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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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AUTOR DO "ATLAS DO ROMANCE EUROPEU", QUE ESTÁ SAINDO NESTA SEMANA NO BRASIL, O ITALIANO FRANCO MORETTI EXPLICA COMO OS MAPAS PODEM AJUDAR A COMPREENDER A FICÇÃO DO SÉCULO 19

CARTOGRAFIAS LITERÁRIAS

Adriano Schwartz
Editor do Mais!

Literatura e geografia são duas disciplinas que não se misturam com muita frequência. No "Atlas do Romance Europeu - 1800-1900", que está sendo lançado nesta semana no Brasil pela editora Boitempo, o italiano Franco Moretti tenta mostrar que a união, entretanto, pode ser feita. Diretor do Centro de Estudos do Romance da Universidade Stanford (EUA), ele teve a idéia do estudo em uma viagem de carro, em 1991, ao lembrar de uma frase de "O Mediterrâneo", de Braudel, sobre a inexistência de atlas artísticos. Dedicou-se ao tema durante alguns anos até lançar o livro, em 1997, e, como afirma na entrevista a seguir, está agora preparando uma série de três ensaios na qual retoma, a partir de um ângulo diverso, a mesma temática. Moretti está no Rio de Janeiro nesta semana e chega a São Paulo no dia 29, onde ministrará nos dias 1º, 2 e 3 de setembro um curso na pós-graduação em letras da USP (informações pelo tel. 0/xx/11/3091-4296). O "Atlas do Romance Europeu" não será o único livro do autor lançado no Brasil neste ano. Em novembro, a editora Cosac & Naify deve iniciar a publicação da monumental enciclopédia "O Romance", em cinco volumes, da qual o italiano é o principal coordenador.

O "Atlas do Romance Europeu" foi lançado há mais de cinco anos. O sr. ainda trabalha no projeto?
Sim, ainda estou desenvolvendo algumas implicações de geografia literária; dentro de poucos meses publicarei uma série de três ensaios intitulada "Gráficos, Mapas, Árvores - Modelos Abstratos para o Estudo da Literatura", na qual eu proponho que a história literária tem muita coisa a aprender a partir da história quantitativa ("gráficos"), da teoria evolucionária ("árvores") e certamente da geografia ("mapas"). Ali enfoco as "histórias de lugarejos" britânicas e alemãs e tento explicar o que os mapas nos fazem "ver" que de outra forma não veríamos. De forma geral, diria que a contribuição dos mapas reside no fato de colocarem na frente de nossos olhos dois aspectos muito diferentes de trabalhos literários: sua capacidade de ordem interna e sua sensibilidade para pressões externas. Um bom mapa literário nos faz ver os dois lados da história literária: estruturas formais e contextos sociais.

O sr. lida principalmente com "romances realistas" (Jane Austen, Balzac, Dickens), que têm seus enredos localizados em lugares "existentes". O sr. considera seu método válido para um autor como Kafka? Ou, em outros termos, como lidar com a "ficcionalidade" da ficção quando ela não tem uma contrapartida clara no "mundo real"?
Eu não acho que a cartografia literária possa ser aplicada a qualquer tipo de narrativa. Ao ler as histórias natalinas de Dickens, por exemplo, percebe-se que mapeá-las seria inútil, pois a chave do gênero é a ética, não o espaço. O mesmo vale para Kafka, o mundo dele é muito rarefeito, muito "simples", em certo sentido, para contribuir para o significado de seus romances. Ele é paradigmático de uma questão geral: quanto mais o romance depende do estilo, menos útil a análise geográfica será. Para entender Kafka (ou Joyce ou Stein ou Beckett) temos que começar pela linguagem e pela linguística. A geografia é uma ferramenta útil, mas não explica tudo. Para isso, existem a astrologia e os estudos culturais.

