São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997.



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Uma angustiante pergunta

Em 'O Que É Justiça?', Kelsen discute as razões da boa conduta entre os homens


WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Grande filósofo do direito no século 20, Hans Kelsen respondeu à pergunta formulada no título de seu ensaio "O Que É Justiça?" com exemplar probidade: "Não sei". Considerou a Justiça como um problema situado no eixo da resolução dos conflitos e, enquanto temário próprio da psicologia, da etnologia, da história e da sociologia, na resolução do comportamento humano. Foi a Platão e, por intermédio de Paulo, primeiro teólogo cristão, discutiu a pregação de Jesus, tudo na tentativa de responder sua angustiante questão. Sem alcançar o sucesso final.
Escrito originalmente em alemão -todos os demais foram produzidos em inglês, quando Kelsen já morava em Berkeley (onde se situa a universidade desse nome, no oeste dos Estados Unidos)-, o ensaio deu nome a este livro. Nele, o pensamento de Kant e Aristóteles, orientadores principais da filosofia kelseniana, é referido antes da avaliação da moral relativista do ser humano, consequência de sua incapacidade de compreender valores absolutos.
Conclui que a relatividade do justo pode ser uma imoralidade em si mesma. Repete a pergunta e afirma no último parágrafo: "Agora, no final, estou absolutamente ciente de não tê-la respondido". A Justiça, que Kelsen não define, é a conceitualmente absoluta, o que leva, apesar de tudo, a aceitar uma Justiça relativa: a da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.
O livro, em caprichada tradução de Luiz Carlos Borges (com a colaboração de Vera Barkow no texto alemão), não se esgota no primeiro ensaio. Há 13 outros, na maioria publicados em órgãos esparsos nos anos 50, neles predominando -sem ser aflição exclusiva do autor- o tema da Justiça.
Bobbio, Habermas e Alf Ross, entre pensadores posteriores a Kelsen, percorreram o mesmo caminho pedregoso, e, como era de esperar, reconheceram os percalços encontrados. Para Norberto Bobbio a Justiça é a legitimação da lei, pois esta pode ser justa sem ser válida e pode ser válida sem ser justa. No livro "Direito e Democracia", Jürgen Habermas escrevia, em 1992, sobre as dificuldades apresentadas pelo discurso que defende filosoficamente a Justiça de um ponto de vista puramente normativo. Alf Ross, de seu lado, na obra "Sobre o Direito e a Justiça", pondera que a Justiça é a medida da correção das leis vigentes, conforme se reflita nelas, com maior ou menor grau de claridade ou de desfiguração.
No grupo dos estudiosos brasileiros, a cada passo, ressurge a preocupação com a inatingibilidade do justo. Lembro, entre tantas, a abordagem dialética de Roberto A.R. de Aguiar, em livro com o mesmo título de Kelsen, mas sem o ponto de interrogação. Para Aguiar a Justiça se revela como uma procura do melhor para os oprimidos, como estes o reivindicarem e conquistarem.
Estamos num mundo tumultuário, do escandalismo desenfreado, em que se dá mais atenção -valha-me, pelo menos, um exemplo- às aparências genitais do presidente da supernação, conhecidas (segundo a fonte) por uma senhora que o acusa, e menos à influência do destino da supernação sobre o planeta.
Nesse contexto, outra pergunta de Kelsen aflora no livro: "Por que a lei deve ser obedecida?". Em pequeno estudo, escrito especialmente para o livro, o pensador austríaco (nascido em Praga, em 1881, naturalizado norte-americano) responde que, com certeza, não é por razões morais que se deve cumprir a lei, e até lembra Locke para ponderar sobre a eventual iniquidade de leis ditadas por um governo autocrático. Então, talvez fosse de cumprir a lei porque, no dizer de São Paulo, "quem resiste à autoridade resiste a Deus". Mas certamente não é o caso, pois Deus é uma autoridade superior, cuja vontade real não pode ser conferida.


AS OBRAS
O Que É Justiça? - Hans Kelsen. Tradução de Luís Carlos Borges. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, SP, tel. 011/239-3677). 412 págs. R$ 37,50.



Para os positivistas, a lei deve ser obedecida porque o direito vigente parte de uma norma superior -a constituição?- cujos efeitos se espraiam por toda a ordem legal inferior. Também aqui a resposta é insatisfatória, pois há que ver o direito internacional, cuja força coercitiva é inconfundível com a coerção interna das nações organizadas em Estado. Consideração que não impede Kelsen de situar a norma positiva do direito internacional em nível supranacional e, assim, "em última análise, motivo de validade das ordens jurídicas nacionais". Tese que, com certeza, convém às potências mais fortes, mas há de preocupar intensamente as que não dispõem de sólidos efetivos militares ou sedimentada economia.
Notável, sobretudo por sua "Teoria Pura do Direito", publicada originalmente em meio a preocupações sobre o direito internacional, em 1911 -quando tinha 30 anos-, Kelsen trata, em outros estudos, da causalidade e das relações entre ciência e política, em preocupações repetidas, no ano passado, em seminário promovido pelo "Le Monde", reunidas em livro sob o título "Le Savant et le Politique Aujourd'hui".
Percorridos os ensaios reunidos neste volume, é fácil constatar que as aflições de Kelsen, quase cinquentenárias, continuam atuais e intensamente dramáticas ao nos aproximarmos do novo milênio, no qual, com certeza, elas continuarão nos atormentando. Não se trata apenas de dizer o que é Justiça, mas de a aplicar de modo permanente. Tomada em sentido absoluto, será apropriado estender a dificuldade sentida por Kelsen a todos os seres humanos.









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