São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de Fuga

A justa dos cavaleiros

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Duas sagas de cavalaria: uma antiga de séculos, outra moderna. O rei Artur, sua Távola Redonda, seus cavaleiros, Percival, Lancelote, a Fada Morgana. Lampião, seus companheiros, Corisco, Volta-Seca, Mergulhão, a Maria Bonita.
Os guerreiros têm, uns, armadura de ferro, outros, de couro. Suas façanhas viraram mito, lenda, na poesia coletiva, nas rimas populares que as carreiam ao longo dos tempos. Têm natural afinidade; era natural que se encontrassem.
Fernando Vilela promoveu essa junção num livro, "Lampião & Lancelote" (ed. Cosacnaify, 52 págs., R$ 49). Escreveu ora em prosa, ora em versos de cordel. As frases são firmes, mas leves e elegantes. Paira um humor delicado. A mescla com as imagens, cheias de brilhos metálicos, texturas de madeiras, ritmos de lanças, impulsos de cavalos, promove o texto a proporções épicas.
Não como arte da escrita apenas, para a qual pouco importa o suporte. Antes como numa ópera, em que é impossível separar o libreto da música. Não há texto autônomo de um lado e ilustração do outro. De grande beleza, a ponto de se tornar difícil classificá-lo como "infantil", "juvenil", "adulto". Está além das categorias, porque se configura, de pleno direito, como obra de arte.


Não há texto autônomo de um lado e ilustração do outro; de grande beleza, a ponto de se tornar difícil classificá-lo como "infantil", "juvenil", "adulto"

Fernando Vilela é gravador, trabalha em madeira, com forte sentido das estruturas, dos materiais, das formas recortadas e incisivas. Incorporou nele os poderes das palavras. O álbum é retangular, longo: o formato revela-se determinante para a composição e narração.
Quando as páginas centrais se desdobram, em 1,40 metro, saltam ritmos rigorosos, violentos, impressionantes, de uma luta ao mesmo tempo ordenada e confusa.

Pura palavra
"O Convite" ("L'Invitation", ed. de Minuit, 96 págs., 8,99 euros, R$ 25), de Claude Simon, salvo equívoco, não foi publicado no Brasil. É livro curto com frases longas, avançando por páginas, sem que chegue logo o ponto final. Em 1986, um ano depois de ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura, Simon foi convidado à União Soviética com 15 outros intelectuais para discutir "o papel da arte e da literatura no mundo contemporâneo".
Descreve com minúcia precisa, bem característica de seu estilo, as longas recepções, os cerimoniais intermináveis, a insinceridade do formalismo, surdo a qualquer diálogo. Simon observa e, como é seu hábito, descreve apenas. Não qualifica nem julga. Mas da descrição exterior brota, como se fosse natural, uma ferocidade devastadora. Se nenhum personagem é nomeado, muitos são identificáveis sem esforço.
O estupendo retrato de Gorbatchov induz a uma reflexão sem piedade sobre a natureza do político. Eis aqui um pequeno fragmento: "Com uma palavra, podia desencadear um apocalipse, fazer com que um país fosse invadido, nomear ou destituir chefes de Estado, que, apagado, atento, prudente, esperando sua hora, havia pacientemente escalado, um a um, os degraus dessa hierarquia ou, antes, dessa perigosa sociedade secreta, fechada sobre si mesma, na qual o menor deslize de percurso, o menor erro de apreciação desencadeava imediatamente a morte senão física [...] ao menos de toda esperança, empregando sua inteligência a ziguezaguear entre relatórios de polícia e sutis equilíbrios de influência, ratificando decisões absurdas ou brutais, dobrando-se a absurdos rituais de primazia, temporizador, cauteloso, refletindo sobre a maneira de ascender ele próprio ao poder...".

jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca Básica
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.