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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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+ história

Combinação de dados é suficiente para tornar seletiva a memória e fazê-la oscilar entre o bem e o mal

A LANCHEIRA E O BOMBARDEIRO

Eriko Sugita - 5.ago.2002/Reuters
Visitantes do Museu de Hiroshima observam foto da explosão da bomba atômica em 1945


Tzvetan Todorov
especial para a Folha

Cada aniversário dos bombardeios em Hiroshima e Nagasaki, ao fim da Segunda Guerra, nos lembra que a memória não é moralmente neutra. Ela se inclina para o bem ou para o mal, e quatro perspectivas básicas moldam poderosamente toda narrativa histórica: o benfeitor ou seu beneficiário e o malfeitor ou sua vítima. Ser o beneficiário de uma ação é menos glorioso do que ser o benfeitor, porque sugere impotência e dependência. Mas ser a vítima de um crime é evidentemente mais respeitável do que ser o criminoso. E, embora ninguém queira ser uma vítima, muitas pessoas hoje querem ter sido uma vítima: elas aspiram ao status de vítima. A condição de vítima confere o direito a queixar-se, protestar e exigir. É mais interessante conservar o papel de vítima, ao invés de receber reparação. Ao invés de uma única satisfação, se mantém um privilégio permanente. O que é verdadeiro sobre os indivíduos o é ainda mais sobre grupos. Se se puder mostrar de maneira convincente que um grupo foi vítima de uma injustiça, o grupo em questão obtém uma linha de crédito moral infinita. Quanto maior o crime no passado, mais prementes os direitos no presente -que são conquistados apenas por meio da afiliação ao grupo prejudicado. É claro que hoje reconhecemos de maneira mais clara que nunca que a história sempre foi escrita pelos vitoriosos, o que nas últimas décadas deu origem a frequentes reivindicações de que se escreva a história das vítimas e dos derrotados, pelo menos ao lado da dos vitoriosos. Essa é uma reivindicação absolutamente legítima, porque nos convida a nos familiarizar com um passado antes ignorado. No entanto falar em nome das vítimas não traz um mérito ético adicional. Na verdade, não se pode extrair benefício moral da evocação do passado se deixarmos de perceber as falhas ou erros de nosso grupo. Mas é problemático fazer isso. Por exemplo, em 1995 o Instituto Smithsonian, em Washington, tentou rever o Enola Gay, o avião que despejou a bomba atômica em Hiroshima.

Pontos de vista
John Dower, historiador americano e especialista em Japão moderno, estudou profundamente o assunto. Ele demonstrou como a história pode ser apresentada e avaliada de modos totalmente diferentes: de um ponto de vista americano ou japonês, mesmo que nenhum deles esteja inventando fatos ou falseando fontes. A seleção e a combinação dos dados é suficiente. Para os americanos, havia "uma narrativa heróica ou triunfal em que as bombas atômicas representam o golpe final contra um inimigo agressivo, fanático e selvagem". Da perspectiva japonesa, havia um "relato de vitimização", em que "as bombas atômicas tornaram-se o símbolo de um tipo específico de sofrimento -muito semelhante ao Holocausto para os judeus". No próprio Museu de Hiroshima o papel de vítima foi explorado de maneiras que distorcem a memória de forma semelhante. Nem a responsabilidade do governo japonês por ter iniciado e continuado a guerra nem o tratamento desumano que os prisioneiros de guerra e as populações civis dominadas sofreram sob o domínio japonês são adequadamente reconhecidos. Cada um escolhe o ponto de vista que lhe convém. Quer nos identifiquemos com os heróis ou com as vítimas, com os pilotos do avião que pôs fim à Segunda Guerra Mundial ou com a população passiva submetida ao inferno da aniquilação atômica, estamos sempre do lado dos "inocentes" e dos "bons sujeitos". No Smithsonian, o Enola Gay teria um papel central numa exposição que pretendia apresentar o bombardeio de Hiroshima em toda a sua complexidade. No entanto, devido à pressão de diversos grupos patrióticos americanos, a exposição foi cancelada por ser considerada uma ofensa à memória. Ao deixar de apresentar os americanos no papel de benfeitores heróicos, ela sugeria que eles foram responsáveis por um massacre que não se poderia justificar totalmente. Como seria uma narrativa do mal se o autor se recusasse a identificar-se com o herói ou com a vítima? A pesquisa de Dower sobre as diferentes maneiras como os americanos e os japoneses lembram Hiroshima nos dá um bom exemplo. Ele pôde se identificar com ambos os grupos: pertence a um deles e seu trabalho o tornou intimamente familiar ao outro. O título que ele deu a sua versão dos fatos, depois de experimentar "Hiroshima como vitimização" (o ponto de vista japonês) e "Hiroshima como triunfo" (o ponto de vista americano), foi "Hiroshima como Tragédia".

Redenção impossível
Tragédia: a palavra significa não apenas sofrimento e desgraça, mas a impossibilidade de redenção. Seja qual for o caminho escolhido, em uma tragédia as lágrimas e a morte são decorrência inevitável. A causa das forças aliadas era sem dúvida superior à dos nazistas ou dos japoneses, e a guerra contra eles foi justa e necessária. No entanto mesmo as guerras "justas" provocam tragédias que não podem ser desconsideradas levianamente sob a alegação de que foi o inimigo quem as sofreu.
A lancheira da criança de 12 anos que explodiu em Hiroshima, preservada por acaso, com seu arroz e vagens calcinados pela explosão atômica, pesa tanto em nossa consciência quanto o Enola Gay. Na verdade, foi a exibição da lancheira, entre os artefatos que o Museu de Hiroshima emprestou à instituição americana, que tornou a exposição inaceitável para os antigos "heróis".
Somente se reunirmos coragem para ver o bombardeiro e a lancheira ao mesmo tempo será possível apreender a trágica visão da história que Hiroshima -assim como outros episódios que marcam nossa consciência moderna- claramente representa.


Tzvetan Todorov é diretor de pesquisa do Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS), em Paris, e autor de "Memória do Mal, Tentação do Bem" (ed. Arx) e "A Conquista da América" (Martins Fontes), entre outros livros. Copyright: "Project Syndicate".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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