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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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O AUTOR DE "ALTA FIDELIDADE" ESCREVE SOBRE EXPOSIÇÃO EM LONDRES DE TRABALHOS DO ARTISTA HUMPHREY OCEAN, QUE SE TORNOU SENSAÇÃO NO CIRCUITO ARTÍSTICO INGLÊS AO MODERNIZAR O GÊNERO FIGURATIVO

A AMPLIAÇÃO DO RETRATO

Divulgação
"Lorde Volvo e Sua Propriedade", trabalho do pintor inglês Humphrey Ocean


por Nick Hornby

Uma pergunta típica daqueles jogos de testes realizados em bares: qual é o elo entre o anárquico selo Stiff Records -primeiro lar de Elvis Costello, The Damned e Ian Dury, entre outros- e o poeta Philip Larkin [1922-1985]? A resposta é o pintor Humphrey Ocean, o qual, relembrarão os especialistas, gravou um compacto pelo selo em questão antes de pintar o irrespondível retrato de Larkin exposto na National Portrait Gallery. "Whoops-a-Daisy" foi seu último compacto, mas há outros retratos pintados por ele -de Paul McCartney, de Tony Benn- na coleção da National Portrait Gallery. Ocean trabalha num ateliê nos fundos do jardim de alguém em Stockwell, zona sul de Londres, e lá nos sentamos entre pilhas de obras suas, escutando uma antiga compilação de faixas de ska. Exibindo uma capacidade que parece peculiar a todos os estudantes de arte da sua geração, ele fala com animação discreta sobre tudo que é tipo de coisa: Merle Haggard, Rothko e Wallace Stevens. E quando o telefone toca, fala de forma gratificantemente detalhada sobre lápis e molduras. Se você adorasse pintura (ou poesia ou música), ele seria o seu professor favorito na escola; se não adorasse, você passaria as aulas refletindo sobre o mostrador do seu relógio na careca dele, sem medo de represálias. Ele parece entusiástico demais, além de demasiadamente gentil e cortês, para ter algum talento. Ocean tem um talento raro (talvez mais raro do que seria desejável num mundo apropriadamente pluralista): ele é um pintor figurativo de destaque e reputação, cujo trabalho é nítida e tranquilizadoramente contemporâneo. Em outras palavras, ninguém se sente idiota ou irremediavelmente careta por gostar das obras dele, e diante do atual clima de medo cultural -em que grande parte da arte moderna adquire utilidade máxima ao ser usada como uma vara para surrar os confusos ou os crédulos, dependendo do ponto de vista-, isso é realmente uma bênção. Ocean admite que existe um expressionista abstrato escondido dentro dele, lutando para sair, e talvez isso ajude: sua simplicidade e seus sólidos blocos de cor dissipam qualquer temor de achar que um bom retrato deva sempre ter olhos seguindo o espectador pelo aposento. E o olho com que ele escolhe seus temas também é suficientemente original para nos deixar respirar com tranquilidade.

