São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005

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VER HELENA EM TODA MULHER

AO MESMO TEMPO FUGITIVA E RAPTADA, A CAUSADORA DA GUERRA DE TRÓIA, QUE UNIU OS GREGOS E "PROVOCOU" A CIVILIZAÇÃO, ESTÁ PARA O HOMEM COMO A LINGUAGEM PARA AS COISAS E PODE SERVIR COMO "EQUIVALENTE GERAL" PARA O FEMININO

Barbara Cassin

Ver Helena em toda mulher" é uma frase de Goethe, do "Fausto" de Goethe. "Com essa bebida no corpo, verás Helena em toda mulher", diz Mefistófeles a Fausto na cozinha da feiticeira, fazendo-o beber a poção do amor. Efetivamente, Margarida passa na rua e Fausto, que vê seu reflexo no espelho, diz: "Helena!", ele vê Helena em Margarida e fica perdidamente apaixonado.
Essa frase espalhou-se como um rastro de pólvora na Alemanha pós-Goethe. Duas ocorrências tocaram-me profundamente. A primeira é de Nietzsche, em 1872, no "Nascimento da Tragédia", que diz da arte grega: "Ele vê Helena em toda mulher. O ávido desejo da existência encobre o que não é belo". Assim, ver Helena em toda mulher é ver a beleza até mesmo na feiúra.
A segunda é de Freud, em uma carta a Jung datada de 1909, uma carta assaz extravagante em que ele explica porque está certo de que vai morrer entre 61 e 62 anos. Vos passo todas as suas razões; de toda forma, ele lê o número 61 até no número do quarto do hotel que lhe dão em Atenas, quarto 31: "Com uma licença fatalista, ainda assim a metade de 61-62". Para explicar essa aventura com o número 61, ele fala da atenção extremamente alargada por parte do "inconsciente, que vê Helena em toda mulher". Como o consentimento do acaso para o delírio de interpretação, como o consentimento somático para o sintoma histérico, como o consentimento da língua para os jogos de palavras, o inconsciente, segundo o mesmo mecanismo, vê Helena em toda mulher. Portanto, o sentido está até mesmo no insignificante e no trivial.
A pergunta que me fiz é: o que há em Helena, o que há na essência ou na não-essência de Helena para que ela seja "toda mulher"? Para que ela seja, de acordo com o idioma escolhido, o "eidos" mulher, a mulher enquanto mulher, a feminilidade em cada exemplar, em suma: a/uma mulher.
A bem dizer, para explorar a questão, seria preciso considerar Helena como um objeto cultural multimídia. A música é evidentemente de uma importância considerável, em particular as óperas e operetas que foram escritas sobre ela. Mas, qualquer que seja o "medium", há uma característica forte, digamos metodológica, do mundo de Helena; é que ele não é enquadrado. Contra o domínio fixo das ordens estritas, todos os gêneros se comunicam, inclusive os gêneros literários: pintura, música, filosofia mas também epopéia, tragédia, comédia, poesia lírica, romance até. É preciso articular, com esse primeiro traço configurante, um segundo, que libera o tempo: sem parar, os textos, as músicas, as palavras, que fazem frases sobre Helena são palimpsestos e palimpsestos de palimpsestos, ironicamente estruturados por sua reutilização.
Não há um texto que não seja entretecido de outros textos, uma música que não seja entretecida de outras músicas, nenhuma figuração sua sobre um vaso que não seja entretecida de todas as outras; e isto é profundamente grego e profundamente cultural: Helena é um objeto inteiramente produzido. Nesse mundo em circulação e em expansão folheada, que eu disporia de bom grado do lado feminino, não poderia haver, de um lado o sério ou a profundidade e, de outro, a superfície, o superficial. "Ah, esses gregos, eles sabiam viver: o que exige uma maneira corajosa de se ater à superfície, à dobra, à epiderme, de adorar a aparência, de crer nas formas, nos sons, nas palavras, no Olimpo inteiro da aparência! Esses gregos eram superficiais -por profundidade." Em uma frase, Nietzsche reencena todas as separações, desde a separação platônica do sensível e do inteligível; não se dirá mais: isso é filosofia, de homem / isso é literatura, feminina. O "kosmos" de Helena, mundo em expansão, vai da cosmética (seu espelho, suas pinturas) à cosmologia (Castor e Pollux, seus irmãos constelações). Uma tal relação entre cosmética e cosmologia, proponho chamá-la de beleza.
Para definir a beleza de Helena, há um sintagma que ressurge sem parar, desde a "Ilíada" e a "Odisséia": "Terrivelmente ela aparenta ["ainos eoiken']". Terrivelmente ela aparenta, sua beleza é uma beleza que terrivelmente aparenta. Assim, ouviremos um dos mais belos poemas a ela dedicados; um dos mais belos poemas, ponto; extraído do "Agamêmnon" de Ésquilo:
"O que primeiro entrou na cidade de Ílion,/ eu diria que foi o pensamento/ de uma calma sem vento,/ a estátua tranqüila da riqueza,/ a meiga flecha dos olhos,/ a flor de amor que morde o peito".
Poema permutador de semelhanças, entre a organização pensativa do mundo (o pensamento ["phronema"] de uma calma sem vento) e todos os seus enfeites concretos; riqueza, flecha dos olhos, flor de amor: cosmologia e cosmética. O número, a variedade, a invenção, o design dos vestidos de Helena: o guarda-roupas de Helena já é Helena, talvez o que há de mais real em Helena.
Retomemos, então, minha questão: como, desde Homero, Helena foi construída para ser vista em toda mulher? A reunir seu mundo textual, percebe-se um fio vermelho: de um modo muito marcante, sua realidade, sua consistência, é inteiramente ligada à linguagem, sob todas as suas formas. Se a vemos em toda mulher, é que ela tem uma consistência, uma existência de linguagem, discursiva. Daí meu título "e palavra" [título original deste texto, apresentado como conferência, "Helena: mulher e palavra"]. A ser tomado em quatro pontos.

