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De Paris a Chiapas
Eduardo Verdugo - 6.jan.2006/Associated Press
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Pintura retrata o líder zapatista subcomandante Marcos, em Tonala, no Estado mexicano de Chiapas |
Discípulo de Jacques Le Goff, Jérôme Baschet defende que a experiência zapatista está redefinindo o tempo histórico e diz que a satanização de Bush é um legado medieval
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Em visita ao Brasil para
ministrar um curso de
pós-graduação no departamento de história da Universidade de
São Paulo e para o lançamento
de "A Civilização Feudal" (ed.
Globo, tradução de Marcelo
Rede, 584 págs., R$ 59), o historiador francês Jérôme Baschet
é hoje um dos principais especialistas em Idade Média.
Discípulo de Jacques Le Goff
(que assina o prefácio do livro),
o historiador retoma de seu
mestre a idéia de uma "longa
Idade Média", que teria se estendido até fins do século 18 (e
não terminado em 1453, com a
queda de Constantinopla, conforme rezam os manuais).
Daí eventos como a conquista da América, que muitos consideram um dos marcos da Idade Moderna, terem sido antes,
segundo Baschet, desdobramento de uma sociedade feudal bem menos estagnada do
que supõe o clichê da "Idade
das Trevas".
Como diz na entrevista abaixo, seu interesse pelos "prolongamentos americanos da Idade
Média" foi aguçado por uma
experiência pessoal ímpar: a de
lecionar, alternadamente, na
Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais (em Paris) e na
Universidade de San Cristóbal,
em Chiapas (México).
Chiapas foi palco, em 1994,
do movimento revolucionário
do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN); o levante zapatista, levado a cabo
por milhares de índios maias
em luta por direitos sociais e
um "governo livre e democrático", eclodiu no mesmo dia em
que entrou em vigor o Acordo
de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta) entre o México,
os EUA e o Canadá.
Atraiu a simpatia da esquerda mundial como um símbolo
de resistência ao capitalismo
globalizado. Teria sido também
o sintoma de uma resistência
do imaginário "medieval" da
América colonial?
FOLHA - Em seu livro, o sr. defende
que o fim da Idade Média, ao contrário do que dizem os manuais, ocorre
somente no século 18. Eventos como a Reforma e o Renascimento
não configuram, pois, pontos de
ruptura e marcos da modernidade,
mas expressões da era medieval?
JÉRÔME BASCHET - Eu não faço
senão seguir meu mestre, Jacques Le Goff, que propôs a idéia
de uma longa Idade Média, prolongada até o século 18. Acrescento apenas a essa extensão
cronológica uma extensão geográfica, até o mundo colonial
americano.
A Reforma não foi um evento
menor, pois subtrai uma parte
da Europa à dominação da
Igreja Católica Romana (o que
é largamente compensado pela
anexação de um novo continente à catolicidade).
O Renascimento traz também o novo, mas exatamente
como os outros renascimentos
que pontuaram a Idade Média.
De resto, é um fenômeno propriamente medieval querer
imitar uma Idade de Ouro situada no passado. Falar numa
longa Idade Média não implica
negar as inovações trazidas pelos séculos 16 e 17.
Mas elas foram superestimadas por uma historiografia que
postulava a imobilidade do milênio medieval. Ora, se se admite que a Idade Média é uma
época de transformações rápidas e profundas, de criatividade, de impulso e expansão, percebe-se que as mutações do período dito moderno não rompem com a Idade Média, mas
lhe prolongam a dinâmica.
No fundo, é um mesmo sistema social, estruturado pela
igreja, que perdurou bem ou
mal do século 4º ao 18. Dizer
que perdurou não significa ignorar as transformações, bem
ao contrário. Contrariamente
ao que dizem muitos autores, o
impulso do comércio, mesmo
transcontinental, a partir do
século 16, não significa o advento do capitalismo. A reorganização do conjunto do sistema
social segundo uma lógica capitalista não se dará senão em
torno dos séculos 18 e 19.
FOLHA - Qual foi a influência de
sua experiência como professor em
Chiapas sobre seus estudos acerca
do Ocidente medieval?
