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Sai no Brasil "Dissipatio H.G.", de Guido Morselli, considerado um dos principais romancistas italianos do pós-guerra
Sonho de dissolução
Morselli suicidou-se em 1973, após ter recebido
o manuscrito
do seu último romance, rejeitado, como os anteriores, pelas editoras
Lucia Wataghin
especial para a Folha
Um homem decide matar-se.
Nas páginas do diário que precedem a narração da catástrofe
universal anunciada no título
do romance -"Dissipatio H.G."-, o
protagonista conta sua tentativa de suicídio: o projeto é "sumir sem deixar rastro", "um misterioso aniquilamento,
uma dissolução no nada". Desiste do
propósito: o corpo não obedece, não está
disposto a morrer. Ao voltar para casa,
descobre que seu sonho de dissolução se
realizou. O premiado, porém, não foi ele:
durante sua breve ausência, a humanidade evaporou, nebulizou-se.
Os corpos humanos foram raptados,
arrastados de suas casas ou de qualquer
lugar onde estivessem (erudito detalhe
de humor negro: os corpos levam consigo sua roupa, talvez porque, como observava Agostinho de Hipona, não convém que os humanos compareçam nus
ao reino dos céus).
Aqui termina a "crônica externa" do
Evento (a "dissipatio") e começa a "interna": o último dos homens, única testemunha da catástrofe, sobrevive em total
solidão na necrópole. Nesse cenário absurdo e atemporal, o protagonista que
reconhece ser autor da catástrofe (de
qualquer forma, inexplicada e inexplicável) faz lucidamente o inventário daquilo
que lhe resta: o mundo ao seu redor e a
memória.
O balanço (seu balanço pessoal, assim
como o do gênero humano) é obviamente negativo e constitui a lógica justificativa da perfeita oportunidade e conveniência do Evento: uma "morte-prêmio
como emigração turística coletiva" (o turismo é sucedâneo da mobilização geral,
dizia Hans Enzensberger), um "benefício equânime (...), a solução de problemas insolúveis, o remédio
inesperado de males insuportáveis".
É paradoxal a exclusão
do protagonista do prêmio coletivo: condenado
a sobreviver sozinho, dedica-se inicialmente à exploração dos lugares mais
próximos, à busca de
eventuais sobreviventes e, finalmente, à
procura de um homem, um médico que
conhecera no passado, já morto antes
mesmo do Evento.
"Dissipatio H.G.", na excelente tradução de Maurício Santana Dias, é o último
e talvez o melhor dos livros de Guido
Morselli (1912-1973). Dono de uma linguagem rigorosa, precisa, fluente, lucidamente realista, e de um sólido talento
narrativo, que abre espaço também a
momentos meditativos, reveladores de
seu intenso interesse pelos debates histórico-filosóficos contemporâneos, Morselli nos deixa em "Dissipatio H.G." seu
testamento literário.
Guido Morselli suicidou-se em 31 de
julho de 1973, pouco após ter recebido,
pelo correio, o manuscrito deste seu último romance -rejeitado, como todos os
anteriores, pelas editoras. O livro é, em
certa medida, uma declaração de "fobantropia" (assim escreve o anônimo
protagonista: "Sou, às vezes, fobantropo,
tenho medo dos homens (...) devido ao
estrago e ao aborrecimento de que são
incansavelmente capazes"), de incompatibilidade orgânica, de
aversão profunda pelos
modos da vida contemporânea.
Personagem e autor
identificam-se: o livro é
uma preparação para a
morte, é a exposição de
motivos do suicídio do
autor, a ratificação de sua
necessidade e da substancial inutilidade
de toda e qualquer ação humana.
Um ano após a morte de Morselli, a
editora italiana Adelphi começou uma
ampla operação editorial e em quatro
anos publicou sete romances do autor,
todos inéditos até então. Morselli é reconhecido, postumamente, como um dos
melhores escritores italianos de sua geração, ao lado de Tommaso Landolfi ou
Dino Buzzati.
Mas por que o escritor foi rejeitado em
vida pelo mercado editorial? A resposta
óbvia -a defasagem cultural e ideológica entre sua obra e o panorama literário
italiano contemporâneo- deve ainda
ser aprofundada. Os romances de Morselli, dizem os críticos, eram diferentes,
desconformes em relação aos códigos
correntes, enfim, não estavam na moda
no que diz respeito seja às tendências
mais conservadoras da literatura italiana, seja às instâncias das vanguardas.
Mas por quê?
Teoricamente Morselli propõe a recuperação da dimensão narrativa pura,
sem mediações ideológicas. A esse propósito, dedica algumas páginas do seu
"Diario" (Adelphi, 1988) ao combate do
"teorismo", ou seja, a tendência às "hipóteses especulativas" que encontra nas
obras de Proust, Kafka, Joyce ou Musil (e
também no neo, no anti, no metarromance contemporâneo). Todos esses autores, escreve, "em medidas diferentes,
(...) renunciam à narração, (...) marcam
o fim (...) da arte narrativa". Curiosamente, nos seus próprios romances pesa
uma análoga tendência especulativa que
interrompe a narração. Mas pode-se dizer que a sua obra em geral resiste ao impacto da instância filosófica, e parece
inacreditável que as editoras tenham fechado as portas a um escritor tão sólido e
consistente.
Mas a lógica do mercado é sempre discutível: Morselli, que foi vítima de uma
obstinada rejeição editorial, tornou-se
um autor "cult". Passando de um excesso a outro, hoje tudo o que ele escreveu
está sendo publicado, mesmo páginas
juvenis de escasso valor, sem nenhum
discernimento. Mas esse já é um outro
capítulo do "caso" Morselli.
Lucia Wataghin é professora de literatura italiana
na USP.
Dissipatio H.G.
166 págs., R$ 25,00
de Guido Morselli. Tradução de
Maurício Santana Dias. Ateliê
Editorial (r. Manoel Pereira Leite, 15, CEP 06700-000, Granja
Viana, Cotia, SP, tel. 0/xx/ 11/
4612-9666).
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