O nome de Helena: Ésquilo
Primeiro, o nome de Helena. O que eu faço não é ortodoxo: se forem consultar, por exemplo, o excelente "Dictionnaire Etymologique de la Langue Grecque", de Chantraine (Klincksieck, 1990), vocês saberão que, "qualquer que seja a interpretação tentada pelos historiadores da religião [...], é vão procurar uma etimologia" para "Helena". Dito isso, há uma pletora de etimologias, nas quais toda a Grécia acreditou. Por exemplo, "Helena" vem de "helein", infinitivo passado do verbo "haireo", "tomo, rapto, capturo": aí está, dizem todos os gregos, uma boa eponímia, conforme ao "etymon" no sentido verdadeiro, no sentido etimo-lógico da palavra.
Tanto mais que no final de "Helena" reside uma incerteza: não se pode saber se é um ativo, se ela é uma raptora, uma sedutora, ou se é um passivo, se ela é uma raptada, uma seduzida. Ora, essa raptora raptada é assim em todos os poemas: Helena, culpada vítima, ativa enquanto passiva. Como diz [o escritor e dramaturgo Jean] Giraudoux [1882-1944], em "La guerre de Troie n'aura pas lieu" [Não haverá a guerra de Tróia]: "Tu conheces as mulheres tão bem quanto eu. Elas só consentem quando forçadas, mas, então, com que entusiasmo!".
Este "etymon" grego é palimpsestamente a matriz de um Ronsard bem francês, ora violento: "Teu nome grego acaba de tirar, de raptar, de matar, de pilhar, de arrebatar/ meu espírito e meu coração, miserável presa tua...". Ou lânguido: "Minha doce Helena, pois sim meu doce alento ["haleine"]/ que fria refrescas o ardor do meu peito". Mas também do jogo inglês de um Marlowe, que às vezes escreve Helena, "Helen", com dois eles, "Hellen", como "Hell", o inferno: "That heavenly Hellen".
Tanto mais que Helena com apenas um ele, seu nome, ou melhor, o significante de seu nome, soa também em "hellenes" [helenos], com dois eles. O tempo todo, Helena, causa da Guerra de Tróia, aparece como a causa do fato de que os helenos são helenos: a "guerra por Helena" é constitutiva da identidade grega. Testemunha-o, por exemplo, Isócrates, no "Elogio de Helena": "É com total justiça que pensaríamos que Helena é a causa de que não somos escravos dos bárbaros, de fato, encontraremos os helenos graças a ela, consensuais e montando um exército em comum contra os bárbaros, e a Europa erigindo então, pela primeira vez, um troféu de vitória contra a Ásia".
Helena como relação com a língua (os helenos face ao blablablá bárbaro), Helena como relação com o território (ao fim de "Helena", de Eurípides, ela torna-se a ilha que protege a costa da Ática, Pharos, de seu nome verdadeiro: Helena), Helena pois, para tornar a Europa consensual, por união sagrada contra a Ásia. O nome de Helena a constitui como língua, povo, continente, civilização. Helena ou a própria Grécia: raptada arrebatadora que, vencida, sempre há de vencer seu vencedor. Para dizê-lo ainda com mais força e universalidade, o nome de Helena é o manifesto de que tanto o amor como a guerra são, muito essencialmente, e muito explicitamente por toda uma cadeia de textos, uma questão de palavras, uma relação entre palavras, uma performance significante.