BASCHET - Sou professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e, em
1997, desejei lecionar num contexto o mais diferente possível
-na Universidade de San Cristóbal de Las Casas, em Chiapas.
É um rumo sem dúvida incomum, mas estava atraído pelo
México, pela riqueza de sua história e por seu presente efervescente. Prevista para um ano,
a temporada se prolongou por
cinco, e desde 2002 minha vida
se alterna entre Paris e San
Cristóbal.
Isso pode parecer estranho,
mas essa experiência teve efeitos consideráveis em meu trabalho como historiador de um
período todavia tão distante de
nosso presente como a Idade
Média. Eu creio na virtude do
desvio, muitas vezes mais enriquecedor do que a linha reta.
Não é nada mau romper as
evidências de nossos hábitos,
de nosso mundo familiar, sobretudo para quem pretenda
dar conta de um universo como
a Idade Média, que, a despeito
das aparências enganadoras, é
fundada sobre valores e modos
de funcionamento radicalmente diferentes dos nossos.
Sobretudo, o ensino em
Chiapas me obrigou a um recuo. Era preciso fazer meus estudantes mexicanos compreenderem a história do Ocidente medieval em sua globalidade e, sobretudo, dar sentido a
essa história.
Isso não era muito difícil,
desde que se admitisse que a
Idade Média é um período profundamente dinâmico e que essa dinâmica está na origem da
colonização do continente
americano pelos europeus.
Claro, toda a dificuldade está
em compreender as fontes desse élan criador e dessa capacidade expansiva, que obrigam a
pesquisar no período medieval
as causas do destino singular da
Europa e de sua dominação
pouco a pouco estendida ao
conjunto do planeta. Eu não teria me colocado tais questões se
tivesse ficado em Paris, e este
livro não teria existido.
Foi esse longo desvio pelos
prolongamentos americanos
da Idade Média que me permitiu conceber uma visão sintética do período. Ora, o que mais
precisamos, no contexto atual
de fragmentação dos conhecimentos históricos, é de um retorno a uma apreensão global
dos processos históricos, a uma
visão de conjunto e das sínteses, com todos os riscos de uma
posição como essa.
FOLHA - Um movimento como o
zapatismo seria sinal de persistência
de uma lógica "medieval" na América Latina?
BASCHET - Desde a Escola dos
Annales, e em particular com
Marc Bloch, sabemos que o historiador não é exatamente alguém que estuda o passado. Ele
estuda o passado a partir do
presente, e essa relação entre
presente e passado é fundamental, ativa. Nesse sentido, o
movimento zapatista é particularmente interessante para um
historiador.
Primeiramente, ele se refere
sem cessar à história, a do México, a do continente americano, a da humanidade. A experiência zapatista convida também, creio, à investigação de
novas concepções do tempo
histórico que estão emergindo.
Você fala de persistências "medievais", mas a mídia freqüentemente qualificou o zapatismo
de rebelião "pós-moderna".
Provavelmente, não é nem uma
coisa nem outra.
Digamos que em Chiapas se
pode atestar, mais do que noutros lugares, uma discordância
de tempos históricos, em que se
entrechocam tradições indígenas, ritmos da modernidade e o
ciberespaço planetário. Quanto
aos zapatistas, eles identificam
o tempo da pós-modernidade
como um presente perpétuo,
congelado no culto do hoje e
que nega, ao mesmo tempo, o
passado e o futuro.
Diante disso, eles convidam à
defesa da consciência histórica,
mas de uma maneira diferente
da modernidade clássica.
Ao invés de conceberem a
evolução histórica como uma
linha única e reta, eles apostam
em improváveis conjunções de
temporalidades; por exemplo,
por meio de pontes que fariam
o passado e o futuro se reencontrar ou se unir como na espiral de um escargot.
Não para
voltar ao passado, mas para se
apoiar nele para projetar um
futuro diferente do presente.
FOLHA - Ainda pensando em possíveis persistências "medievais" no
imaginário americano, figuras como
Hugo Chávez e Lula manipulam um
imaginário popular messiânico e
avesso aos padrões da racionalidade
laica e capitalista?
BASCHET - Eu teria escrúpulos
em falar de realidades que conheço mal. No México também, durante a recente campanha, o termo "messiânico" foi
freqüentemente utilizado para
designar um dos candidatos,
com uma intenção claramente
depreciativa.
