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+ arte
Museu na Alemanha expõe obras clássicascom os órgãos genitaiscobertos, reproduzindo o tratamento dado às peças na Europa a partir do século 17
A covarde folha de parreira
Paula Diehl
especial para a Folha , de Munique
Você já viu esculturas gregas envergonhadas?
Quem está acostumado com a arte clássica em
forma de homens e mulheres despidos que parecem nem se importar com a sua nudez, provavelmente se interessará pela exposição "Das Feige(n)blatt" (Folha de Figueira) no museu Glyptothek,
em Munique. A mostra parte de uma idéia extremamente original: apresenta ao público estátuas antigas de
seu acervo permanente cobertas com apliques metálicos em forma de folha, colocados cuidadosamente sobre os órgãos genitais em mármore e granito.
São Vênus, Adônis, deuses e guerreiros de todos os tipos e em todas as poses, que perturbam o olhar do visitante com suas brilhantes folhas verdes. Não se trata, no
entanto, de uma simples brincadeira dos organizadores
da mostra, mas sim de uma reconstrução histórica da
exposição alemã de 1860 que perdurou até o início do
século 20. Humor e estranhamento se combinam e chamam a atenção do público para o problema da nudez
na cultura ocidental.
Figueira
Desde que Adão e Eva foram expulsos do
Paraíso, a folha de figueira se tornou a expressão mais
utilizada para designar quaisquer formas de cobrir os
órgãos sexuais femininos e masculinos na arte e na literatura. Como normalmente as folhas de figueira são
muito pequenas, Adão necessitou de várias delas... (vide o Gênese). Ao longo do tempo, artistas de toda a Europa lançaram mão de sua liberdade criativa e representaram a folha de figueira das mais variadas formas.
A tal ponto que, em alguns casos, botânicos e biólogos
titulados se descabelarem diante de obras como as de
Lucas Cranach ou Albrecht Dürer, tentando adivinhar a
espécie da folhinha. Embora a folha pudica preferida de
pintores e escultores tenha sido a de parreira, a maioria
dos especialistas da arte ainda utiliza o termo bíblico
"folha de figueira". Apenas nos países de língua portuguesa e francesa é que se assumiu uma posição mais
pragmática e se passou a designar a folha de parreira como tal. Ela tem a vantagem de ser maior e poder cobrir
de uma só vez as partes pudendas do corpo humano.
Na verdade, o museu Glyptothek aborda uma questão
mais profunda do que a utilização das folhas de parreira
nas artes plásticas. O que está por trás da divertida exposição é um conflito estrutural na cultura ocidental: o
choque entre a arte helênica e a concepção de mundo
cristã. A consequência desse choque se traduz na dificuldade de aceitação do corpo e sexualidade humanos
desde o Renascimento.
Já o título da mostra faz um jogo de palavras interessante: "Feige(n)blatt" quer dizer "folha de figueira" em
alemão, mas, quando suprimido o "n", passa a significar "folha covarde". Uma alusão à incapacidade da cultura européia em lidar com a nudez. Tanto o título como a presença da folha de parreira inquietam o visitante e valorizam algo que, apesar de ser importante, faria
parte de um plano secundário: a conotação erótica das
esculturas. A nudez das estátuas ganha assim uma conotação sexual intensa, que acaba por sublinhar as partes genitais em vez de escondê-las.
A função indumentária da folha de parreira foi inaugurada no século 17, quando uma onda moralista tomou conta do continente europeu. Essa tendência de
"vestir" a nudez artística teve início em Roma e foi uma
decorrência do Concílio de Trento, em 1563, que marcou uma nova fase moralista na história da Igreja Católica. A mania da folhinha logo se fez presente em toda a
Europa e passou a esconder nus de todos os tipos e épocas. Em 1670 o príncipe romano Giovanni Battista Pamphili, vítima de um ataque de pudor, inaugurou uma
nova fase no mundo das artes e mandou cobrir as "vergonhas" de suas esculturas gregas.