A voz de Helena: Homero
A voz de Helena tem uma consistência, uma existência totalmente singulares. Aí também existe um texto matricial, igualmente magnífico. Nessa cena da "Odisséia", os versos que me interessam, versos de fato extraordinários, são versos tradicionalmente cortados. Desde os primeiros eruditos gregos tem-se dito: "Ah, não! É impossível, Homero não quis dizer isso; isso não tem sentido", e corta-se.
Eis a cena. Helena está de volta, ela foi tomada, retomada por Menelau, ele não a matou, ele não se vingou, ela está em casa na condição de boa dona-de-casa, ela fia, as servas estão fiando fino quando ela chega, ela cozinha, quando aparecem alguns hóspedes, entre os quais Telêmaco, que procura seu pai, já que Ulisses é o único que não voltou. É o dia, aliás, do casamento de um dos filhos, de um dos filhos de Menelau e Helena e, infelizmente, Telêmaco choraminga, o choro vai estragar o jantar. Então Helena -parafraseio, mas as frases abaixo são bem de Homero- , Helena tem uma idéia. Ela traz um "pharmakon", um "remédio-veneno", que trouxe do Egito, para pôr no vinho, de modo que todos os que bebam fiquem curados de sua tristeza e possam, na sua frente, ver assassinar o próprio pai e os próprios irmãos sem chorar. Esse "pharmakon nepenthes takholon", "que dissipa a dor e a ira", serve, está dito, para se deixar levar ao prazer dos discursos ("mythois therpeste", "gozai dos causos"). Ela derrama então este "pharmakon" no vinho, todo mundo bebe, conversa-se e todo mundo fica contente.
Quem fala e quem conta o quê? Helena começa e faz um elogio bastante complexo de Ulisses -haveria muito a dizer sobre essa cena de esperteza e de duplicidade cruzadas, em que Helena reconheceu Ulisses, que se tinha introduzido em Tróia, mas não o denuncia e regozija-se em seu coração de ouvi-lo massacrar alguns troianos. Em seguida, Menelau toma a palavra: "Ah, como em tudo isso, minha mulher, falas justo". E acrescenta, para dizer as proezas de Ulisses: "Saibam o que empreendeu, que sucesso alcançou a energia de Ulisses! No cavalo de pau, nos abrigávamos todos, os melhores, que levávamos aos troianos a morte e o homicídio". O cavalo, no qual os guerreiros gregos se esconderam, foi trazido para dentro da cidade, está no interior de Tróia, onde Helena vive há dez anos; ela desposou sucessivamente Páris e, como Páris foi morto, seu irmão Deíphobo.


Ela os faz perdidos de desejo imitando, para cada um, a voz da mulher que já não vêem há dez anos, e ela chama cada um por seu nome. A essência do desejo é a voz que chama cada homem por seu nome


Helena está traindo os guerreiros gregos, entre os quais Ulisses e seu marido, ela gostaria que eles se traíssem. E, a fim de que se traíssem, ela os faz perdidos de desejo imitando, para cada um, a voz da mulher que já não vêem há dez anos, e ela chama cada um por seu nome. Portanto, ela diz "Menelau" com sua própria voz, "Ajax" com a voz da mulher de Ajax, e "Ulisses" com a voz de Penélope. Evidentemente, "a imitação das vozes é impossível, completamente ridícula", diz o escoliasta; "quanto ao verso 279, este é plenamente incompreensível: como poderia Helena imitar a voz de cada uma das rainhas aquéias, e por que razão?", pergunta-se [Victor] Bérard [tradutor francês da Odisséia]; e [Phillippe] Jaccotet [tradutor e poeta francês], que todavia leu Freud e Lacan, refina: "Esse verso, que pareceu suspeito a mais de um crítico, pode ser simplesmente entendido pelo fato de que Helena fala grego, e não troiano".
Destaco que a voz é o "pharmakon", remédio-veneno, por excelência; que a essência do desejo é a voz que chama cada homem por seu nome. Mas deduzo disso, sobretudo, que Helena é um equivalente geral de todas as mulheres, que é a/uma mulher. E isto pela virtude de sua voz, que serve para provocar o desejo porque ela é a voz de cada uma das mulheres para cada um dos homens, um por um.

