São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2000

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Estudo destrincha o pensamento e a ação do padre espanhol que defendeu os direitos de índios e negros no século 16
As conversões de Las Casas

Adélia Bezerra de Meneses
especial para a Folha

Em 1517, o padre Bartolomeu de las Casas (1474-1566) teve muita pena dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas e propôs ao imperador Carlos 5º a importação de negros, que se extenuaram nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas." É este o parágrafo inaugural da "História Universal da Infâmia", de Jorge Luis Borges, veiculando uma idéia corrente na caracterização dessa personagem fascinante da história da conquista, amigo de Colombo, cujo diário ele publica no meio de suas próprias obras, e ex-amigo de Cortez, que ele acabará por chamar de "tirano". Figura intensa e controvertida, considerado por uns como o patrono dos direitos humanos da América e por outros como o responsável pela "legenda negra" que ensombrece a glória da Espanha, denunciada como devastadora de povos e culturas, Las Casas torna-se agora objeto de um estudo ao mesmo tempo biográfico, histórico e doutrinal, abrangendo sua vida (movimentadíssima) e sua obra (monumental). Trata-se de "Las Casas - Todos os Direitos para Todos", do professor e frei Carlos Josaphat, que tem o trunfo de abordar a obra completa do grande sevilhano, integrada por textos que só muito recentemente -alguns, apenas por ocasião das publicações do quinto centenário do descobrimento da América- foram reunidos em livro. Efetivamente, é só percorrendo a totalidade de sua obra (14 alentados volumes) que se pode dimensionar plenamente a figura de Las Casas. O autor o flagra no seu elã libertário, mas também nos seus fracassos, recuos e erros. Assim vemos um Las Casas desembarcar no Novo Mundo com a intenção de ser um "bom colonizador", respeitando as regras (sujas) do jogo da colonização; mas, após o que ele próprio chama de sua "conversão", literalmente muda de rumo, tanto na vida prática quanto no nível ideológico e doutrinal. E chegará ao ponto de recusar a absolvição aos donos de escravos que não os libertassem, confirmando tal ato em cartório, numa inesperada associação do confessionário com o notário... Mas frei Carlos falará de uma segunda "conversão", esta relativa à escravidão africana. Com efeito, tendo inicialmente cedido à mentalidade da época e aconselhado a importação do negro, ele faz posteriormente uma retratação, registrada na sua "História das Índias", que, no entanto, só foi impressa mais de três séculos após sua morte.

Personalidade em devir
E, de fato, segundo o autor, o dominicano "foi a única voz que se tenha levantado no século 16 para estigmatizar de maneira firme e decidida a escravidão dos negros". Em todo caso, menos do que uma legenda de libertador, emerge do livro uma personalidade em devir, sofrendo uma rica evolução.
O autor amalgama narrativa biográfica e análise de idéias, eventos históricos e marcha do pensamento, uma biografia pessoal imbricando-se com a grande história. Las Casas é aqui mostrado não apenas como homem de ação e militante, seja empreendendo projetos de cuja realização participará pessoalmente, na América Espanhola, seja agindo lá onde as decisões tomadas, junto a reis e papas contemporâneos, no seio da teocracia então vigente, forçando a promulgação de decretos, leis e bulas que defendam os índios: em síntese, atuando no sistema; mas Las Casas é também analisado como intelectual e pensador, um dos fundadores (com Francisco de Vitória) do direito internacional, um mestre de ética política e econômica e também um teólogo que, diante desse "outro" radical que é o índio, presença recentíssima na experiência de mundo de um perplexo homem europeu, colocará sua poderosa inteligência para argumentar pela igualdade radical de todos os homens. O que, sendo uma idéia de extração evangélica, nem por isso era necessariamente partilhada pelo papado e lídimos representantes da hierarquia eclesial.
Mas, para esse tecido dinâmico de vida, ação, idéias e doutrina de Bartolomeu de Las Casas, frei Carlos Josaphat descobre uma chave ou uma clave, "juntar el hecho con el Derecho": uma atenção alerta aos fatos, à realidade ("el hecho") e aferir isso ao direito ("el Derecho"), ou ao seu avesso.
Finalmente, no contexto das comemorações e/ou revisões dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, é o caso de ressaltar o a-propósito de uma publicação como essa, colocando em pauta as questões de colonização (que hoje se atualiza em termos de globalização).



Las Casas - Todos os Direitos para Todos
384 págs., preço não definido de Carlos Josaphat . Ed. Loyola (rua 1.822, 347, SP, CEP 04216-000, tel. 0/xx/11/ 6914-1922).



Adélia Bezerra de Meneses é professora de teoria literária da USP e da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), autora de, entre outros, "Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque" (Ateliê Editorial/Boitempo) e "Do Poder da Palavra" (Duas Cidades).


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