinho de Hipona, não convém que os humanos compareçam nus ao reino dos céus).
Aqui termina a "crônica externa" do Evento (a "dissipatio") e começa a "interna": o último dos homens, única testemunha da catástrofe, sobrevive em total solidão na necrópole. Nesse cenário absurdo e atemporal, o protagonista que reconhece ser autor da catástrofe (de qualquer forma, inexplicada e inexplicável) faz lucidamente o inventário daquilo que lhe resta: o mundo ao seu redor e a memória.
O balanço (seu balanço pessoal, assim como o do gênero humano) é obviamente negativo e constitui a lógica justificativa da perfeita oportunidade e conveniência do Evento: uma "morte-prêmio como emigração turística coletiva" (o turismo é sucedâneo da mobilização geral, dizia Hans Enzensberger), um "benefício equânime (...), a solução de problemas insolúveis, o remédio inesperado de males insuportáveis".
É paradoxal a exclusão do protagonista do prêmio coletivo: condenado a sobreviver sozinho, dedica-se inicialmente à exploração dos lugares mais próximos, à busca de eventuais sobreviventes e, finalmente, à procura de um homem, um médico que conhecera no passado, já morto antes mesmo do Evento.
"Dissipatio H.G.", na excelente tradução de Maurício Santana Dias, é o último e talvez o melhor dos livros de Guido Morselli (1912-1973). Dono de uma linguagem rigorosa, precisa, fluente, lucidamente realista, e de um sólido talento narrativo, que abre espaço também a momentos meditativos, reveladores de seu intenso interesse pelos debates histórico-filosóficos contemporâneos, Morselli nos deixa em "Dissipatio H.G." seu testamento literário.
Guido Morselli suicidou-se em 31 de julho de 1973, pouco após ter recebido, pelo correio, o manuscrito deste seu último romance -rejeitado, como todos os anteriores, pelas editoras. O livro é, em certa medida, uma declaração de "fobantropia" (assim escreve o anônimo protagonista: "Sou, às vezes, fobantropo, tenho medo dos homens (...) devido ao estrago e ao aborrecimento de que são incansavelmente capazes"), de incompatibilidade orgânica, de aversão profunda pelos modos da vida contemporânea.
Personagem e autor identificam-se: o livro é uma preparação para a morte, é a exposição de motivos do suicídio do autor, a ratificação de sua necessidade e da substancial inutilidade de toda e qualquer ação humana.
Um ano após a morte de Morselli, a editora italiana Adelphi começou uma ampla operação editorial e em quatro anos publicou sete romances do autor, todos inéditos até então. Morselli é reconhecido, postumamente, como um dos melhores escritores italianos de sua geração, ao lado de Tommaso Landolfi ou Dino Buzzati.
Mas por que o escritor foi rejeitado em vida pelo mercado editorial? A resposta óbvia -a defasagem cultural e ideológica entre sua obra e o panorama literário italiano contemporâneo- deve ainda ser aprofundada. Os romances de Morselli, dizem os críticos, eram diferentes, desconformes em relação aos códigos correntes, enfim, não estavam na moda no que diz respeito seja às tendências mais conservadoras da literatura italiana, seja às instâncias das vanguardas. Mas por quê?
Teoricamente Morselli propõe a recuperação da dimensão narrativa pura, sem mediações ideológicas. A esse propósito, dedica algumas páginas do seu "Diario" (Adelphi, 1988) ao combate do "teorismo", ou seja, a tendência às "hipóteses especulativas" que encontra nas obras de Proust, Kafka, Joyce ou Musil (e também no neo, no anti, no metarromance contemporâneo). Todos esses autores, escreve, "em medidas diferentes, (...) renunciam à narração, (...) marcam o fim (...) da arte narrativa". Curiosamente, nos seus próprios romances pesa uma análoga tendência especulativa que interrompe a narração. Mas pode-se dizer que a sua obra em geral resiste ao impacto da instância filosófica, e parece inacreditável que as editoras tenham fechado as portas a um escritor tão sólido e consistente.
Mas a lógica do mercado é sempre discutível: Morselli, que foi vítima de uma obstinada rejeição editorial, tornou-se um autor "cult". Passando de um excesso a outro, hoje tudo o que ele escreveu está sendo publicado, mesmo páginas juvenis de escasso valor, sem nenhum discernimento. Mas esse já é um outro capítulo do "caso" Morselli.


Lucia Wataghin é professora de literatura italiana na USP.



Dissipatio H.G.
166 págs., R$ 25,00 de Guido Morselli. Tradução de Maurício Santana Dias. Ateliê Editorial (r. Manoel Pereira Leite, 15, CEP 06700-000, Granja Viana, Cotia, SP, tel. 0/xx/ 11/ 4612-9666).




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