A palavra / a coisa: Eurípides
Terceiro nível: a palavra é mais real que a coisa e, em Helena, é o caso.
Eurípides encena isto em sua "Helena", que fez muito estardalhaço na época, uma "nova Helena", dizia-se. Na "Helena" de Eurípides, a novidade é que há duas Helenas. Há uma verdadeira -enfim, não sei qual é que se deve chamar de verdadeira. Digamos que há uma Helena que é Helena, e que Hera, a esposa por excelência, para livrá-la de todo esse lado malsão do rapto, da ruptura de contrato, da infidelidade, a encaminha para o Egito, na casa de um velho rei que já não lhe pode sequer fazer mal, Proteu. Ali, ela espera o tempo passar. É o protótipo da mulher fiel, perfeita esposa de marido partido para a guerra.
E depois, há uma segunda Helena que não é nada mais do que "flatus vocis", névoa de som, um "agalma" de nuvem, um "eidôlon", um fantasma: o nome de Helena. Essa Helena foi quem navegou até Tróia, foi ela que Páris raptou, que sobe sobre as muralhas, pela qual os gregos combatem e se matam, é esta que Menelau recupera, com a qual ele chega nessa orla do Egito e se encontra confrontado à outra, a "verdadeira". Portanto, há o nome ou a sombra, a sombra nomeada "Helena", e a própria Helena; Helena de Tróia e Helena do Egito.
Ora, essa peça é a mais antiplatônica possível, pois a palavra é aí mais real que a coisa. O nome é mais real que o corpo, pois tem mais efeitos.
Não há nenhum equívoco possível, é mesmo o nome que está em Tróia, o nome sob sua forma de sopro-vento-nuvem. A peça termina, aliás, quando o "eidolon" nome, ídolo-fantasma-imagem, sai voando, alcança o céu, porque, como está dito no fim, "Helena não precisa mais emprestar seu nome aos deuses". As duas Helenas se encontram então para tornarem-se uma, uma única Helena que é de uma só vez seu corpo e seu nome. Finalmente, é esta que retorna com Menelau para um "happy end".
Mas antes acontece uma cena genial de desconhecimento-reconhecimento, digna dos "misfits", que não consigo me abster de contar. Quando Menelau desembarca na orla do Egito, ele vê uma mulher que se parece com Helena -é finalmente Helena, ou melhor, a "Helena" com quem Helena terrivelmente parece-, e ele lhe diz alguma coisa como: "Ai, ai! Como te chamas?". Ela responde: "Helena". "Enfim, não podes ser Helena, pois que a tenho aqui, comigo, deixei-a aqui ao lado, em uma gruta". Ela, por sua vez: "Mas como és parecido com Menelau". Como ela entende tudo, ela tenta lhe explicar que "o nome pode estar em vários lugares, o corpo não". É então que Menelau resiste com toda a força desta frase magnífica: "É a grandeza de meus sofrimentos lá que me persuade, e não você".
Todavia, eles partirão juntos, mas ficará a lição, de uma vez por todas, que a palavra é mais real que a coisa, e que o real na palavra é o efeito que ela faz.

