São Paulo, domingo, 17 de julho de 2005 |
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VER HELENA EM TODA MULHER
AO MESMO TEMPO FUGITIVA E RAPTADA,
A CAUSADORA DA GUERRA DE TRÓIA, QUE UNIU OS GREGOS E "PROVOCOU" A CIVILIZAÇÃO,
ESTÁ PARA O HOMEM COMO A LINGUAGEM PARA AS COISAS E PODE SERVIR COMO "EQUIVALENTE GERAL" PARA O FEMININO
Helena está traindo os guerreiros gregos, entre os quais Ulisses e seu marido, ela gostaria que eles se traíssem. E, a fim de que se traíssem, ela os faz perdidos de desejo imitando, para cada um, a voz da mulher que já não vêem há dez anos, e ela chama cada um por seu nome. Portanto, ela diz "Menelau" com sua própria voz, "Ajax" com a voz da mulher de Ajax, e "Ulisses" com a voz de Penélope. Evidentemente, "a imitação das vozes é impossível, completamente ridícula", diz o escoliasta; "quanto ao verso 279, este é plenamente incompreensível: como poderia Helena imitar a voz de cada uma das rainhas aquéias, e por que razão?", pergunta-se [Victor] Bérard [tradutor francês da Odisséia]; e [Phillippe] Jaccotet [tradutor e poeta francês], que todavia leu Freud e Lacan, refina: "Esse verso, que pareceu suspeito a mais de um crítico, pode ser simplesmente entendido pelo fato de que Helena fala grego, e não troiano". Destaco que a voz é o "pharmakon", remédio-veneno, por excelência; que a essência do desejo é a voz que chama cada homem por seu nome. Mas deduzo disso, sobretudo, que Helena é um equivalente geral de todas as mulheres, que é a/uma mulher. E isto pela virtude de sua voz, que serve para provocar o desejo porque ela é a voz de cada uma das mulheres para cada um dos homens, um por um. A palavra / a coisa: Eurípides Terceiro nível: a palavra é mais real que a coisa e, em Helena, é o caso. Eurípides encena isto em sua "Helena", que fez muito estardalhaço na época, uma "nova Helena", dizia-se. Na "Helena" de Eurípides, a novidade é que há duas Helenas. Há uma verdadeira -enfim, não sei qual é que se deve chamar de verdadeira. Digamos que há uma Helena que é Helena, e que Hera, a esposa por excelência, para livrá-la de todo esse lado malsão do rapto, da ruptura de contrato, da infidelidade, a encaminha para o Egito, na casa de um velho rei que já não lhe pode sequer fazer mal, Proteu. Ali, ela espera o tempo passar. É o protótipo da mulher fiel, perfeita esposa de marido partido para a guerra. E depois, há uma segunda Helena que não é nada mais do que "flatus vocis", névoa de som, um "agalma" de nuvem, um "eidôlon", um fantasma: o nome de Helena. Essa Helena foi quem navegou até Tróia, foi ela que Páris raptou, que sobe sobre as muralhas, pela qual os gregos combatem e se matam, é esta que Menelau recupera, com a qual ele chega nessa orla do Egito e se encontra confrontado à outra, a "verdadeira". Portanto, há o nome ou a sombra, a sombra nomeada "Helena", e a própria Helena; Helena de Tróia e Helena do Egito. Ora, essa peça é a mais antiplatônica possível, pois a palavra é aí mais real que a coisa. O nome é mais real que o corpo, pois tem mais efeitos. Não há nenhum equívoco possível, é mesmo o nome que está em Tróia, o nome sob sua forma de sopro-vento-nuvem. A peça termina, aliás, quando o "eidolon" nome, ídolo-fantasma-imagem, sai voando, alcança o céu, porque, como está dito no fim, "Helena não precisa mais emprestar seu nome aos deuses". As duas Helenas se encontram então para tornarem-se uma, uma única Helena que é de uma só vez seu corpo e seu nome. Finalmente, é esta que retorna com Menelau para um "happy end". Mas antes acontece uma cena genial de desconhecimento-reconhecimento, digna dos "misfits", que não consigo me abster de contar. Quando Menelau desembarca na orla do Egito, ele vê uma mulher que se parece com Helena -é finalmente Helena, ou melhor, a "Helena" com quem Helena terrivelmente parece-, e ele lhe diz alguma coisa como: "Ai, ai! Como te chamas?". Ela responde: "Helena". "Enfim, não podes ser Helena, pois que a tenho aqui, comigo, deixei-a aqui ao lado, em uma gruta". Ela, por sua vez: "Mas como és parecido com Menelau". Como ela entende tudo, ela tenta lhe explicar que "o nome pode estar em vários lugares, o corpo não". É então que Menelau resiste com toda a força desta frase magnífica: "É a grandeza de meus sofrimentos lá que me persuade, e não você". Todavia, eles partirão juntos, mas ficará a lição, de uma vez por todas, que a palavra é mais real que a coisa, e que o real na palavra é o efeito que ela faz. O elogio de Helena: Górgias De modo geral, Helena é um produto do discurso, é o próprio "logos" encarnado. Isto se lê por meio do "Elogio de Helena", de Górgias, o primeiro grande texto sobre Helena depois de Homero. Górgias chegou a Atenas com uma delegação, como embaixador, para