São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997.



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Traída pela natureza

O ensaísta Harold Bloom analisa o romance "Anna Karenina", de Tolstói


HAROLD BLOOM
especial para a Folha

A visão furiosa, em Schopenhauer, de uma insaciável Vontade de Vida encontrou um leitor receptivo em Tolstói, cujos impulsos ferozes nem precisavam, aliás, da assistência do filósofo alemão. Pode-se definir Anna Karenina como um romance dos impulsos, ou pulsões, já que (até onde eu saiba) não há outra narrativa tão completamente centrada sobre o fato de a protagonista se deixar carregar por sua vontade, a ponto de nada mais lhe importar. O amor de Anna por Vronski tem seus rivais na literatura do Ocidente; mas não existe outra representação da paixão erótica tão intensa como essa.
Tolstói tem a perspicácia de não explicar nada sobre a "escolha de objeto" de Anna. O que ele nos mostra é que não há escolha. Cheia de vitalidade e atraente em todos os domínios, Anna é uma personagem por quem se apaixonam a maior parte dos leitores homens, e Tolstói, também, claramente está apaixonado por ela. Não teria dito, como Flaubert, que Anna era ele; mas ela está mais próxima do autor do que Levin, para não falar em Vronski ou Kitti, entre outras personagens do romance.
Por que ela se suicida? Seria plausível que uma mulher hoje fizesse o que ela faz? Poderia haver uma Anna contemporânea? Essa pergunta pode ser reduzida a outra: por que Tolstói matou Anna Karenina? Seria uma forma de punição? Não me parece. O suicídio de Anna nos deixa tristes, mas também nos livra de compartilhar seu sofrimento (assim como livrou Tolstói também). Outras perguntas poderiam ser levantadas: como Schopenhauer teria recebido a morte de Anna? Liberação heróica, ou fracasso em sustentar a vida?
Tolstói leu Schopenhauer no intervalo entre "Guerra e Paz" e "Anna Karenina", um período incômodo, em que se viu derrotado na sua tentativa de escrever um romance sobre a era de Pedro, o Grande. Seu entusiasmo por Schopenhauer era essencialmente uma reafirmação de suas piores convicções: um moralismo sombrio, ameaçado pelas consequências de sua própria vitalidade apocalíptica. A Vontade de Vida de Schopenhauer, com seu status metafísico, de verdadeira coisa-em-si, é simplesmente o etos natural de Tolstói transformado em prosa. A Vontade de Vida, uma das hipérboles mais extraordinárias de todo o século 19, é o desejo unitário, ativo, insaciável, indiferente e universal, cujo objetivo é "sustentar indivíduos efêmeros e atormentados, por um período restrito de tempo, no melhor dos casos com insatisfações toleráveis e relativamente livres de dor, mas, mesmo assim, imediatamente acometidos de tédio; e depois a reprodução dessa espécie e seus esforços... Uma pressão cega, uma tendência inteiramente sem fundamento ou motivo".
E se isto é a Vontade de Vida, então a metafísica do amor entre os sexos acaba reduzida a uma espécie de traição: "Os casais de amantes são traidores, dedicados a perpetuar toda essa insatisfação e miséria, que, de outro modo, rapidamente chegaria ao fim..." Schopenhauer teria encontrado mais um exemplo disto, presumivelmente, em Levin e Kitti, tanto quanto em Vronski e Anna; mas aqui Tolstói se distancia, porque até ele é um pouco menos insano no que toca à metafísica do amor sexual. O que mais importa em Anna, pelo menos para o leitor, é sua intensidade, sua vontade de viver (sem letras maiúsculas). É esta aura dela que torna inesquecível o seu primeiro encontro com Vronski: "Naquela breve troca de olhares vronski teve tempo de notar a animação controlada que dava vida a seu rosto e parecia vibrar entre os seus olhos brilhantes e um mal perceptível sorriso, que se desenhava em seus lábios rosados. Era como se um excesso de vitalidade preenchesse de tal maneira o seu ser que se traía contra sua vontade, ora num sorriso, ora na luz dos seus olhos. Ela procurava extinguir deliberadamente essa luz, que continuava brilhando, mesmo assim, no seu leve sorriso".