Bêbados e doentes
"Lord Volvo and His State" [Lorde Volvo e Sua Propriedade], o retrato que ganhou o Prêmio Imperial de Retratos Tobacco (hoje British Petroleum), em 1982, e fez sua carreira deslanchar exibe um bando variado de pessoas -alguns dos seus antigos alunos de pintura- vadiando em torno de um carro de luxo. Ocean já pintou pessoas sentadas em ônibus ou no metrô e pessoas deitadas, doentes ou bêbadas nas barcas que cruzam o canal da Mancha.
Assim, devidamente fisgados e apaziguados, podemos relaxar e adorar seus quadros (quando foi a última ocasião em que algum de nós realmente pôde adorar -em vez de admirar, concentrar-se em, ser provocado ou sentir-se incomodado por- um quadro contemporâneo?). Há quem não goste deles, claro, mas ao menos os quadros têm o potencial de serem adorados, e uma das principais causas disso é que claramente foram pintados com grande afeto pelas tolices da humanidade.
Ocean é, possivelmente, um caso único: ele é um ex-membro de uma banda de escola de arte que acabou virando artista. A tal banda de escola de arte chamava-se Kilburn and the High Roads, cujo vocalista era Ian Dury, mestre de Ocean, e foi formada por sugestão da secretária social da escola, que não dispunha de um número de abertura para a festa de Natal. Os Kilburn ficaram agradavelmente surpresos diante de sua própria qualidade e guardaram os pincéis nos vidros de tinta. Mas quase imediatamente, quando começaram a se apresentar fora de Canterbury, Dury demitiu Ocean, que ainda tinha de completar mais um ano de curso na escola. No verão de 1973, já com o diploma no bolso, ele foi recontratado, e passou os seis meses seguintes em turnê com a banda. "Nós éramos tão bons que não podíamos ser gravados", diz ele ironicamente. Os Kilburns tocavam uma variedade muito inglesa e original de música dance -covers de Chuck Berry e Alma Cogan, um pouco de "free jazz", canções sobre coisas como uma insurreição numa mansão senhorial- e provavelmente deram uma pequena contribuição, junto com Dr. Feelgood e algumas outras bandas, para abrir a trilha entre o Genesis e os Sex Pistols. Ocean largou a banda após uma acidentada turnê com The Who, temeroso de que seria fácil passar o resto de sua vida produtiva rodando pelos pubs e boates da Inglaterra. O compacto gravado pela Stiff Records foi um caso único: ele foi convencido a entrar em estúdio por Ian Dury, que escrevera a letra de "Whoops-a-Daisy", e por Russell Hardy, ex-membro dos Kilburns. "Chaz Jankel fez os arranjos, e nós rachamos tudo por quatro. A Stiff vendeu 10 mil cópias do disco, e cada um de nós recebeu 12 libras e alguns quebrados. Espero que eles tenham gasto a grana almoçando bem."

Capas de disco
Pergunto como ele sobreviveu entre esse período com os Kilburns e o ano de 1982, em que ganhou o Prêmio Imperial de Retratos Tobacco. Faz-se uma longa pausa. Todo mundo acha normal um artista emergente passar décadas inteiras sem fazer quase nada. "Caramba. Essa é uma boa pergunta", diz ele, meditando. "Minha avó me deixou 300 libras, e fiz isso durar o máximo que pude." Ele pensa mais um pouco. "Hum... E eu dava aulas uma vez por semana. Percorria as faculdades de arte no sul da Inglaterra procurando emprego... Ah, e fiz algumas capas de disco." Os anos perdidos de Ocean estão começando a voltar à lembrança. "Fiz uma para 10CC e outra para Paul McCartney. Ah, e por causa da capa do McCartney, fui convidado a passar um ano nos Estados Unidos com os Wings, como uma espécie de artista em turnê." Provavelmente pouquíssimos de nós conseguiriam esquecer temporariamente um período passado na estrada com um dos maiores nomes na história da música popular, e o fato de Ocean ser capaz disso revela muito sobre o caráter anedótico da sua vida. Conversamos sobre Larkin, cujo retrato foi encomendado a Ocean pela National Portrait Gallery. Ele descreve o período que passou com o grande homem como "o mês mais engraçado da minha vida". "Ele tinha comprado uma casa em Hull com os seus direitos autorais, e era a casa mais anônima e menos poética que eu já tinha visto na vida. Ele culpava a casa por tudo. Passou dez anos lá sem escrever uma só palavra. Eu não sabia o que dizer sobre aquilo. Por fim balbuciei: "1961?", pois entendo um pouco de casas. E ele disse..." A essa altura Ocean assume o famoso tom lúgubre de Larkin e arremata: "Não, 1959. Mas entendi o que você quis dizer." Larkin queria saber tudo sobre McCartney, e eles conversavam sobre jazz. Ocean gostava de Roland Kirk, e Larkin preferia Pee Wee Russell, mas os dois se davam bem mesmo assim. "Ele tinha uns alto-falantes Tannoy... Tannoy! O típico alto-falante da zona sul de Londres." E Larkin gostou do retrato? "Acho que gostou, sim. Ele se virou para Monica e disse: "E nesta casa, ainda por cima!"."


