São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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Poesia pós-cabralina



Críticos apontam os poetas que representam balizas para a poesia brasileira futura

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

A morte de João Cabral de Melo Neto, considerado por unanimidade, nos últimos anos, o maior poeta em atividade no Brasil e um dos principais da língua portuguesa de todos os tempos, parece ter encerrado um longo período da poesia brasileira.
A literatura do país, dominada historicamente pela figura de um grande literato -de que Drummond (1902-1987) e Cabral teriam sido as últimas manifestações-, viu-se de súbito lançada na "orfandade" e ao mesmo tempo num campo de indefinição.
Com o propósito de discutir as perspectivas da poesia brasileira contemporânea, a Folha entrevistou 21 críticos e escritores. Também os convidou a indicar os poetas em atividade no país, cujas obras mereçam leitura ou releitura neste momento e representem balizas para a produção poética futura.
Os nomes de Augusto de Campos, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos, Francisco Alvim, Sebastião Uchoa Leite e Décio Pignatari foram os mais lembrados pelas pessoas ouvidas pelo Mais! (conheça os poetas na pág. 5-5).

O fim da "alta modernidade"
O crítico Silviano Santiago considera a morte de João Cabral o fim do que está sendo chamado de "alta modernidade". Ele ressalta que, depois dos experimentalismos concretistas dos anos 50 ("que não sei se têm qualidade, mas têm originalidade") e a poesia social dos anos 60 (sobretudo Ferreira Gullar), vivemos em uma "no man's land" poética. Para ele, aquelas correntes estão "em via de se institucionalizar" e sobre todo o resto é quase impossível fazer uma reflexão. "Há de tudo na poesia atual. Qualquer poeta em atividade que eu viesse a citar como relevante, eu o faria mais motivado pela simpatia pessoal do que pela análise".
O escritor e crítico Marcelo Coelho tem uma opinião próxima. Ele considera que, agora, a poesia brasileira vive "no reino do arbítrio completo". "O crítico está mais do que nunca exposto a um risco de arbitrariedade imenso". Na sua opinião, com a morte de Cabral, perdeu-se a unanimidade. "Reconstruí-la acaba sendo uma questão puramente cronológica", avalia Coelho, que também preferiu não citar nomes.
Há pouco otimismo também nas palavras do professor de literatura brasileira João Adolfo Hansen. "Não há nada a dizer sobre a morte de Cabral, nem tenho o que dizer sobre os poetas brasileiros atuais. Alguns são razoáveis, outros nem isso, a maioria chatíssima, sem sangue nem nervo." Ele pensa que seria "desonesto" comparar Cabral com outros autores em atividade.
Quem também recusa fazer comparações é o crítico Benedito Nunes. Para ele, a obra de Cabral foi a principal "fonte propulsora e remodeladora da poesia brasileira" a partir de 1956, "com a publicação de "Duas Águas'". "Quase todos os bons poetas de hoje, que começaram a publicar ou a se fazer notar a partir de 60/80, trazem-lhe a marca: são seus herdeiros, não seus substitutos", pondera Nunes. Opinião da qual não compartilha o crítico Fábio de Souza Andrade, professor da Universidade de Campinas. "Cabral não deixa seguidores, epígonos, mas uma multidão de leitores órfãos", opina.
"A última ligação com a fase do modernismo "clássico" era o Cabral. Esse período se encerrou com a sua morte", diz o poeta Alexei Bueno, para quem não há mais uma linha de continuidade entre a poesia atual e a tradição modernista. "Estamos numa atomização típica da época pós-moderna: convívio de expressões estilísticas díspares e variadas, sem um estilo de época."

