São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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De Paris a Chiapas

Eduardo Verdugo - 6.jan.2006/Associated Press
Pintura retrata o líder zapatista subcomandante Marcos, em Tonala, no Estado mexicano de Chiapas


Discípulo de Jacques Le Goff, Jérôme Baschet defende que a experiência zapatista está redefinindo o tempo histórico e diz que a satanização de Bush é um legado medieval

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em visita ao Brasil para ministrar um curso de pós-graduação no departamento de história da Universidade de São Paulo e para o lançamento de "A Civilização Feudal" (ed. Globo, tradução de Marcelo Rede, 584 págs., R$ 59), o historiador francês Jérôme Baschet é hoje um dos principais especialistas em Idade Média.
Discípulo de Jacques Le Goff (que assina o prefácio do livro), o historiador retoma de seu mestre a idéia de uma "longa Idade Média", que teria se estendido até fins do século 18 (e não terminado em 1453, com a queda de Constantinopla, conforme rezam os manuais).
Daí eventos como a conquista da América, que muitos consideram um dos marcos da Idade Moderna, terem sido antes, segundo Baschet, desdobramento de uma sociedade feudal bem menos estagnada do que supõe o clichê da "Idade das Trevas".
Como diz na entrevista abaixo, seu interesse pelos "prolongamentos americanos da Idade Média" foi aguçado por uma experiência pessoal ímpar: a de lecionar, alternadamente, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (em Paris) e na Universidade de San Cristóbal, em Chiapas (México).
Chiapas foi palco, em 1994, do movimento revolucionário do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN); o levante zapatista, levado a cabo por milhares de índios maias em luta por direitos sociais e um "governo livre e democrático", eclodiu no mesmo dia em que entrou em vigor o Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta) entre o México, os EUA e o Canadá.
Atraiu a simpatia da esquerda mundial como um símbolo de resistência ao capitalismo globalizado. Teria sido também o sintoma de uma resistência do imaginário "medieval" da América colonial?
 

FOLHA - Em seu livro, o sr. defende que o fim da Idade Média, ao contrário do que dizem os manuais, ocorre somente no século 18. Eventos como a Reforma e o Renascimento não configuram, pois, pontos de ruptura e marcos da modernidade, mas expressões da era medieval?
JÉRÔME BASCHET
- Eu não faço senão seguir meu mestre, Jacques Le Goff, que propôs a idéia de uma longa Idade Média, prolongada até o século 18. Acrescento apenas a essa extensão cronológica uma extensão geográfica, até o mundo colonial americano.
A Reforma não foi um evento menor, pois subtrai uma parte da Europa à dominação da Igreja Católica Romana (o que é largamente compensado pela anexação de um novo continente à catolicidade).
O Renascimento traz também o novo, mas exatamente como os outros renascimentos que pontuaram a Idade Média. De resto, é um fenômeno propriamente medieval querer imitar uma Idade de Ouro situada no passado. Falar numa longa Idade Média não implica negar as inovações trazidas pelos séculos 16 e 17.
Mas elas foram superestimadas por uma historiografia que postulava a imobilidade do milênio medieval. Ora, se se admite que a Idade Média é uma época de transformações rápidas e profundas, de criatividade, de impulso e expansão, percebe-se que as mutações do período dito moderno não rompem com a Idade Média, mas lhe prolongam a dinâmica.
No fundo, é um mesmo sistema social, estruturado pela igreja, que perdurou bem ou mal do século 4º ao 18. Dizer que perdurou não significa ignorar as transformações, bem ao contrário. Contrariamente ao que dizem muitos autores, o impulso do comércio, mesmo transcontinental, a partir do século 16, não significa o advento do capitalismo. A reorganização do conjunto do sistema social segundo uma lógica capitalista não se dará senão em torno dos séculos 18 e 19.