Na escola de arte conversávamos sobre o fato de ninguém se entender como pintor antes de fazer 40 anos; aos 19, isso nos deixava muito morosos; agora que fiz 50, acho que consegui me entender"


"Como Estou Dirigindo?"
Há um ano Ocean tornou-se artista residente da Dulwich Picture Gallery, e os frutos de sua labuta podem ser vistos numa exposição revigorante e inteiramente adorável intitulada "How's My Driving?" [Como Estou Dirigindo?] (significativamente, não é dado nenhum número de telefone para o registro de queixas).
A exposição tem esse nome porque o trajeto do pintor para o trabalho lhe forneceu grande parte do material: algumas das casas e quadras de escritórios mais "Larkinescas" na zona sul de Londres receberam a brisa Oceânica, e o tratamento deu-lhes um charme que faz qualquer habitante das periferias metropolitanas se perguntar por que seu coração não canta sempre que vai ao jornaleiro. Sabem aqueles horríveis prédios de escritório com vidros verdes da década de 60? Bom, ao que parece eles não são tão horríveis assim. Ao que parece, nós deveríamos amá-los.
A exposição assume a forma de uma conversa viva e espirituosa com a surpreendentemente classuda coleção permanente da Dulwich. Há esboços de quadros de Teniers e Brouwer, e uma resposta ao retrato "As Irmãs Linley", de Thomas Gainsborough [pintor inglês, 1727-88], com as duas filhas de Ocean, de aparência extremamente contemporânea, no lugar das quatro modelos originais. O quadro de Teniers [pintor holandês do século 17], uma paisagem de inverno, também inspirou uma sequência de quatro pinturas sobre prédios, uma para cada estação. "Na escola de arte nós conversávamos sobre o fato de ninguém se entender como pintor antes de fazer 40 anos. Aos 19, isso nos deixava muito morosos. Bom, agora que fiz 50, acho que consegui me entender. Para mim, essa exposição é como se fosse "New Boots"...
Trata-se de uma descrição bastante útil, e não apenas porque "Como Estou Dirigindo?" dá a sensação de ser um disco com algumas versões cover, alguns interlúdios ligeiros (uma série de desenhos do "Dot Book" de Ocean), e uma sequência central, os quatro quadros sobre as estações, que a gravadora gostaria de distribuir como compactos.
Também se tem a impressão de que Ian Drury teria adorado esta exposição, e sua influência é palpável. Isto não é de surpreender, pois afinal Drury foi mestre de Ocean, mas não é o Drury professor que se sente ali, e sim o Drury exemplo de uma certa inglesice típica das escolas de arte no final do século 20. A coleção demonstra amor pelo passado, mas também não teme o presente: é alusiva, acessível, e tem alma. A turma das escolas de arte na década de 60 não parecia achar que era inteligente fingir que não sabia coisa alguma.
"Há muitas outras casas naquela área que eu poderia ter pintado", diz Ocean sobre "Outono", que mostra uma casa desafiadoramente suburbana à luz do crepúsculo. "Mas nenhuma era tão engraçada quanto essa."
E embora o quadro realmente tenha um tom lamentosamente cômico, também toca os nossos corações. Quem escutar uma canção de Dury vivenciará o mesmo tipo de coisa: a música nos faz rir, mas os solos são comoventes.
Quando fui visitar Ocean, eu acabara de ler "The Eclipse of Art" [O Eclipse da Arte, publicado em abril passado pela ed. Prestel], o elegante e persuasivo libelo de Julian Spalding contra tudo que lembra Saatchi e Serota [colecionadores ingleses]. Ao concluir, Spalding promete que, quando a sombra do conceitualismo passar, ficaremos ofuscados pela luz imaginativa dos artistas que estão trabalhando no nosso quintal. Mencionei isso a Ocean, que não quer saber do assunto, é claro: ele está de bem com a vida, seus quadros são disputados por colecionadores, e em todo caso ele acha o clima atual muito mais saudável do que na década de 80.
"Tudo era muito referencial, e todo mundo andava por aí com os bolsos atulhados de Gogol. Não que haja algo de errado com Gogol", diz Ocean. Em todo caso, ele prefere deixar que os historiadores resolvam a questão. "Ninguém olha para um Rembrandt e pensa "bom, não sei o que isso significa". E também ninguém se interessa só porque aquilo é antigo. Você olha para um Rembrandt e sente os seus joelhos bambearem. Isso é que importa."

A exposição "Como Estou Dirigindo?", de Humphrey Ocean, está em cartaz até 14/9 na Dulwich Picture Gallery, em Londres.

Nick Hornby é escritor britânico, autor de, entre outros, "Como Ser Legal", "Febre de Bola" e "Alta Fidelidade" (ed. Rocco). Este texto foi publicado originalmente no "Independent".
Tradução de Paulo Reis.


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