São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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Ponto de fuga

Rituais profanos


Assistir a uma ópera na sala construída por Richard Wagner é uma extraordi-nária experiência emotiva, sensória, espiritual; é preciso a paciência de muitos anos para obter um ingresso

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Muita gente escreveu que Richard Wagner [1813-1883] criou uma religião artística. O mais justo, talvez, seria dizer que ele consolidou um novo universo sagrado. Construiu um teatro na pequena cidade de Bayreuth [na Baviera, sul da Alemanha] e o destinou exclusivamente às suas óperas, verdadeiro santuário. Sua sala de 2.000 lugares possui uma acústica sem equivalentes graças à concepção espacial inteiramente nova que o próprio compositor inventou. Wagner determinou também que o público ficasse no escuro, para que todos se concentrassem unicamente no espetáculo, coisa que parece banal hoje, mas que não o era naqueles tempos. Ao apagar-se das luzes, tudo fica invisível, mesmo a orquestra. Não se percebe quando o maestro entra; ele permanece oculto por uma singular concha acústica. O público perde todo ponto de referência visual e espera, imóvel, o início do espetáculo, que não se sabe quando vai vir. O silêncio inicial já é, assim, parte da música de Wagner, transformado em matéria musical. Com ela, o compositor molda seus mitos. Assistir a uma ópera nessa sala é uma extraordinária experiência emotiva, sensória, espiritual, empregando essa palavra no seu sentido mais amplo. Wagner levou ao apogeu um processo que ocorria desde o final do século 18: o deslocamento dos sentimentos sagrados da religião para a arte.

Romaria
Em 1876 inaugurou-se o Festspielhaus, o fabuloso teatro. Pedro 1º do Brasil esteve presente. Wagner apresentava então as quatro óperas que compõem o ciclo "O Anel do Nibelungo". Daí por diante, com poucas falhas, em todos os verões a sala mítica, plantada no alto da assim chamada "colina sagrada", acolhe os peregrinos que acorrem do mundo inteiro. De hábito, são oferecidas sete óperas. É preciso a paciência de muitos anos para obter um ingresso: longo é o caminho que leva à casa do Senhor.

Sempre-viva
A atual produção de "Tristão e Isolda" no Festival de Bayreuth foi concebida por Christoph Marthaler, diretor de teatro suíço. Imaginou três amplos salões, um para cada ato, que evocam os locais de festas dos antigos transatlânticos. Tudo parece envelhecido, gasto, empoeirado. As roupas são contemporâneas, mas fora de moda, deselegantes. Há uma alta qualidade na direção de atores, intensificando as sugestões oferecidas pela música. O segundo ato de "Tristão e Isolda" opera a quintessência da fusão amorosa para além das regras. O final traz a agonia desesperada de Tristão moribundo, que aguarda Isolda para vê-la uma última vez. Isolda chega tarde demais. Deveria precipitar-se sobre Tristão, apaixonadamente. Mas Marthaler obrigou-a a mostrar-se indiferente ao cadáver do amado. Quando, por sua vez, ela se transfigura e morre, compreende-se que a união carnal foi apenas uma etapa em direção ao amálgama espiritual mais alto e perene.

Tangará
Tristão, no atual espetáculo de Bayreuth, é interpretado por Robert Dean Smith, tenor americano: timbre radiante, rico de nuanças. Gravou um recital em CD (Arte Nova Classics), testemunho de sua grande arte. A sueca Iréne Theorin, apesar de certas estridências e durezas, tem um vozeirão que impressiona no papel de Isolda. Michelle Breedt, da África do Sul, encarnou Brangäne: transformou-se para tanto numa velha governanta irritadiça, cúmplice e terna. Peter Schneider, maestro discreto, arrebatou a orquestra, fazendo da partitura de Wagner uma junção miraculosa de delicadeza e de intensidade.

jorgecoli@uol.com.br



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