São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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Nova York: Uma comediante mórmon

"A fé não faz sentido, mas esse é o princípio da fé; nenhuma religião, no fundo, faz sentido"

DO ENVIADO ESPECIAL AOS EUA

Como todo aspirante a ator que se muda para Nova York decidido a estudar teatro, Elna Baker, nascida em Seattle, fez um pouco de tudo (e chegou a recepcionista do restaurante Nobu, um dos japoneses mais celebrados da cidade) antes de poder sobreviver do trabalho de escritora e comediante.
Seu primeiro emprego de atriz, depois de se formar pela Escola de Artes Dramáticas da Universidade de Nova York, foi no papel de enfermeira das incubadoras de bonecas "recém-nascidas" (produzidas, segundo consta, com material desenvolvido pela Nasa, para parecerem reais) da tradicional loja de brinquedos F.A.O. Schwarz, na Quinta Avenida.
Cabia a Elna empregar seu talento para manter a ilusão de meninas de sete anos que, ao entrar na loja acompanhadas pelas mães, passavam a agir como mulheres adultas (mas não completamente) no processo de adoção de crianças.
"Babies Buying Babies" ("Bebês Comprando Bebês"), o monólogo em que Elna Baker narra sua experiência de vendedora-demonstradora no berçário da loja F.A.O. Schwarz (e que pode ser acessado pela internet, no programa "This American Life", da Rádio Pública Nacional, ou no site da própria autora) expõe os preconceitos, a psicologia e as expectativas da vida americana com um sarcasmo improvável na boca de uma mórmon praticante.
Elna Baker é o que o leitor leigo definiria como um paradoxo vivo: uma comediante mórmon. Uma definição da qual ela própria tenta se livrar, em vão.
Os mórmons não bebem em hipótese nenhuma; a rigor, devem se casar virgens, cedo e entre mórmons; costumam ter muitos filhos (pelo menos, para os padrões americanos) e seguir códigos de conduta bastante estritos, ditados e mantidos por um profeta vivo, escolhido dentre um grupo seleto de apóstolos.
Os mórmons também têm o costume peculiar de batizar (e portanto converter) os mortos -mesmo aqueles que em vida não comungavam na sua fé.
"Tecnicamente, se o profeta diz que você deve fazer uma coisa, mesmo se for uma coisa realmente ridícula, você terá que seguir o que ele disse. Por outro lado, uma das idéias fundamentais do mormonismo é a revelação pessoal. Toda vez que alguém lhe diz alguma coisa, é sua responsabilidade perguntar a Deus sobre a verdade daquilo. E é esse pensamento que o ajudará a entender a resposta. Se, durante a oração, você não concordar com o que lhe foi dito, é porque aquilo não é verdadeiro. É claro que sempre fica a dúvida: será que estou dizendo para mim mesma o que eu quero ouvir? Mas há esse ideal da reflexão pessoal", diz.

Humor reflexivo
Muito do humor de suas apresentações (que podem lembrar Woody Allen e David Sedaris) vem das agruras dessa comediante, mórmon e solteira (e portanto, em princípio, virgem), em busca do homem ideal, em Nova York -cidade que, em mais de um aspecto, é a antítese do mormonismo.
Apesar de ter crescido 50% nos últimos dez anos, a população local de mórmons não passa de 5.000.
O título de seu primeiro livro, a ser publicado em 2009 pela Penguin, que o disputou com duas outras editoras, diz muito: "The New York Regional Mormon Singles Halloween Dance" ("O Baile de Halloween dos Solteiros da Regional Mórmon de Nova York").
"É uma história de formação sobre ser mórmon em Nova York. E é uma comédia", esclarece a autora, que, contrariando os ideais da igreja, continua solteira aos 26 anos, já namorou um ateu e hoje está saindo com um muçulmano iraniano.
Num vídeo disponível no YouTube -que faz referência ao baile de Halloween do título e à fantasia de biscoito chinês que ela confeccionou especialmente para a ocasião-, Elna diz a uma platéia às gargalhadas que, em Nova York, não é possível manter um namorado por mais de quatro semanas sem transar.
Há cerca de 12 milhões de mórmons no mundo. Nos EUA, representam apenas 1,7% da população. No Brasil, chegam a mais de 1 milhão, segundo dados da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

Sentido da fé
É difícil imaginar uma pessoa que escreve com tanta auto-ironia e que nunca tenha parado para questionar a sua fé.
"A fé não faz sentido, mas esse é o princípio da fé; nenhuma religião, no fundo, faz sentido. É claro que tenho muitos momentos de dúvida. Você nunca tem garantia absoluta da fé. Você tem que lutar para mantê-la no centro da sua vida. E acaba sendo definido por ela", diz.
"Essa é uma das razões pelas quais também me debato com a fé. Não quero ser definida por ela, quero ser apenas quem sou, mas reconhecendo ao mesmo tempo que, em muitos aspectos, essa fé me deu forma. E que ela também me define."
É claro que essa contradição só pode se resolver se a religião for vivida mais como questão de foro íntimo, entre o indivíduo e Deus, do que como submissão a uma cultura e a um espaço público.
"Fui criada segundo os preceitos da religião, estudando o "Livro de Mórmon" e a Bíblia. No meu trabalho, essa crença é central para minha identidade. É algo de que me beneficio, algo que me ajuda, que me desafia a fazer as escolhas com as quais no final das contas me sinto bem. Quando trabalho, sempre tento ser fiel a essa identidade, seja lá o que ela for."
As mesmas contradições que podem levar uma pessoa a se afastar da religião mantêm outras dentro da igreja. Neil LaBute, um dos dramaturgos americanos mais originais em atividade, acabou abandonando a Igreja Mórmon.
Elna não pensa nisso. Na universidade, muita gente achava que ela não agüentaria por muito tempo em Nova York sendo mórmon e fazendo o que fazia em teatro.
Achavam que acabaria cedendo, optando por uma coisa ou outra. "E, depois de três anos, vendo que eu continuava firme, sendo eu mesma, as pessoas passaram a gostar disso. Nas festas, passaram a me apresentar como uma espécie de troféu: a amiga mórmon. Ficavam realmente orgulhosas por eu ser mórmon", afirma.


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