FOLHA - Qual foi a influência de sua experiência como professor em Chiapas sobre seus estudos acerca do Ocidente medieval?
BASCHET
- Sou professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e, em 1997, desejei lecionar num contexto o mais diferente possível -na Universidade de San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas.
É um rumo sem dúvida incomum, mas estava atraído pelo México, pela riqueza de sua história e por seu presente efervescente. Prevista para um ano, a temporada se prolongou por cinco, e desde 2002 minha vida se alterna entre Paris e San Cristóbal.
Isso pode parecer estranho, mas essa experiência teve efeitos consideráveis em meu trabalho como historiador de um período todavia tão distante de nosso presente como a Idade Média. Eu creio na virtude do desvio, muitas vezes mais enriquecedor do que a linha reta.
Não é nada mau romper as evidências de nossos hábitos, de nosso mundo familiar, sobretudo para quem pretenda dar conta de um universo como a Idade Média, que, a despeito das aparências enganadoras, é fundada sobre valores e modos de funcionamento radicalmente diferentes dos nossos.
Sobretudo, o ensino em Chiapas me obrigou a um recuo. Era preciso fazer meus estudantes mexicanos compreenderem a história do Ocidente medieval em sua globalidade e, sobretudo, dar sentido a essa história. Isso não era muito difícil, desde que se admitisse que a Idade Média é um período profundamente dinâmico e que essa dinâmica está na origem da colonização do continente americano pelos europeus.
Claro, toda a dificuldade está em compreender as fontes desse élan criador e dessa capacidade expansiva, que obrigam a pesquisar no período medieval as causas do destino singular da Europa e de sua dominação pouco a pouco estendida ao conjunto do planeta. Eu não teria me colocado tais questões se tivesse ficado em Paris, e este livro não teria existido.
Foi esse longo desvio pelos prolongamentos americanos da Idade Média que me permitiu conceber uma visão sintética do período. Ora, o que mais precisamos, no contexto atual de fragmentação dos conhecimentos históricos, é de um retorno a uma apreensão global dos processos históricos, a uma visão de conjunto e das sínteses, com todos os riscos de uma posição como essa.

FOLHA - Um movimento como o zapatismo seria sinal de persistência de uma lógica "medieval" na América Latina?
BASCHET
- Desde a Escola dos Annales, e em particular com Marc Bloch, sabemos que o historiador não é exatamente alguém que estuda o passado. Ele estuda o passado a partir do presente, e essa relação entre presente e passado é fundamental, ativa. Nesse sentido, o movimento zapatista é particularmente interessante para um historiador.
Primeiramente, ele se refere sem cessar à história, a do México, a do continente americano, a da humanidade. A experiência zapatista convida também, creio, à investigação de novas concepções do tempo histórico que estão emergindo.
Você fala de persistências "medievais", mas a mídia freqüentemente qualificou o zapatismo de rebelião "pós-moderna".
Provavelmente, não é nem uma coisa nem outra. Digamos que em Chiapas se pode atestar, mais do que noutros lugares, uma discordância de tempos históricos, em que se entrechocam tradições indígenas, ritmos da modernidade e o ciberespaço planetário. Quanto aos zapatistas, eles identificam o tempo da pós-modernidade como um presente perpétuo, congelado no culto do hoje e que nega, ao mesmo tempo, o passado e o futuro.
Diante disso, eles convidam à defesa da consciência histórica, mas de uma maneira diferente da modernidade clássica.
Ao invés de conceberem a evolução histórica como uma linha única e reta, eles apostam em improváveis conjunções de temporalidades; por exemplo, por meio de pontes que fariam o passado e o futuro se reencontrar ou se unir como na espiral de um escargot.
Não para voltar ao passado, mas para se apoiar nele para projetar um futuro diferente do presente.

FOLHA - Ainda pensando em possíveis persistências "medievais" no imaginário americano, figuras como Hugo Chávez e Lula manipulam um imaginário popular messiânico e avesso aos padrões da racionalidade laica e capitalista?
BASCHET
- Eu teria escrúpulos em falar de realidades que conheço mal. No México também, durante a recente campanha, o termo "messiânico" foi freqüentemente utilizado para designar um dos candidatos, com uma intenção claramente depreciativa.
Mas tenho dúvida sobre se poderíamos interpretar isso como um traço "medieval". É algo muito diferente do milenarismo medieval. Além do mais, o candidato em questão não me parece escapar nem aos padrões da laicidade nem aos da racionalidade capitalista.