resolver os negócios da Sicília. Conta-se que ele propôs então aos atenienses de fazer diante deles uma "epideixis", uma demonstração, uma prestação, uma conferência, na ágora: "one man show" relativamente comum, sobre Helena, em que ele mostra como ela é culpada. Ninguém ficou espantado, todo mundo sabia: ela abandonou seu marido, seu país, seus filhos etc., é a mais culpada das mulheres, por ela,os gregos morreram aos milhares. Mas ele acrescenta: "Voltai amanhã à mesma hora". No dia seguinte, mesma hora, mesmo lugar, Górgias pronuncia o único discurso que nos foi conservado: discurso magnífico, que vos aconselho de ler por inteiro. E o "Elogio de Helena" está aí para explicar porque Helena não só não é culpada como é precisamente a mais inocente das mulheres. Ela não é culpada por uma série de razões encaixadas, estrutura de encaixe que voltaremos a encontrar até chegar ao "Encore" ["Mais, Ainda", "O Seminário - Livro 20", de Jacques Lacan, ed. Jorge Zahar]. Helena não é culpada porque foi a fortuna, "as intenções do destino, as vontades dos deuses e os decretos da necessidade" que assim quiseram. É todo o lado "fatum", Offenbach, a fatalidade. Logo, se foi a fatalidade que a fez culpada, ela não é culpada. Ou bem, segunda hipótese, ela foi raptada à força, alguém a levou, a culpa é do raptor bárbaro e, outra vez, ela não é culpada. Ou bem, terceira possibilidade, ela foi "persuadida pelos discursos" e, aí então, se ela acreditou no que lhe diziam, ela é menos do que nunca culpada. Ela é inocentada, pois acreditou no "logos", como também é um "logos" que a inocenta, que desempenha sua inocência diante dos atenienses desta vez escandalizados, a ponto de forjarem o verbo "gorgianizar". Ora, o "logos", que vocês sabem o quanto é intraduzível, não é nada mais do que um "pharmakon"; como diz muito precisamente Górgias: "Existe a mesma relação entre poder do discurso e disposição da alma, dispositivo das drogas e natureza dos corpos. Como tal droga expele do corpo tal humor e que umas dão cabo da doença e outras da vida, assim, entre os discursos, alguns entristecem, outros encantam, dão medo, inflamam um auditório, e alguns, por certas más persuasões, entorpecem a alma e a enfeitiçam". Essa performance consuma-se como se deve: "Fiz desaparecer, com este discurso, a má reputação de uma mulher, [...] para Helena, um elogio, para mim, um brinquedo". Tal é, em toda a sua amplitude, a consistência discursiva de Helena, desde a consideração do menor pedaço de significante que entra em seu nome ("elle" [ela], "haine" [ódio]), até a concepção maior, que eu qualificaria de contra-ontológica, segundo a qual é o discurso que produz o ser. A partir daí, ou dela, podemos desenhar a órbita da sofística da seguinte maneira. De um lado, a ontologia, de Parmênides a Heidegger: há o ser, "es gibt", e o homem, como bom pastor, está comprometido a dizer o que há. Do outro lado, para retomar uma palavra de Novalis, a logologia, em que vem primeiro o discurso, e onde o ser não é nada além que um efeito de dizer, uma performance discursiva. É o "logos" que faz os objetos serem, que dá a consistência e a existência; tal é o caso na política (a "polis" grega, o mundo mais falastrão de todos, é uma criação contínua de discurso); tal é o caso no amor e, de maneira geral, para todo objeto de cultura. Tal é o caso, no cruzamento dessas razões, para Helena. É certamente assim, e não de outro modo, que ela é constituída. Ainda Helena: Lacan Eu gostaria agora de reunir esses fios, para dar algumas indicações sobre a maneira como Helena me deu vontade de reler "Encore" [Mais, Ainda, Outra vez; nota do tradutor: o livro foi publicado em português com o título "Mais, Ainda", mas não podemos nos esquecer o contexto sexual, em que "encore" é o que ordena a mulher ao homem quando ainda quer gozar, ou, em português de alcova, "não pára!"]. Eu me perguntei, mesmo sendo uma questão arriscada demais, mal formulada, se é a relação de Helena com a linguagem que faz dela a/uma mulher. Dito de outro modo: há ou não um impacto da diferença dos sexos sobre a linguagem? Como o desejo, o prazer, o gozo da mulher estão ligados à linguagem? Proponho algumas pistas por meio de Lacan, por meio da minha leitura muito partida e muito parcial de "Mais, Ainda". Primeiro, está claro que há pelo menos uma pista negativa, em relação ao "real" da coisa ou do objeto. O desejo de Helena, o prazer de Helena, o gozo de Helena, nos dois sentidos do genitivo, objetivo e subjetivo -os que se têm com ela e os que ela tem-, tudo isso não é nada, não é "rem", não é alguma coisa. Quanto ao desejo que Helena pode ter... É sempre ou bem o desejo de Afrodite ou bem o desejo de Páris, mas, desde a "Ilíada" e a "Odisséia", nunca é o seu. Parece-me que, para Lacan, em "Mais, Ainda", encontra-se uma tematização consistente e inaudita disso: ela insiste em pôr tolamente os pingos nos is, nisso que chamarei de "Tratado do Não-Ser do Gozo Feminino", para deixar que se ouça a retomada da estrutura que habita e constitui o "Tratado do Não-Ser", de Górgias, e que vimos posto em obra já nas inocências de Helena. O "Tratado do Não-Ser" de Górgias é composto de três teses, agenciadas segundo uma estrutura de recuo absolutamente admirável. 