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Ponto de fuga
Rituais profanos
Assistir a uma ópera na sala construída por Richard Wagner é uma extraordi-nária experiência emotiva, sensória, espiritual; é preciso a paciência de muitos anos para obter um ingresso
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Muita gente escreveu
que Richard Wagner
[1813-1883] criou
uma religião artística. O mais
justo, talvez, seria dizer que ele
consolidou um novo universo
sagrado.
Construiu um teatro na pequena cidade de Bayreuth [na
Baviera, sul da Alemanha] e o
destinou exclusivamente às
suas óperas, verdadeiro santuário. Sua sala de 2.000 lugares possui uma acústica sem
equivalentes graças à concepção espacial inteiramente nova
que o próprio compositor inventou. Wagner determinou
também que o público ficasse
no escuro, para que todos se
concentrassem unicamente no
espetáculo, coisa que parece
banal hoje, mas que não o era
naqueles tempos.
Ao apagar-se das luzes, tudo
fica invisível, mesmo a orquestra. Não se percebe quando o
maestro entra; ele permanece
oculto por uma singular concha acústica. O público perde
todo ponto de referência visual
e espera, imóvel, o início do espetáculo, que não se sabe quando vai vir.
O silêncio inicial já é, assim,
parte da música de Wagner,
transformado em matéria musical. Com ela, o compositor
molda seus mitos. Assistir a
uma ópera nessa sala é uma extraordinária experiência emotiva, sensória, espiritual, empregando essa palavra no seu
sentido mais amplo.
Wagner levou ao apogeu um
processo que ocorria desde o final do século 18: o deslocamento dos sentimentos sagrados da
religião para a arte.
Romaria
Em 1876 inaugurou-se o
Festspielhaus, o fabuloso teatro. Pedro 1º do Brasil esteve
presente. Wagner apresentava
então as quatro óperas que
compõem o ciclo "O Anel do
Nibelungo".
Daí por diante, com poucas
falhas, em todos os verões a sala
mítica, plantada no alto da assim chamada "colina sagrada",
acolhe os peregrinos que acorrem do mundo inteiro. De hábito, são oferecidas sete óperas. É
preciso a paciência de muitos
anos para obter um ingresso:
longo é o caminho que leva à casa do Senhor.
Sempre-viva
A atual produção de "Tristão
e Isolda" no Festival de Bayreuth foi concebida por Christoph Marthaler, diretor de teatro suíço. Imaginou três amplos salões, um para cada ato,
que evocam os locais de festas
dos antigos transatlânticos.
Tudo parece envelhecido,
gasto, empoeirado. As roupas
são contemporâneas, mas fora
de moda, deselegantes.
Há uma alta qualidade na direção de atores, intensificando
as sugestões oferecidas pela
música. O segundo ato de "Tristão e Isolda" opera a quintessência da fusão amorosa para
além das regras. O final traz a
agonia desesperada de Tristão
moribundo, que aguarda Isolda
para vê-la uma última vez. Isolda chega tarde demais.
Deveria precipitar-se sobre
Tristão, apaixonadamente.
Mas Marthaler obrigou-a a
mostrar-se indiferente ao cadáver do amado. Quando, por
sua vez, ela se transfigura e
morre, compreende-se que a
união carnal foi apenas uma
etapa em direção ao amálgama
espiritual mais alto e perene.
Tangará
Tristão, no atual espetáculo
de Bayreuth, é interpretado por
Robert Dean Smith, tenor americano: timbre radiante, rico de
nuanças. Gravou um recital em
CD (Arte Nova Classics), testemunho de sua grande arte.
A sueca Iréne Theorin, apesar de certas estridências e durezas, tem um vozeirão que impressiona no papel de Isolda.
Michelle Breedt, da África do
Sul, encarnou Brangäne: transformou-se para tanto numa velha governanta irritadiça, cúmplice e terna.
Peter Schneider, maestro
discreto, arrebatou a orquestra,
fazendo da partitura de Wagner uma junção miraculosa de
delicadeza e de intensidade.
jorgecoli@uol.com.br
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