Quando seu livro foi lançado, foi alvo de algumas resenhas muito críticas. Como o sr. analisa sua repercussão?
Houve uma crítica muito inteligente de um geógrafo italiano, que apontou que meus mapas eram mais geométricos do que geográficos, o que contém uma boa dose de verdade, creio, e não inteiramente um erro, como tento explicar no já citado "Mapas", que estou preparando. Houve algumas palavras pesadas de um par de -como devo dizer- marxistas petrificados. Mas a maior parte das reações foi muito positiva e generosa; além disso, o livro vendeu bem, foi traduzido: tive muita sorte nesse aspecto. Quanto à repercussão: nada. Tinha medo de que seria afogado por mapas de um tipo ou de outro enviados por estudantes, colegas, excêntricos etc, mas, desde a publicação do livro, não recebi um único mapa. Minha impressão é de que as pessoas ficam felizes em me ouvir explicar as virtudes da cartografia, examinam os mapas e, então, vão para casa e esquecem. "Pazienza", como dizemos na Itália.


Um bom mapa literário nos faz ver os dois lados da história literária: estruturas formais e contextos sociais


A geografia é uma ferramenta útil, mas não explica tudo; para isso, há a astrologia e os estudos culturais


Hoje, três críticos brasileiros estão entre os grandes intérpretes contemporâneos do romance


Em um artigo recentemente escrito [de Marina Vishmidt, no site www.metamute.com], lê-se: "Se somos os injustamente cidadãos pensantes de uma "era da informação", bestificados pelas lisonjas da "cultura visual", então a tradução da informação na forma visual, muitas vezes chamada de cartografia, emerge como o motivo e metodologia privilegiados da mídia, tática e de outras formas. Anaximandro pode ter inventado o mapa em 560 a.C., mas a cartografia está em alta no momento. Olhe por cima de sua mesa e verá que todos estão fazendo mapas". O sr. teve a idéia de escrever o "Atlas" antes dessa "febre" começar. Em sua opinião, por que a "cartografia" está tão "em alta no momento"?
Acho que o artigo é inteligente, mas errado. Olhe por cima de sua mesa e verá que quase ninguém está fazendo mapas. Como poderiam? A geografia é uma disciplina em extinção na maioria dos países (com exceção da França; provavelmente porque lá ela juntou forças com a formidável escola histórica dos Annales). Em Manhattan, para lhe dar um exemplo, o único departamento de geografia ainda aberto fica no Hunter College: nem a Columbia nem a Universidade de Nova York (NYU) nem a Universidade da Cidade de Nova York (Cuny) têm um. Vá à casa de um amigo, pergunte-lhe onde estão seus livros de geografia e veja o que acontece. Temos guias, sim, porque somos todos turistas. Mas guias não são realmente bons exemplos de "geografia" como uma disciplina intelectual! O que aquele artigo -e muitas outras pessoas, é claro- quer dizer com "fazer mapas" é uma metáfora: não o verdadeiro feitio de mapas, mas um esboço inicial abstrato de um problema ou situação, independentemente de seu conteúdo geográfico. Note bem, eu gosto de esboços abstratos de todos os tipos; ainda assim, deveríamos lembrar que o patos da cartografia reside no fato de que ele sempre transmite informações geográficas. Se esquecermos disso, contribuímos para a morte da geografia não importa o quão euforicamente falemos sobre "cartografia".

