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Chicago: Tragicomédia da fé
Enquanto as outras igrejas pregam a obediência, a Trinity aprendeu a fazer o elogio da rebeldia,
em reação à segregação
DO ENVIADO ESPECIAL AOS EUA
São quase 11h e a Trinity United Church of
Christ, no South Side
de Chicago, está cercada por vans e câmeras das principais redes de TV
americanas desde as 8h.
É o primeiro domingo depois
de Barack Obama ter anunciado seu rompimento formal
com o reverendo Jeremiah
Wright Jr. e com a igreja onde
se casou e com a qual mantinha
há anos vínculos estreitos, tanto religiosos como ideológicos.
A Trinity é conhecida por
pregar a teologia da libertação
negra, uma versão radical, engajada e minoritária de cristianismo, que reivindica elementos das tradições africanas.
Pouco antes das 11h, centenas de pessoas convergem para
o prédio hexagonal na esquina
da rua 95 com a South Eggleston. Algumas mulheres usam
chapéu e vestido longo. A igreja
está lotada. E, fora um ou outro
convidado e o punhado de jornalistas que acabará confinado
comigo numa fileira do mezanino, sob a guarda inclemente
de uma voluntária devota, todos são negros.
As TVs não podem entrar, e
os congregantes parecem ter
sido instruídos a não falar com
a imprensa. "Depois de tudo,
você queria o quê?", me pergunta a assessora de imprensa
Donna Miller, já desconversando, antes de me direcionar ao
curral de jornalistas -cinco ou
seis que se entreolham em silêncio, constrangidos, na esperança da aparição improvável
do principal protagonista, hoje
recolhido ao silêncio.
O reverendo Jeremiah
Wright Jr. se aposentou em fevereiro, aos 66 anos, depois de
36 anos de ativismo social, comandando uma congregação
negra que passou de menos de
cem membros para 8.000 sob a
sua liderança -a Trinity é a
maior igreja dentro da denominação protestante de maioria
branca United Church of
Christ, conhecida por ser uma
das mais liberais do país.
Durante o escândalo, detonado por suas declarações polêmicas, em especial sobre o 11
de Setembro, Wright ainda
tentou retomar as rédeas e reagir aos ataques da mídia, o que
só fez piorar sua imagem pública num país acostumado a ouvir pastores brancos fanáticos
dizerem coisas bem mais graves e seguirem incólumes.
É o primeiro domingo em
que o novo pastor, o reverendo
Otis Moss 3º, 37, empossado
em fevereiro, ocupará a cadeira
antes reservada a Wright no
centro da igreja.
Vestido com túnica branca
com pregas coloridas, que combinam com os motivos africanos dos trajes dos pastores associados ao redor, Moss finalmente se refere ao trauma, lendo uma "Declaração de Interdependência", na qual presta
homenagem ao pastor Wright,
sem mencioná-lo pelo nome.
Nada é direto. Moss já não se
refere à "crucificação do reverendo Wright". O texto cita
"Entre Quatro Paredes", de
Sartre, para falar da "estranha
tragicomédia grega" em que a
comunidade da Trinity se viu
envolvida nos últimos meses.
"Somos um povo humilhado,
e as feridas do nosso encontro
com a história deixaram cicatrizes na nossa alma. A Bíblia é
clara: somos pressionados por
todos os lados, mas não fomos
destruídos!"
É essa declaração de resistência e superação, ao mesmo
tempo em que agradecem ao
Senhor com uma celebração de
êxtase coletivo, que dá o tom
trágico, desesperado e heróico
do culto.
Aqui, Deus foi transformado
em estratégia de luta e mobilização social. Enquanto as outras igrejas pregam a obediência, a Trinity aprendeu a fazer o
elogio da rebeldia, em reação à
segregação.
Daí a catástrofe de constatarem o óbvio e o irreversível:
que Obama só tinha alguma
chance de se eleger presidente
de um país como os EUA depois de se desvencilhar do reverendo Wright e de sua igreja.
O coro é formado por uma
centena de pessoas vestidas de
branco, numa arquibancada ao
fundo, atrás do pastor e dos
músicos, ao lado de um grande
vitral colorido, que representa
cenas egípcias e bíblicas.
A igreja inteira canta e dança
sem parar, ao som de "spirituals", "freedom songs", folk e
até jazz, por quase três horas
seguidas. O mezanino sacode.
Sombra
De vez em quando, mulheres
gritam e agradecem ao Senhor.
A voluntária que toma conta
dos jornalistas se vira para mim
e diz: "Escreva aí no seu jornal
que é uma dança feliz".
Estão todos tomados pelo êxtase, mas não dá para saber
quanto do espetáculo é uma encenação de alegria, tolerância e
pensamentos positivos, montada especialmente para a mídia para abafar o escândalo.
A igreja parece vir abaixo, os
pastores pingam de suor, as
pessoas dançam, cantam e batem palmas. Mulheres tremem
na platéia, numa espécie de
transe, e são reconfortadas por
vizinhos e vizinhas. Agradecem
ao Senhor e choram.
A incorporação de formas do
misticismo africano como modo de resgate cultural das origens é deliberada e bem-vinda,
ao contrário das congregações
negras mais conservadoras, como a evangélica The Potter's
House, em Dallas, no Texas, a
maior igreja negra dos EUA -e
a décima na contagem absoluta, com 17 mil membros.
No South Side de Chicago, o
reverendo Moss termina seu
sermão de domingo invocando
grandes homens que permaneceram à sombra da história, às
margens da grandeza, sempre
fiéis a sua visão.
É difícil não ver aí uma referência à própria relação entre o
reverendo Wright e Barack
Obama.
Uma referência que traduz a
visão da igreja: a tragicomédia
de um pai espiritual que, por
sua radicalidade inconveniente, é obrigado a se recolher à
sombra para que o filho possa
vencer num mundo injusto.
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