Uma vitalidade benigna, por excessiva que fosse, era algo que Tolstói reconhecia nele mesmo. E o que ele ensina a si próprio, neste romance, é que uma vitalidade tão exuberante transcende a benignidade, ou qualquer outra qualidade. O capítulo 11 da parte 2 não é apenas um embrião do romance inteiro, e a essência de Anna, mas também, para mim, a cena mais reveladora que Tolstói jamais escreveu:
"Ela se sentia tão culpada, tão envergonhada, que só lhe restava se humilhar e implorar perdão; mas não tinha ninguém no mundo, além dele, de tal modo que até esse pedido de perdão tinha de ser dirigido a Vronski. Olhando para ele, sentia fisicamente o peso da humilhação e era incapaz de dizer mais nada. Vronski, de sua parte, sentia o que deve sentir um assassino, quando olha para o corpo privado por ele de vida. O corpo privado de vida era o amor deles dois (...). Mas apesar do horror que o assassino sente pelo corpo de sua vítima, ele tem de ser cortado em pedaços e escondido, e é preciso fazer bom uso do que se conseguiu com a morte.
Então, como um assassino que se joga desesperadamente sobre o corpo (...) e o arrasta para mutilá-lo, Vronski cobriu o rosto e os ombros dela de beijos. (...) Mas em seus sonhos, quando ela não tinha controle sobre as idéias, sua situação lhe aparecia com a mais chocante clareza. Havia um sonho, em especial, que ela tinha quase todas as noites. Sonhava que os dois eram seus maridos ao mesmo tempo e a cobriam de carícias (...). E ficava surpresa de que isso lhe parecera antes impossível; e explicava a eles, rindo, como tudo, assim, ficava mais simples, e como os dois, assim, estavam felizes e faceiros. Mas esse sonho lhe atormentava como um pesadelo e ela acordava com pavor".
Abruptamente, sem nem sequer uma indicação da natureza do que foi consumado, Tolstói nos lança após o evento. A tragédia de Anna e, em certo sentido, a do próprio Tolstói, está implícita nessa cena majestosa. O pobre Vronski, de uma vez só carrasco e vítima, nunca será um homem adequado para a intensidade de Anna. Não há nada que possa dizer e nada que possa fazer, porque é e sempre será, por definição, o homem errado. Mas quem poderia ter sido o homem certo? Levin? Talvez, mas Tolstói e a vida (há diferença?) não quiseram. Anna talvez tivesse adquirido aquela calma, necessária à reflexão, com Levin; mas não é possível ter certeza. Tolstói mesmo, seu duplo e seu irmão, seu gêmeo psíquico, teria sido errado para ela, e ela para ele.
"Personagens como Anna são figuras trágicas porque, pelos motivos mais elevados, são incapazes de viver uma vida dividida, ou sobreviver na repressão." Esta sentença de Martin Price é a melhor que já li sobre Anna, mas é de se perguntar se ela pode ser chamada de uma figura trágica, tanto ou mais do que o que Schopenhauer teria soturnamente dito, uma "traidora".
A tragédia está vinculada à divisão e à repressão; e Anna é traída pela natureza em si, que não gera homens com a vitalidade dela ou, quando gera, faz deles moralistas cruéis, como Tolstói. Anna é íntegra demais para a tragédia e imbuída demais de realidade para ser capaz de sobreviver em qualquer deformação social da mesma. Se ela morre, então, é porque Tolstói não era capaz de sustentar o sofrimento de imaginar uma outra vida em que ela tolerasse continuar vivendo.

Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental". O Mais! publica mensalmente seus artigos.
Tradução de Arthur Nestrovski.



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