São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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Chicago: Tragicomédia da fé

Enquanto as outras igrejas pregam a obediência, a Trinity aprendeu a fazer o elogio da rebeldia, em reação à segregação

DO ENVIADO ESPECIAL AOS EUA

São quase 11h e a Trinity United Church of Christ, no South Side de Chicago, está cercada por vans e câmeras das principais redes de TV americanas desde as 8h.
É o primeiro domingo depois de Barack Obama ter anunciado seu rompimento formal com o reverendo Jeremiah Wright Jr. e com a igreja onde se casou e com a qual mantinha há anos vínculos estreitos, tanto religiosos como ideológicos.
A Trinity é conhecida por pregar a teologia da libertação negra, uma versão radical, engajada e minoritária de cristianismo, que reivindica elementos das tradições africanas.
Pouco antes das 11h, centenas de pessoas convergem para o prédio hexagonal na esquina da rua 95 com a South Eggleston. Algumas mulheres usam chapéu e vestido longo. A igreja está lotada. E, fora um ou outro convidado e o punhado de jornalistas que acabará confinado comigo numa fileira do mezanino, sob a guarda inclemente de uma voluntária devota, todos são negros.
As TVs não podem entrar, e os congregantes parecem ter sido instruídos a não falar com a imprensa. "Depois de tudo, você queria o quê?", me pergunta a assessora de imprensa Donna Miller, já desconversando, antes de me direcionar ao curral de jornalistas -cinco ou seis que se entreolham em silêncio, constrangidos, na esperança da aparição improvável do principal protagonista, hoje recolhido ao silêncio.
O reverendo Jeremiah Wright Jr. se aposentou em fevereiro, aos 66 anos, depois de 36 anos de ativismo social, comandando uma congregação negra que passou de menos de cem membros para 8.000 sob a sua liderança -a Trinity é a maior igreja dentro da denominação protestante de maioria branca United Church of Christ, conhecida por ser uma das mais liberais do país.
Durante o escândalo, detonado por suas declarações polêmicas, em especial sobre o 11 de Setembro, Wright ainda tentou retomar as rédeas e reagir aos ataques da mídia, o que só fez piorar sua imagem pública num país acostumado a ouvir pastores brancos fanáticos dizerem coisas bem mais graves e seguirem incólumes.
É o primeiro domingo em que o novo pastor, o reverendo Otis Moss 3º, 37, empossado em fevereiro, ocupará a cadeira antes reservada a Wright no centro da igreja.
Vestido com túnica branca com pregas coloridas, que combinam com os motivos africanos dos trajes dos pastores associados ao redor, Moss finalmente se refere ao trauma, lendo uma "Declaração de Interdependência", na qual presta homenagem ao pastor Wright, sem mencioná-lo pelo nome.
Nada é direto. Moss já não se refere à "crucificação do reverendo Wright". O texto cita "Entre Quatro Paredes", de Sartre, para falar da "estranha tragicomédia grega" em que a comunidade da Trinity se viu envolvida nos últimos meses.
"Somos um povo humilhado, e as feridas do nosso encontro com a história deixaram cicatrizes na nossa alma. A Bíblia é clara: somos pressionados por todos os lados, mas não fomos destruídos!"
É essa declaração de resistência e superação, ao mesmo tempo em que agradecem ao Senhor com uma celebração de êxtase coletivo, que dá o tom trágico, desesperado e heróico do culto.
Aqui, Deus foi transformado em estratégia de luta e mobilização social. Enquanto as outras igrejas pregam a obediência, a Trinity aprendeu a fazer o elogio da rebeldia, em reação à segregação.
Daí a catástrofe de constatarem o óbvio e o irreversível: que Obama só tinha alguma chance de se eleger presidente de um país como os EUA depois de se desvencilhar do reverendo Wright e de sua igreja.
O coro é formado por uma centena de pessoas vestidas de branco, numa arquibancada ao fundo, atrás do pastor e dos músicos, ao lado de um grande vitral colorido, que representa cenas egípcias e bíblicas.
A igreja inteira canta e dança sem parar, ao som de "spirituals", "freedom songs", folk e até jazz, por quase três horas seguidas. O mezanino sacode.

Sombra
De vez em quando, mulheres gritam e agradecem ao Senhor. A voluntária que toma conta dos jornalistas se vira para mim e diz: "Escreva aí no seu jornal que é uma dança feliz".
Estão todos tomados pelo êxtase, mas não dá para saber quanto do espetáculo é uma encenação de alegria, tolerância e pensamentos positivos, montada especialmente para a mídia para abafar o escândalo.
A igreja parece vir abaixo, os pastores pingam de suor, as pessoas dançam, cantam e batem palmas. Mulheres tremem na platéia, numa espécie de transe, e são reconfortadas por vizinhos e vizinhas. Agradecem ao Senhor e choram.
A incorporação de formas do misticismo africano como modo de resgate cultural das origens é deliberada e bem-vinda, ao contrário das congregações negras mais conservadoras, como a evangélica The Potter's House, em Dallas, no Texas, a maior igreja negra dos EUA -e a décima na contagem absoluta, com 17 mil membros.
No South Side de Chicago, o reverendo Moss termina seu sermão de domingo invocando grandes homens que permaneceram à sombra da história, às margens da grandeza, sempre fiéis a sua visão.
É difícil não ver aí uma referência à própria relação entre o reverendo Wright e Barack Obama.
Uma referência que traduz a visão da igreja: a tragicomédia de um pai espiritual que, por sua radicalidade inconveniente, é obrigado a se recolher à sombra para que o filho possa vencer num mundo injusto.


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