São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997.



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A vigilância da visão

OLGÁRIA C.F. MATOS
especial para a Folha

"Comandar é falar ao olhar."
Napoleão Bonaparte "Não farás nem escultura, nem figura do que se encontra no Alto, nos céus, embaixo, na Terra." Com estas palavras, Deus proíbe aos homens, no Antigo Testamento, de representar em imagens o divino a partir do "original".
Deus manifesta-se ao homem pela Voz e por sinais. Assim dirige-se a Adão e Eva; ordena a Abraão o sacrifício de Isaac; envia as sete pragas ao Egito para punir o faraó; abre ao meio o Mar Vermelho e guia o povo eleito pelo deserto. Fala aos profetas jamais revelando sua imagem visível e seu rosto. O homem permanecia no domínio da voz e dos enigmas. Não exatamente, pois, quando cria Adão, a Bíblia acrescenta que Ele o fez "à sua imagem e semelhança". Sendo Deus matriz primeira, Adão apresenta-se como uma espécie de cópia realizada, mas o exemplar único, inferior ao modelo divino: é, paradoxalmente, cópia "original" e "autêntica". Com a Epifania, tudo muda. O Verbo faz-se Carne, o sagrado torna-se imagem que se expõe: "O Cristo é a imagem do Pai", inteiramente homem, completamente Deus. Epifania significa: "aparição", manifestação, nunca aparência dissimuladora.
De início, espetáculo e especulação possuem raiz comum: "de mesma origem, estão ligados à idéia do conhecimento como operação do olhar e da linguagem. A cultura está impregnada de seu próprio espetáculo, do fazer ver e do deixar-se ver. A questão não se coloca diretamente sobre o espetáculo, mas com o que lhe sucede quando capturado, produzido e enviado pelos meios de comunicação de massa, convertido em entretenimento" (cf. Marilena Chauí, em "Mídia e Democracia", aula inaugural na USP, 1992).
"Sem dúvida, nosso tempo", escreveu Feuerbach, "prefere a imagem à coisa. A ilusão é sagrada, a verdade profana". Isto significa a entronização do divino em objetos inanimados, a radicalização do fetichismo, o que ocorre dada a "vocação humano-divina dos homens", que se manifesta em sua história ao dominar a natureza desconhecida e ameaçadora. Ao transformar o mundo, tornando-o "inteligível, controlável e seguro", mesclam-se humanização-reconhecimento de si na exterioridade e teofania.
Pode-se reconhecer nas sociedades industriais, desdivinizadas pela secularização, efeitos religiosos que tendem a fazer surgir no real prosaico do mundo, em meio aos homens, a presença da encarnação do corpo de Deus, que é também, como no cristianismo, o próprio homem.
Na modernidade industrial, o dinamismo das ciências e das novas tecnologias participa da reconstrução permanente do cosmos, o que revela a face divina do homem como Criador, ao qual se associa, no entanto, a alienação. Pode-se reconhecer na transformação do olhar à longa distância, pelo telescópio de Galileu, um choque a partir do qual se separam o mundo e o universo. A ciência vive em um universo que ignora o mundo e suas dores; quanto a nós, vivemos ignorando o universo. Entre o "homo faber" -que deu origem ao telescópio- e a resistência do "homo religiosus", o desejo de conhecimento não se exaure no exercício da razão científica. Deve ser buscado nas fontes imaginárias da sociedade. Nas épocas de grande fervor religioso, peregrinos e fiéis reproduziam a viagem dos Reis Magos, para visitar lugares sagrados, adorar imagens e relíquias, orar e permanecer em piedoso recolhimento.
Um novo ardor, agora fetichista, encontra-se nas exposições universais da segunda metade do século 19 europeu, o culto ao divino converte-se em rituais ligados à veneração de artefatos industriais -as mercadorias. Toda a Europa deslocou-se para contemplá-las na exposição parisiense de 1855, que recebeu mais de 50 milhões de visitantes.
Grande espetáculo é também oferecido pelas galerias, construções em ferro e vidro, "aquários humanos", no dizer de Walter Benjamin, onde se acumulam mercadorias, jogadores, vitrinas e prostituição. Novas catedrais, elas são, a igual título da "féerie" das estradas de ferro e de suas estações, lugares de culto. O filósofo assim as descreve, com funções intercambiáveis; a Catedral de Marselha é descrita como estação ferroviária, e vice-versa.
Marx falava das "sutilezas metafísicas e argúcias teológicas" que se inscrevem nas mercadorias. Animismo, fetichismo, totemismo ressurgem nas mercadorias: "Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção apresenta-se como um imenso acúmulo de espetáculos", escreve Guy Debord em "A Sociedade do Espetáculo". O mistério da transubstanciação, por sua vez, encontra-se, por exemplo, nos chaveiros-brinde, oferecidos na compra de objetos de valor. Utilizados, é possível perceber neles uma espécie de entrega mítica e mística à transcendência da mercadoria.
Lugares de culto transformam-se em lugar de "exposição" de um edifício, de uma construção: "Há uma grande diferença entre os antigos iconoclastas e incendiários de igrejas e o alto grau de abstração que permite a um artilheiro da Guerra Mundial considerar uma catedral gótica como simples referência em sua área de tiro" (Jünger, "O Trabalhador").
Exposição ao olhar tem, simultaneamente, sentidos hipnótico e político, tal como se revelam no Panóptico projetado por Benthan, figura da gestão moderna das grandes massas, tal como ocorre a partir da Revolução Francesa. Nela, "o esforço de todos os poderes estabelecidos para ampliar os meios de manter a ordem nas ruas culmina na supressão da rua" (Debord, op. cit.). Tem fim a distinção entre o espaço público e o privado, o que se verifica no Panóptico de Benthan. Foi concebido para fins carcerários e manifesta intenções claras. Sua estrutura arquitetônica permite aos carcereiros ver sem, no entanto, serem vistos; quanto aos prisioneiros, são a um só tempo visíveis e incapazes de ver.
Há aqui um dispositivo visual que é, melhor dizendo, uma sugestão de visão: o indivíduo se torna dócil, submetendo-se a uma vigilância tanto real quanto virtual. O Panóptico é um pequeno teatro, onde cada detento aprende a desempenhar seu papel de prisioneiro para um público hipotético. Segundo Foucault, sua fantasmagoria máxima encontra-se nessa visão globalizante que é a realização última do puro valor de exposição de indivíduos sem defesa. A visibilidade total é uma armadilha! (Foucault, em "Vigiar e Punir".)


Olgária Chaim Féres Matos é professora de filosofia na USP e autora de "Os Arcanos do Inteiramente Outro", entre outros.




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