O elogio de Helena: Górgias
De modo geral, Helena é um produto do discurso, é o próprio "logos" encarnado.
Isto se lê por meio do "Elogio de Helena", de Górgias, o primeiro grande texto sobre Helena depois de Homero. Górgias chegou a Atenas com uma delegação, como embaixador, para resolver os negócios da Sicília. Conta-se que ele propôs então aos atenienses de fazer diante deles uma "epideixis", uma demonstração, uma prestação, uma conferência, na ágora: "one man show" relativamente comum, sobre Helena, em que ele mostra como ela é culpada. Ninguém ficou espantado, todo mundo sabia: ela abandonou seu marido, seu país, seus filhos etc., é a mais culpada das mulheres, por ela,os gregos morreram aos milhares. Mas ele acrescenta: "Voltai amanhã à mesma hora". No dia seguinte, mesma hora, mesmo lugar, Górgias pronuncia o único discurso que nos foi conservado: discurso magnífico, que vos aconselho de ler por inteiro. E o "Elogio de Helena" está aí para explicar porque Helena não só não é culpada como é precisamente a mais inocente das mulheres.
Ela não é culpada por uma série de razões encaixadas, estrutura de encaixe que voltaremos a encontrar até chegar ao "Encore" ["Mais, Ainda", "O Seminário - Livro 20", de Jacques Lacan, ed. Jorge Zahar]. Helena não é culpada porque foi a fortuna, "as intenções do destino, as vontades dos deuses e os decretos da necessidade" que assim quiseram. É todo o lado "fatum", Offenbach, a fatalidade. Logo, se foi a fatalidade que a fez culpada, ela não é culpada. Ou bem, segunda hipótese, ela foi raptada à força, alguém a levou, a culpa é do raptor bárbaro e, outra vez, ela não é culpada. Ou bem, terceira possibilidade, ela foi "persuadida pelos discursos" e, aí então, se ela acreditou no que lhe diziam, ela é menos do que nunca culpada.
Ela é inocentada, pois acreditou no "logos", como também é um "logos" que a inocenta, que desempenha sua inocência diante dos atenienses desta vez escandalizados, a ponto de forjarem o verbo "gorgianizar". Ora, o "logos", que vocês sabem o quanto é intraduzível, não é nada mais do que um "pharmakon"; como diz muito precisamente Górgias:
"Existe a mesma relação entre poder do discurso e disposição da alma, dispositivo das drogas e natureza dos corpos. Como tal droga expele do corpo tal humor e que umas dão cabo da doença e outras da vida, assim, entre os discursos, alguns entristecem, outros encantam, dão medo, inflamam um auditório, e alguns, por certas más persuasões, entorpecem a alma e a enfeitiçam".
Essa performance consuma-se como se deve: "Fiz desaparecer, com este discurso, a má reputação de uma mulher, [...] para Helena, um elogio, para mim, um brinquedo". Tal é, em toda a sua amplitude, a consistência discursiva de Helena, desde a consideração do menor pedaço de significante que entra em seu nome ("elle" [ela], "haine" [ódio]), até a concepção maior, que eu qualificaria de contra-ontológica, segundo a qual é o discurso que produz o ser.
A partir daí, ou dela, podemos desenhar a órbita da sofística da seguinte maneira. De um lado, a ontologia, de Parmênides a Heidegger: há o ser, "es gibt", e o homem, como bom pastor, está comprometido a dizer o que há. Do outro lado, para retomar uma palavra de Novalis, a logologia, em que vem primeiro o discurso, e onde o ser não é nada além que um efeito de dizer, uma performance discursiva.
É o "logos" que faz os objetos serem, que dá a consistência e a existência; tal é o caso na política (a "polis" grega, o mundo mais falastrão de todos, é uma criação contínua de discurso); tal é o caso no amor e, de maneira geral, para todo objeto de cultura. Tal é o caso, no cruzamento dessas razões, para Helena. É certamente assim, e não de outro modo, que ela é constituída.