FOLHA - A Idade Média parece "atual", o sr. diz, por meio da "satanização" do outro para legitimar-se, como na retórica de George W. Bush e dos extremistas islâmicos.

BASCHET
- No livro, faço alusão às qualificações recíprocas dos EUA e da União Soviética e, atualmente, a Bush, contra o "eixo do mal", ou aos extremistas islâmicos, contra o satã americano. Faço uma aproximação com a atitude da igreja em relação à feitiçaria (a "caça às bruxas" mal pode ser considerada um fenômeno medieval e se desenvolve nos séculos 16 e 17, em plena época da assim chamada modernidade).
Pode-se dizer que os clérigos "inventaram" a idéia de que uma seita de bruxos adoradores de satã ameaçava destruir a cristandade -o que, é claro, justificava a repressão e legitimava os poderes que lutavam contra esse "perigo". Todo poder precisa de um inimigo e de uma ameaça, pois sua mais certa justificação é a proteção que oferece contra um tal perigo.
A partir do momento em que a igreja suprimiu as heresias, ela precisou inventar a seita de feiticeiros. Mas esse não é um fenômeno especificamente medieval; diria que é uma estratégia corrente de legitimação do poder. Seria ela própria aos poderes hegemônicos em via de desaceleração?
Há uma outra questão em sua pergunta: a Idade Média é "atual"? Creio que as aproximações podem às vezes ser úteis, mas mais freqüentemente são muito pontuais e pouco esclarecedoras. Arriscamo-nos a recair em clichês desvalorizadores sobre a Idade Média, que associe toda forma de obscurantismo e de barbárie a um retorno ao período. É preciso admitir que a Idade Média é inatual? Sim, provavelmente.
Mas há uma atualidade do inatual. A Idade Média é um universo radicalmente oposto ao nosso, mas é justamente nisso que ela nos interessa, porque é o inverso de nosso presente.
Pois é um mundo da tradição de antes da modernidade, um mundo de onipotência da igreja de antes da laicização, um mundo de antes do capitalismo e das relações mercantis.
E, no entanto, esse antimundo está na origem da expansão histórica da Europa, que pesa ainda fortemente sobre a configuração atual do mundo. A Idade Média nos ajuda a refletir sobre o destino histórico da humanidade, evitando-se opor os civilizados de um lado e os bárbaros de outro.

FOLHA - Em que sentido a América colonial foi uma sociedade feudal?
BASCHET
- Os anos 1950 e 1960 foram ricos em debates para determinar se a América havia sido, desde a conquista, feudal ou imediatamente capitalista.
Não é exatamente a esse debate que me refiro. Cumpria, a meu ver, considerar as sociedades coloniais do continente americano como "feudais" não devido à sua situação de dependência e menos ainda a qualquer "atraso". Isso tem a ver simplesmente com o fato de que a própria Europa era ainda feudal durante o período dito moderno. Suas colônias faziam parte do mesmo sistema.
Entre os traços mais característicos do feudalismo, o principal, sem dúvida, era a posição dominante da igreja, evidente para a Idade Média e transferida, no essencial, para o Novo Mundo. Mais que aos conquistadores, é à igreja que cabe atribuir a capacidade de organização e de controle dos impérios transatlânticos. A igreja foi o pilar da ordem colonial.
De resto, pelo menos no caso do México, uma boa parte da história do século 19 permanece marcada pelo peso dessa instituição -que constitui uma das dificuldades para a constituição de um verdadeiro Estado nacional.
Dessa vez, podemos verdadeiramente falar de uma persistência da Idade Média até os anos 1860. Mas, em seguida, como a América Latina em geral, o México cessa de ser "feudal". Ele se insere então num sistema mundial capitalista.