Caídos por acaso
Para tanto, o jovem príncipe não
poupou esforços e lançou mão até mesmo de artifícios
como apliques fixos de mármore em forma de folhas ou
de véus caídos "por acaso" sobre os órgãos sexuais das
estátuas. Só os arqueólogos de hoje é que não acham
graça nessa tentativa desesperada de recato, pois as superfícies de mármore sofreram danos irreparáveis em
razão dos novos ornamentos.
Mas o combate à nudez não parou aí. Em meados do
século 18 o papa Clemente 13 ordenou a aplicação de folhas de parreira e véus em todo o acervo de nus do Vaticano. Essa prática também obteve seus adeptos entre
pintores e escultores e fez nascer uma nova profissão: a
de cobridor de órgãos genitais.
Quadros e esculturas, com ou sem cenários bíblicos,
passaram a ser "complementados" em nome da decência e da moral cristãs. Até Michelangelo não escapou da
censura papal. A sua obra mais conhecida, o "Juízo Final", que ilustra o teto da Capela Sistina, no Vaticano,
foi vítima de folhas, lenços e véus aplicados posteriormente por um de seus discípulos.
No sul da Alemanha, essa tendência ganhou importância com a exposição de 1860, quando o rei Ludovigo
da Baviera, também inclinado às normas moralistas,
ordenou a confecção de folhas de parreira em bronze
para serem utilizadas na Glyptothek. O sistema de fixação era bem simples: dependendo da pose, a folha era fixada por meio de fios de metal ou simplesmente sobreposta aos órgãos. Esse método era antigo e já havia sido
usado em vários museus da Europa. Segundo os organizadores da mostra "Das Feige(n)blatt", o público da
época gostava mesmo das folhinhas e, seja por curiosidade, seja por fetiche, acabava levando para casa essa
delicada vestimenta. Os furtos eram tantos que, a partir
de um determinado momento, o caro material utilizado
para a sua confecção teve que ser substituído por papel.
Ao contrário do que se pode imaginar, a folha de parreira teve vida longa em museus e galerias europeus e
americanos e durou até o início do século 20. Sua existência revela um problema presente até hoje na abordagem social do corpo: a falsa moral. Como no caso dos
biquínis brasileiros, o que importa não é o quanto se
pode ver, mas sim que haja uma vestimenta simbólica
para as partes do corpo que possam ser conotadas eroticamente.
Anedotas contam que até 1930 o museu de arte londrino ainda mantinha uma folha de bronze de prontidão para o caso de um membro feminino da família real
querer contemplar a nudez das estátuas gregas, o que
acabava por frustrar rainhas e princesas britânicas. Nos
EUA a folha de parreira perdurou por muito mais tempo e só foi abolida após a Segunda Guerra Mundial,
quando a então diretora do museu de arte de Nova
York decidiu removê-las de suas estátuas gregas. Para
indignação da ousada americana, as estátuas antigas
não apresentavam órgãos genitais.
Obras castradas
No processo de "vestimenta botânica", o museu romano, de onde eram provenientes as
obras de arte, acabou por "castrar" os representantes
masculinos das artes helênicas para melhor fixar nelas
folhas de parreira permanentes, feitas de gesso ou desenhadas em mármore. Apesar de todo o puritanismo
americano, a decidida amante das artes não se deixou
desviar de seu objetivo e encomendou ao museu italiano os moldes para a reconstrução dos pênis perdidos. A
situação se tornou crítica quando, chamada pela polícia
de fronteira, ela teve que explicar seus objetivos culturais diante de uma caixa repleta de órgãos reprodutores
masculinos feitos em gesso.
"Das Feige(n)blatt" faz parte de um programa festivo
do governo bávaro para comemorar a virada do ano
2000 e estará aberta ao público diariamente até o dia 29
de outubro.
Paula Diehl é antropóloga e jornalista.
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