1. "Nada é". 2. "Se é, não é conhecível". 3. "Se é, e se é conhecível, é incomunicável". Essa estrutura de recuo, a reencontramos, por exemplo, na história do caldeirão de Freud: "Eu nunca emprestei caldeirão nenhum; o caldeirão tinha um buraco quando o tomei emprestado; eu devolvi o caldeirão intacto". Encontro, em Lacan, as três teses do "Tratado do Não-Ser" aplicadas ao gozo feminino. Não tem mistério. Primeiro, ela não goza: "Não há outro gozo além do gozo fálico [...]; se houvesse um outro, mas não há outro além do gozo fálico [...]; é falso que haja um outro, o que não impede de ser verdadeiro o que vem a seguir, a saber, que não precisaria ser este". Logo, ela não goza. E depois, se ela goza, ela não sabe disso: "Há um gozo que é dela, dessa ela que não existe e não significa nada. Há um gozo que é dela, do qual talvez nem ela mesma não saiba nada, apenas que ela o sente -isso ela sabe. Ela sabe, com certeza, quando isso acontece. Isso não acontece com todas". Logo, se ela goza, ela não sabe. Enfim, se ela goza e se ela o sabe, ela não pode dizê-lo: "O que deixa alguma chance ao que adianto, a saber que, desse gozo, a mulher não sabe nada, é que, desde o tempo em que lhes suplicamos, que lhes suplicamos de joelhos -eu falava na última vez das psicanalistas mulheres- para tentar nos dizê-lo, pois bem, calada! Nunca que se conseguiu tirar nada". Logo, em todo caso, ela não pode dizê-lo. Agora, dessa não-coisa que recua sem cessar, podemos tentar falar positivamente? Partiremos outra vez da tese massiva de que se falha, que falhar é a única forma de realização da relação sexual. Tese massiva de "Mais, Ainda". Então, do lado homem, falha-se por causa do corpo, por causa da anatomia, por causa do gozo fálico. "O gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não chega a gozar do corpo da mulher, precisamente porque isso de que ele goza é o gozo do órgão." É porque ele não goza dela, mas de si. Em suma, é para ele que seria preciso dizer que a anatomia é o destino. Mas, do lado mulher, falha-se um pouco diferente. A provocação de Lacan está em afirmar: "Não há mulher que exclua pela natureza das coisas que é a natureza das palavras, e é preciso dizer claramente que se há uma coisa da qual elas mesmas reclamam bastante, até o momento, é disso mesmo, simplesmente -elas não sabem o que dizem, essa é toda a diferença entre mim e elas". Aí, prestamos-lhe ouvido, mas, uma vez que lhe demos ouvido, podemos instruí-lo? Falha-se de maneira "louca", diz Lacan, "enigmática", por causa da linguagem. O que isso quer dizer: por causa da linguagem? O ser sexuado dessas mulheres nem-todas "não passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência lógica na fala". E ele fala de uma "outra satisfação, a satisfação da fala" [nota do tradutor: se Lacan falasse português, ao gozo masculino do falo, contraporia o gozo feminino da fala]. Relação com a fala, portanto, e não relação com o corpo. É isso que estou propondo que se entenda como um "falhar melhor", na medida em que o gozo está ligado à linguagem e que a linguagem, como se sabe, é o aparelho do gozo. "Aparelho, não há outro fora a linguagem", e certamente não o corpo . "É assim que, no ser falante, o gozo está aparelhado." São apenas citações reunidas de ponta a ponta. Mas elas me permitem dizer que, para a mulher, se falha melhor. Muito precisamente: se falha melhor enquanto ela é Helena, quer dizer, antes da ordem da palavra e da linguagem que da coisa, antes da ordem e na ordem do discurso que do ser. Donde essa tirada, para não dizer retirada, para terminar: o homem falha e goza como filósofo, a mulher falha e goza como sofista. Barbara Cassin é pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. Formada em filologia e filosofia e especializada em Grécia antiga, é autora de "Ensaios Sofísticos" (Siciliano) e "Gregos, Bárbaros, Estrangeiros" (34), entre outros. Este texto é uma versão de sua conferência no congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, sexta-feira passada, no Rio. Tradução de Fernando Santoro. Texto Anterior: + sociedade: Para além da felicidade Próximo Texto: Mulheres de Tróia Índice |
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