FOLHA - O sr. diz que o feudalismo chega ao fim quando os mortos, que a igreja pusera no centro do espaço social, são levados para fora da cidade e aldeias. Há relação entre esse fenômeno e a crescente estigmatização da morte e do luto nos pólos mais urbanizados do século 20?
BASCHET
- Você tem razão. A história das práticas funerárias é um excelente revelador da história do feudalismo.
Na Antigüidade romana, os cadáveres eram tidos como impuros e deviam ser enterrados fora das cidades. Conforme o sistema feudal foi atingindo seu mais alto grau de coesão, a partir dos séculos 10º e 11, se produziu uma formidável reorganização espacial.
O habitat se reagrupa, então, em aldeias estáveis (desenhando, assim, a paisagem rural ocidental até o século 19). Sobretudo, essas aldeias são centradas não apenas na igreja, mas no cemitério que a rodeia. Assim, os mortos se encontram no meio do habitat, ou melhor, os vivos se reagrupam em torno dos mortos.
Essa polarização espacial é eminentemente característica do sistema feudal. Ela se reproduz no Novo Mundo: é o processo conhecido como "reduções", deslocamentos e reagrupamentos em torno da igreja e do cemitério (o que horrorizava os indígenas).
Na Europa, essa configuração cede a vez a partir do fim do século 18, quando o higienismo inspirado pelas Luzes quer deslocar os cemitérios para fora das cidades e aldeias. O movimento se generaliza, por vezes tardiamente, no século 19, notadamente no México. É também um aspecto da luta contra o poder da igreja. O feudalismo chega ao fim conforme os mortos são reconduzidos para fora dos espaços habitados, no centro dos quais a igreja feudal os colocara.
Hoje, pode acontecer de os cemitérios serem englobados num tecido social proliferante.
Mas os mortos deixaram de ser uma questão central para a organização social, entre a rentabilidade da indústria da morte e o negar da morte associado ao triunfo de um presente perpétuo que gostaria de negar o tempo e congelar os corpos numa eterna juventude.

FOLHA - A profusão e a valorização de imagens sagradas na cultura medieval seriam antecipações de nossa "sociedade do espetáculo"? BASCHET - À diferença dos dois outros grandes monoteísmos, a cristandade medieval se converteu à imagem. Ela se caracteriza pela difusão de imagens cada vez mais diversificadas e por uma extraordinária inventividade icononográfica.
Assim, é tentador fazer da Idade Média a origem de nossa própria civilização dita da imagem, até mesmo da "sociedade do espetáculo".
Mas, aqui também, é preciso resistir à tentação de atualizar o passado, de identificá-lo com o nosso presente. Meu raciocínio vai, uma vez mais, no sentido inverso. Ele permite a aparição, a despeito de semelhanças aparentes, de oposições radicais. Explico no livro que as imagens medievais não são exatamente imagens, mas "imagens-objetos".
Não existe na Idade Média imagem que não seja ligada a um objeto (ou a um edifício).
Esse objeto (ou esse lugar) tem, ele mesmo, uma função, o mais das vezes litúrgica, e seu uso é associado a práticas sociais. A imagem não pode, portanto, ser percebida nem compreendida independentemente dessa função e dessas práticas.
Ao contrário, no mundo moderno a imagem se separa do objeto ao se fazer quadro, primeiramente, e ao se exibir nas paredes dos museus; e depois, com o triunfo das telas, onde desfilam em ritmo acelerado todas as imagens possíveis.
Portanto, é preciso opor a imagem-objeto medieval, localizada e dotada de uma presença eficaz, e à imagem-tela contemporânea, que participa de um fenômeno de "deslocalização" e que é potencialmente "desrealizada".
Uma vez mais, pensar que a Idade Média é similar a nosso mundo não ajuda em nada. É, ao contrário, ao mensurar a distância que nos separa dela que podemos aprender algo sobre nós mesmos.


NA INTERNET - Leia trecho de "A Civilização Feudal" no endereço www.folha.com.br/062572




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