Ainda Helena: Lacan
Eu gostaria agora de reunir esses fios, para dar algumas indicações sobre a maneira como Helena me deu vontade de reler "Encore" [Mais, Ainda, Outra vez; nota do tradutor: o livro foi publicado em português com o título "Mais, Ainda", mas não podemos nos esquecer o contexto sexual, em que "encore" é o que ordena a mulher ao homem quando ainda quer gozar, ou, em português de alcova, "não pára!"].
Eu me perguntei, mesmo sendo uma questão arriscada demais, mal formulada, se é a relação de Helena com a linguagem que faz dela a/uma mulher. Dito de outro modo: há ou não um impacto da diferença dos sexos sobre a linguagem? Como o desejo, o prazer, o gozo da mulher estão ligados à linguagem?
Proponho algumas pistas por meio de Lacan, por meio da minha leitura muito partida e muito parcial de "Mais, Ainda". Primeiro, está claro que há pelo menos uma pista negativa, em relação ao "real" da coisa ou do objeto. O desejo de Helena, o prazer de Helena, o gozo de Helena, nos dois sentidos do genitivo, objetivo e subjetivo -os que se têm com ela e os que ela tem-, tudo isso não é nada, não é "rem", não é alguma coisa. Quanto ao desejo que Helena pode ter... É sempre ou bem o desejo de Afrodite ou bem o desejo de Páris, mas, desde a "Ilíada" e a "Odisséia", nunca é o seu.
Parece-me que, para Lacan, em "Mais, Ainda", encontra-se uma tematização consistente e inaudita disso: ela insiste em pôr tolamente os pingos nos is, nisso que chamarei de "Tratado do Não-Ser do Gozo Feminino", para deixar que se ouça a retomada da estrutura que habita e constitui o "Tratado do Não-Ser", de Górgias, e que vimos posto em obra já nas inocências de Helena. O "Tratado do Não-Ser" de Górgias é composto de três teses, agenciadas segundo uma estrutura de recuo absolutamente admirável. 1. "Nada é". 2. "Se é, não é conhecível". 3. "Se é, e se é conhecível, é incomunicável". Essa estrutura de recuo, a reencontramos, por exemplo, na história do caldeirão de Freud: "Eu nunca emprestei caldeirão nenhum; o caldeirão tinha um buraco quando o tomei emprestado; eu devolvi o caldeirão intacto".
Encontro, em Lacan, as três teses do "Tratado do Não-Ser" aplicadas ao gozo feminino. Não tem mistério. Primeiro, ela não goza: "Não há outro gozo além do gozo fálico [...]; se houvesse um outro, mas não há outro além do gozo fálico [...]; é falso que haja um outro, o que não impede de ser verdadeiro o que vem a seguir, a saber, que não precisaria ser este". Logo, ela não goza.
E depois, se ela goza, ela não sabe disso: "Há um gozo que é dela, dessa ela que não existe e não significa nada. Há um gozo que é dela, do qual talvez nem ela mesma não saiba nada, apenas que ela o sente -isso ela sabe. Ela sabe, com certeza, quando isso acontece. Isso não acontece com todas". Logo, se ela goza, ela não sabe.
Enfim, se ela goza e se ela o sabe, ela não pode dizê-lo: "O que deixa alguma chance ao que adianto, a saber que, desse gozo, a mulher não sabe nada, é que, desde o tempo em que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos -eu falava na última vez das psicanalistas mulheres- para tentar nos dizê-lo, pois bem, calada! Nunca que se conseguiu tirar nada". Logo, em todo caso, ela não pode dizê-lo.
Agora, dessa não-coisa que recua sem cessar, podemos tentar falar positivamente? Partiremos outra vez da tese massiva de que se falha, que falhar é a única forma de realização da relação sexual. Tese massiva de "Mais, Ainda".
Então, do lado homem, falha-se por causa do corpo, por causa da anatomia, por causa do gozo fálico. "O gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não chega a gozar do corpo da mulher, precisamente porque isso de que ele goza é o gozo do órgão." É porque ele não goza dela, mas de si. Em suma, é para ele que seria preciso dizer que a anatomia é o destino.
Mas, do lado mulher, falha-se um pouco diferente. A provocação de Lacan está em afirmar: "Não há mulher que exclua pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e é preciso dizer claramente que se há uma coisa da qual elas mesmas reclamam bastante, até o momento, é disso mesmo, simplesmente -elas não sabem o que dizem, essa é toda a diferença entre mim e elas".
Aí, prestamos-lhe ouvido, mas, uma vez que lhe demos ouvido, podemos instruí-lo? Falha-se de maneira "louca", diz Lacan, "enigmática", por causa da linguagem. O que isso quer dizer: por causa da linguagem? O ser sexuado dessas mulheres nem-todas "não passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência lógica na fala". E ele fala de uma "outra satisfação, a satisfação da fala" [nota do tradutor: se Lacan falasse português, ao gozo masculino do falo, contraporia o gozo feminino da fala]. Relação com a fala, portanto, e não relação com o corpo. É isso que estou propondo que se entenda como um "falhar melhor", na medida em que o gozo está ligado à linguagem e que a linguagem, como se sabe, é o aparelho do gozo.
"Aparelho, não há outro fora a linguagem", e certamente não o corpo . "É assim que, no ser falante, o gozo está aparelhado." São apenas citações reunidas de ponta a ponta. Mas elas me permitem dizer que, para a mulher, se falha melhor. Muito precisamente: se falha melhor enquanto ela é Helena, quer dizer, antes da ordem da palavra e da linguagem que da coisa, antes da ordem e na ordem do discurso que do ser.
Donde essa tirada, para não dizer retirada, para terminar: o homem falha e goza como filósofo, a mulher falha e goza como sofista.

Barbara Cassin é pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. Formada em filologia e filosofia e especializada em Grécia antiga, é autora de "Ensaios Sofísticos" (Siciliano) e "Gregos, Bárbaros, Estrangeiros" (34), entre outros. Este texto é uma versão de sua conferência no congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, sexta-feira passada, no Rio.
Tradução de Fernando Santoro.


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