Mas tenho dúvida sobre se
poderíamos interpretar isso
como um traço "medieval". É
algo muito diferente do milenarismo medieval. Além do
mais, o candidato em questão
não me parece escapar nem aos
padrões da laicidade nem aos
da racionalidade capitalista.
FOLHA - A Idade Média parece
"atual", o sr. diz, por meio da "satanização" do outro para legitimar-se,
como na retórica de George W. Bush
e dos extremistas islâmicos.
BASCHET - No livro, faço alusão
às qualificações recíprocas dos
EUA e da União Soviética e,
atualmente, a Bush, contra o
"eixo do mal", ou aos extremistas islâmicos, contra o satã
americano. Faço uma aproximação com a atitude da igreja
em relação à feitiçaria (a "caça
às bruxas" mal pode ser considerada um fenômeno medieval
e se desenvolve nos séculos 16 e
17, em plena época da assim
chamada modernidade).
Pode-se dizer que os clérigos
"inventaram" a idéia de que
uma seita de bruxos adoradores de satã ameaçava destruir a
cristandade -o que, é claro,
justificava a repressão e legitimava os poderes que lutavam
contra esse "perigo". Todo poder precisa de um inimigo e de
uma ameaça, pois sua mais certa justificação é a proteção que
oferece contra um tal perigo.
A partir do momento em que
a igreja suprimiu as heresias,
ela precisou inventar a seita de
feiticeiros. Mas esse não é um
fenômeno especificamente
medieval; diria que é uma estratégia corrente de legitimação do poder. Seria ela própria
aos poderes hegemônicos em
via de desaceleração?
Há uma outra questão em
sua pergunta: a Idade Média é
"atual"? Creio que as aproximações podem às vezes ser
úteis, mas mais freqüentemente são muito pontuais e pouco
esclarecedoras. Arriscamo-nos
a recair em clichês desvalorizadores sobre a Idade Média, que
associe toda forma de obscurantismo e de barbárie a um retorno ao período. É preciso admitir que a Idade Média é inatual? Sim, provavelmente.
Mas há uma atualidade do
inatual. A Idade Média é um
universo radicalmente oposto
ao nosso, mas é justamente nisso que ela nos interessa, porque
é o inverso de nosso presente.
Pois é um mundo da tradição
de antes da modernidade, um
mundo de onipotência da igreja
de antes da laicização, um
mundo de antes do capitalismo
e das relações mercantis.
E, no entanto, esse antimundo está na origem da expansão
histórica da Europa, que pesa
ainda fortemente sobre a configuração atual do mundo.
A Idade Média nos ajuda a refletir sobre o destino histórico
da humanidade, evitando-se
opor os civilizados de um lado e
os bárbaros de outro.
FOLHA - Em que sentido a América
colonial foi uma sociedade feudal?
BASCHET - Os anos 1950 e 1960
foram ricos em debates para
determinar se a América havia
sido, desde a conquista, feudal
ou imediatamente capitalista.
Não é exatamente a esse debate que me refiro. Cumpria, a
meu ver, considerar as sociedades coloniais do continente
americano como "feudais" não
devido à sua situação de dependência e menos ainda a qualquer "atraso". Isso tem a ver
simplesmente com o fato de
que a própria Europa era ainda
feudal durante o período dito
moderno. Suas colônias faziam
parte do mesmo sistema.
Entre os traços mais característicos do feudalismo, o principal, sem dúvida, era a posição
dominante da igreja, evidente
para a Idade Média e transferida, no essencial, para o Novo
Mundo. Mais que aos conquistadores, é à igreja que cabe atribuir a capacidade de organização e de controle dos impérios
transatlânticos. A igreja foi o
pilar da ordem colonial.
De resto, pelo menos no caso
do México, uma boa parte da
história do século 19 permanece marcada pelo peso dessa instituição -que constitui uma
das dificuldades para a constituição de um verdadeiro Estado nacional.
Dessa vez, podemos verdadeiramente falar de uma persistência da Idade Média até os
anos 1860. Mas, em seguida, como a América Latina em geral,
o México cessa de ser "feudal".
