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Nova York: Uma comediante mórmon
"A fé não faz
sentido, mas
esse é o princípio
da fé; nenhuma
religião, no
fundo, faz
sentido"
DO ENVIADO ESPECIAL AOS EUA
Como todo aspirante a
ator que se muda para Nova York decidido a estudar teatro,
Elna Baker, nascida
em Seattle, fez um pouco de tudo (e chegou a recepcionista do
restaurante Nobu, um dos japoneses mais celebrados da cidade) antes de poder sobreviver do trabalho de escritora e
comediante.
Seu primeiro emprego de
atriz, depois de se formar pela
Escola de Artes Dramáticas da
Universidade de Nova York, foi
no papel de enfermeira das incubadoras de bonecas "recém-nascidas" (produzidas, segundo consta, com material desenvolvido pela Nasa, para parecerem reais) da tradicional loja
de brinquedos F.A.O. Schwarz,
na Quinta Avenida.
Cabia a Elna empregar seu
talento para manter a ilusão de
meninas de sete anos que, ao
entrar na loja acompanhadas
pelas mães, passavam a agir como mulheres adultas (mas não
completamente) no processo
de adoção de crianças.
"Babies Buying Babies" ("Bebês Comprando Bebês"), o monólogo em que Elna Baker narra sua experiência de vendedora-demonstradora no berçário
da loja F.A.O. Schwarz (e que
pode ser acessado pela internet, no programa "This American Life", da Rádio Pública Nacional, ou no site da própria autora) expõe os preconceitos, a
psicologia e as expectativas da
vida americana com um sarcasmo improvável na boca de uma
mórmon praticante.
Elna Baker é o que o leitor
leigo definiria como um paradoxo vivo: uma comediante
mórmon. Uma definição da
qual ela própria tenta se livrar,
em vão.
Os mórmons não bebem em
hipótese nenhuma; a rigor, devem se casar virgens, cedo e entre mórmons; costumam ter
muitos filhos (pelo menos, para os padrões americanos) e seguir códigos de conduta bastante estritos, ditados e mantidos por um profeta vivo, escolhido dentre um grupo seleto
de apóstolos.
Os mórmons também têm o
costume peculiar de batizar (e
portanto converter) os mortos
-mesmo aqueles que em vida
não comungavam na sua fé.
"Tecnicamente, se o profeta
diz que você deve fazer uma
coisa, mesmo se for uma coisa
realmente ridícula, você terá
que seguir o que ele disse. Por
outro lado, uma das idéias fundamentais do mormonismo é a
revelação pessoal. Toda vez
que alguém lhe diz alguma coisa, é sua responsabilidade perguntar a Deus sobre a verdade
daquilo. E é esse pensamento
que o ajudará a entender a resposta. Se, durante a oração, você não concordar com o que lhe
foi dito, é porque aquilo não é
verdadeiro. É claro que sempre
fica a dúvida: será que estou dizendo para mim mesma o que
eu quero ouvir? Mas há esse
ideal da reflexão pessoal", diz.
Humor reflexivo
Muito do humor de suas
apresentações (que podem
lembrar Woody Allen e David
Sedaris) vem das agruras dessa
comediante, mórmon e solteira
(e portanto, em princípio, virgem), em busca do homem
ideal, em Nova York -cidade
que, em mais de um aspecto, é a
antítese do mormonismo.
Apesar de ter crescido 50%
nos últimos dez anos, a população local de mórmons não passa de 5.000.
O título de seu primeiro livro,
a ser publicado em 2009 pela
Penguin, que o disputou com
duas outras editoras, diz muito:
"The New York Regional Mormon Singles Halloween Dance"
("O Baile de Halloween dos Solteiros da Regional Mórmon de
Nova York").
"É uma história de formação
sobre ser mórmon em Nova
York. E é uma comédia", esclarece a autora, que, contrariando os ideais da igreja, continua
solteira aos 26 anos, já namorou um ateu e hoje está saindo
com um muçulmano iraniano.
Num vídeo disponível no
YouTube -que faz referência
ao baile de Halloween do título
e à fantasia de biscoito chinês
que ela confeccionou especialmente para a ocasião-, Elna
diz a uma platéia às gargalhadas que, em Nova York, não é
possível manter um namorado
por mais de quatro semanas
sem transar.
Há cerca de 12 milhões de
mórmons no mundo. Nos EUA,
representam apenas 1,7% da
população. No Brasil, chegam a
mais de 1 milhão, segundo dados da Igreja de Jesus Cristo
dos Santos dos Últimos Dias.
Sentido da fé
É difícil imaginar uma pessoa
que escreve com tanta auto-ironia e que nunca tenha parado para questionar a sua fé.
"A fé não faz sentido, mas esse é o princípio da fé; nenhuma
religião, no fundo, faz sentido.
É claro que tenho muitos momentos de dúvida. Você nunca
tem garantia absoluta da fé. Você tem que lutar para mantê-la
no centro da sua vida. E acaba
sendo definido por ela", diz.
"Essa é uma das razões pelas
quais também me debato com a
fé. Não quero ser definida por
ela, quero ser apenas quem sou,
mas reconhecendo ao mesmo
tempo que, em muitos aspectos, essa fé me deu forma. E que
ela também me define."
É claro que essa contradição
só pode se resolver se a religião
for vivida mais como questão
de foro íntimo, entre o indivíduo e Deus, do que como submissão a uma cultura e a um espaço público.
"Fui criada segundo os preceitos da religião, estudando o
"Livro de Mórmon" e a Bíblia.
No meu trabalho, essa crença é
central para minha identidade.
É algo de que me beneficio, algo
que me ajuda, que me desafia a
fazer as escolhas com as quais
no final das contas me sinto
bem. Quando trabalho, sempre
tento ser fiel a essa identidade,
seja lá o que ela for."
As mesmas contradições que
podem levar uma pessoa a se
afastar da religião mantêm outras dentro da igreja. Neil LaBute, um dos dramaturgos
americanos mais originais em
atividade, acabou abandonando a Igreja Mórmon.
Elna não pensa nisso. Na universidade, muita gente achava
que ela não agüentaria por
muito tempo em Nova York
sendo mórmon e fazendo o que
fazia em teatro.
Achavam que acabaria cedendo, optando por uma coisa
ou outra. "E, depois de três
anos, vendo que eu continuava
firme, sendo eu mesma, as pessoas passaram a gostar disso.
Nas festas, passaram a me apresentar como uma espécie de
troféu: a amiga mórmon. Ficavam realmente orgulhosas por
eu ser mórmon", afirma.
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