Mudando um pouco de assunto, no Brasil os trabalhos e idéias de Mikhail Bakhtin, de um lado, e Georg Lukács, de outro, são muito influentes entre as pessoas que estudam a teoria do romance. Qual é a sua opinião a respeito dos dois pensadores? E o trabalho de quem o sr. considera importante conhecer entre os teóricos que estão atualmente discutindo o assunto?
Lukács e Bakhtin: eles estão no cerne de qualquer teoria do romance. Pessoalmente, fui enormemente influenciado pela "Teoria do Romance", de Lukács, no início de minha vida intelectual, ao passo que me deparei com Bakhtin mais tarde e, apesar de admirar sua amplitude e fervor, nunca fui igualmente influenciado por ele. Talvez seja porque seja cético em relação a sua teoria do cômico, que me parece uma arma cultural usada mais frequentemente contra as classes mais baixas do que contra as mais poderosas, como ele afirma. No entanto, se tivesse que mencionar um teórico como ponto de partida para futuras teorias do romance, escolheria Friedrich Schlegel: seus fragmentos são muitas vezes um pouco malucos, mas extremamente iluminadores, porque ele escrevia em um momento em que o romance já havia conquistado a leitura em massa e a centralidade intelectual, mas ainda não havia passado pela delimitação morfológica do "realismo" do século 19; portanto Schlegel poderia ter um senso do "caos" formal das possibilidades e formas romanescas que perdemos desde então. Em relação a hoje, três críticos brasileiros -Antonio Candido, Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima- figuram certamente entre os grandes intérpretes contemporâneos do romance. Em outros lugares, eu mencionaria o trabalho de Tomas Pavel, um romeno especializado em literatura francesa, Massimo Fusillo, um italiano que combina estudos clássicos com Pasolini, e Jonathan Zwicker, um americano muito jovem que está tentando encontrar uma analogia entre os romances chineses, japoneses e coreanos. Como você vê, acho que o trabalho mais interessante irá surgir de especulações históricas audaciosas ou de trabalhos regionais para os quais os estudos da América Latina têm obviamente sido um excelente modelo.

Durante décadas sempre houve alguém dizendo que o romance morreu ou que o gênero está apenas se repetindo. O que o senhor acha disso?
Relembrando o século 20, acho que podemos falar de duas principais mudanças de paradigmas na história do romance. A primeira, ocorrida por volta de 1910-1930, é a dos experimentos modernistas e vanguardistas, a maioria dos quais está hoje completamente esquecida. Frequentemente, esses livros não são nem fáceis nem agradáveis de serem lidos, por rejeitarem a primazia do enredo, e suas frases ficam a meio caminho entre a prosa e a poesia (e são muitas vezes difíceis de entender). Mas eram experiências ambiciosas, inteligentes e extremamente variadas, que ainda estão à espera da discussão crítica que merecem. A segunda mudança ocorreu entre 1950 e 80, estimulada principalmente pelas narrativas latino-americanas, e hoje ainda é o estilo dominante. É complicado explicar a leitores brasileiros o que isso significa, portanto só direi que fez com que a leitura de romances voltasse a ser novamente aprazível. Agora, uma dupla renovação como essa é uma façanha de invenção digna de qualquer momento na longa história do romance: quase certamente um sinal de vitalidade, não de morte. O que mudou, inquestionavelmente, no entanto, é o papel dos romances na cultura geral: eles sofrem com a concorrência de filmes, rádio, TV e, agora, dos jogos eletrônicos. A centralidade que o romance desfrutou nos séculos 18 e 19 nunca mais será reconquistada e, nesse sentido, o romance está certamente "mais fraco" do que há cem anos.

O sr. conhece romances brasileiros? De quais autores gosta mais?
Posso ler prosa científica em português (porque não é muito diferente do italiano), mas o problema com romances é que eles descrevem 1 milhão de pequenos objetos do cotidiano e todo tipo de nuanças de sentimento, e isso eu realmente não consigo acompanhar em seu idioma; portanto, só posso ler romances traduzidos para uma língua que conheço bem, o que restringe o campo. Dentro desses limites, fiquei encantado pela inteligência crítica dos últimos trabalhos de Machado de Assis ("Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba", "Dom Casmurro", "Memorial de Aires"), que exploram uma possibilidade nunca realmente ativada pelo romance europeu (isto é, na interpretação de Roberto Schwarz, a autotraição da classe dominante). "Grande Sertão: Veredas", que li quando estava estudando formas épicas modernas, foi outro deleite, e adorei a representação de Guimarães Rosa de um espaço a respeito do qual eu não conhecia nada (e onde um bom mapa poderia ser muito interessante!). Nesse momento, estou lendo "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, e colocarei "Parque Industrial", de Patrícia Galvão, em minha mala para o Brasil.

Atlas do Romance Europeu
216 págs., preço não definido
de Franco Moretti. Tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. Boitempo Editorial (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, SP, tel. 0/xx/ 11/3872-6869).


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