Ele se insere então num sistema mundial capitalista.
FOLHA - O sr. diz que o feudalismo
chega ao fim quando os mortos, que
a igreja pusera no centro do espaço
social, são levados para fora da cidade e aldeias. Há relação entre esse
fenômeno e a crescente estigmatização da morte e do luto nos pólos
mais urbanizados do século 20?
BASCHET - Você tem razão. A
história das práticas funerárias
é um excelente revelador da
história do feudalismo.
Na Antigüidade romana, os
cadáveres eram tidos como impuros e deviam ser enterrados
fora das cidades. Conforme o
sistema feudal foi atingindo seu
mais alto grau de coesão, a partir dos séculos 10º e 11, se produziu uma formidável reorganização espacial.
O habitat se reagrupa, então,
em aldeias estáveis (desenhando, assim, a paisagem rural ocidental até o século 19). Sobretudo, essas aldeias são centradas não apenas na igreja, mas
no cemitério que a rodeia. Assim, os mortos se encontram
no meio do habitat, ou melhor,
os vivos se reagrupam em torno
dos mortos.
Essa polarização espacial é
eminentemente característica
do sistema feudal. Ela se reproduz no Novo Mundo: é o processo conhecido como "reduções", deslocamentos e reagrupamentos em torno da igreja e
do cemitério (o que horrorizava os indígenas).
Na Europa, essa configuração cede a vez a partir do fim do
século 18, quando o higienismo
inspirado pelas Luzes quer
deslocar os cemitérios para fora das cidades e aldeias.
O movimento se generaliza,
por vezes tardiamente, no século 19, notadamente no México. É também um aspecto da
luta contra o poder da igreja. O
feudalismo chega ao fim conforme os mortos são reconduzidos para fora dos espaços habitados, no centro dos quais a
igreja feudal os colocara.
Hoje, pode acontecer de os
cemitérios serem englobados
num tecido social proliferante.
Mas os mortos deixaram de ser
uma questão central para a organização social, entre a rentabilidade da indústria da morte
e o negar da morte associado ao
triunfo de um presente perpétuo que gostaria de negar o
tempo e congelar os corpos numa eterna juventude.
FOLHA - A profusão e a valorização
de imagens sagradas na cultura medieval seriam antecipações de nossa
"sociedade do espetáculo"?
BASCHET - À diferença dos dois
outros grandes monoteísmos, a
cristandade medieval se converteu à imagem. Ela se caracteriza pela difusão de imagens
cada vez mais diversificadas e
por uma extraordinária inventividade icononográfica.
Assim, é tentador fazer da
Idade Média a origem de nossa
própria civilização dita da imagem, até mesmo da "sociedade
do espetáculo".
Mas, aqui também, é preciso
resistir à tentação de atualizar
o passado, de identificá-lo com
o nosso presente. Meu raciocínio vai, uma vez mais, no sentido inverso. Ele permite a aparição, a despeito de semelhanças
aparentes, de oposições radicais. Explico no livro que as
imagens medievais não são
exatamente imagens, mas
"imagens-objetos".
Não existe na Idade Média
imagem que não seja ligada a
um objeto (ou a um edifício).
Esse objeto (ou esse lugar)
tem, ele mesmo, uma função, o
mais das vezes litúrgica, e seu
uso é associado a práticas sociais. A imagem não pode, portanto, ser percebida nem compreendida independentemente
dessa função e dessas práticas.
Ao contrário, no mundo moderno a imagem se separa do
objeto ao se fazer quadro, primeiramente, e ao se exibir nas
paredes dos museus; e depois,
com o triunfo das telas, onde
desfilam em ritmo acelerado
todas as imagens possíveis.
Portanto, é preciso opor a
imagem-objeto medieval, localizada e dotada de uma presença eficaz, e à imagem-tela contemporânea, que participa de
um fenômeno de "deslocalização" e que é potencialmente
"desrealizada".
Uma vez mais, pensar que a
Idade Média é similar a nosso
mundo não ajuda em nada. É,
ao contrário, ao mensurar a distância que nos separa dela que
podemos aprender algo sobre
nós mesmos.
NA INTERNET - Leia trecho de "A
Civilização Feudal" no endereço
www.folha.com.br/062572
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