Vozes diferentes
É bem diversa a posição de outros críticos, como Modesto Carone, que ressaltam a vitalidade da poesia hoje no país.
"Quando se pensa que Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral já se foram, a imagem que vem à mente é a de que a poesia acabou no Brasil", observa Carone. Mas ele defende que a sensação de luto não deve encobrir o fato de que, "neste momento, Ferreira Gullar está escrevendo e vozes diferentes, como a de Francisco Alvim, ainda soam" (leia a íntegra de seu depoimento abaixo).
"Agora é a vez do Gullar", também sentencia o poeta Bruno Tolentino. "Além de ele ter uma obra de peso, ele é um intelectual atuante, continua afinadíssimo e não decaiu. As coisas são assim mesmo: rei morto, rei posto. Melhor consagrar logo o Gullar, antes que algum aventureiro lance mão", provoca.
Para o poeta Carlito Azevedo, "o século 20, quanto à poesia brasileira, acabou com a morte de Cabral, como acabou também o poeta como símbolo da nacionalidade". Ele elenca, contudo, o que chama de "um colegiado" de poetas relevantes, composto por Gullar, Francisco Alvim, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Manoel de Barros, entre os quais inclui ainda o poeta Zuca Sardana, que vive na Alemanha.
"A tarefa prioritária hoje", alerta a crítica Walnice Nogueira Galvão, "não é copiar João Cabral, mas encontrar em outros rumos uma perfeição à mesma altura, às vezes com propostas diferentes da dele". Embora considere a poesia atual -não só a brasileira- "palavrosa" e inferior à do autor de "Uma Faca Só Lâmina", Walnice menciona, como autores que merecem atenção: Francisco Alvim, Sebastião Uchoa Leite, Manoel de Barros, Haroldo e Augusto de Campos, Rubens Rodrigues Torres Filho, Gullar, Hilda Hilst, Carlito Azevedo, Antonio Cícero e Adélia Prado. "Não em ordem de preferência", ela ressalta.
Esquecer a poesia de Cabral é a tarefa que compete à poesia brasileira de agora em diante, segundo o crítico Arthur Nestrovski. "A poesia brasileira está fadada a homenagear Cabral da única forma consequente: esquecendo a sua poesia, para que possa ser lembrada mais adiante, por outras vias que não a da imitação", diz. Para Nestrovski, três poetas hoje, "todos eles por volta dos 40 anos", merecem ser conhecidos: Age de Carvalho, do Pará, Júlio Castañon, do Rio de Janeiro, e Nelson Ascher, de São Paulo.
A falta de um "sucessor dinástico" de Cabral e da grande linhagem modernista não caracteriza, para o crítico e compositor José Miguel Wisnik, um problema. "Estamos sem poeta número um", ele diz (leia a íntegra de seu depoimento abaixo), que diz gostar de Augusto de Campos, Ferreira Gullar e Adélia Prado, Armando Freitas Filho, Carlito Azevedo, Sebastião Uchoa Leite, Waly Salomão e Arnaldo Antunes.
O filósofo Bento Prado Jr. procura identificar as principais marcas da poesia de Cabral, as quais, segundo ele, impregnaram toda a literatura brasileira a partir de meados do século e seriam "uma certa idéia de verdade, rigor ou limpeza". Nessa linhagem, faz referência à poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho, em que "a presença de Cabral é evidente".
Para o poeta Nelson Ascher, este é o momento em que a obra de João Cabral "pode ser avaliada in totum". Nesse sentido, um dos seus maiores legados seria a concepção do "poeta como produtor, a poesia ligada aos fatos, às pessoas, às coisas". "A idéia da poesia moderna", diz Ascher, "é atingir o dizível e não ficar bajulando o pseudoinvisível". Entre os que continuariam essa linha, Ascher destaca Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e Gullar, "para ficar na geração mais consagrada", e, "de uma geração imediatamente seguinte", cita Francisco Alvim, Armando Freitas Filho e Sebastião Uchoa Leite.

Século 21
O crítico João Alexandre Barbosa não hesita em apontar três nomes de autores em atividade no país, hoje. "Para mim", diz ele, "três poetas continuam a tradição de uma poética rara e rigorosa, que foi a de João Cabral, na poesia brasileira contemporânea: Augusto e Haroldo de Campos e Sebastião Uchoa Leite".
A obra de Augusto de Campos é também a que mais chama a atenção do crítico Luiz Costa Lima, "numa avaliação imediata", diz ele. No entanto, salienta que o estado da poesia brasileira após a morte de João Cabral "necessita maior reflexão e análise".
Apesar de sublinhar que as produções contemporâneas "talvez ocorram cada vez mais de modo descontínuo, sem a noção de obra como totalidade consequente", o poeta Júlio Castañon Guimarães trata de evocar as declarações de João Cabral. "Não se pode deixar de enfatizar que o próprio Cabral declarou mais de uma vez, clara e inequivocamente (escutem os surdos!), que o nome que importava para ele na poesia brasileira era o de Augusto de Campos."
Outro fundador do movimento concretista é evocado pelo crítico Francisco Achcar: Décio Pignatari. Na sua opinião, o autor de "Poesia Pois É Poesia" é o mais importante poeta brasileiro no momento (leia a íntegra de seu depoimento abaixo) -opinião compartilhada pelo poeta e tradutor José Lino Grünewald.
Para a crítica e tradutora Aurora Fornoni Bernardini, só há outro poeta que tem a "dimensão social" de João Cabral: Afonso Ávila. "O efeito que seus poemas produzem no leitor é muito forte -efeito de revolta. Assim como em Cabral, há em Ávila uma mola que dispara após a leitura, não há passividade", diz.
A vitalidade da poesia brasileira contemporânea é lembrada ainda pela crítica literária Leyla Perrone-Moisés. "Falar de um fim da poesia brasileira é absurdo, porque o que está mais vivo hoje na literatura do país é justamente a poesia, pelo número de poetas, bons e maus, e pela quantidade de livros e revistas que se publica".
Ela cita como nomes significativos da poesia brasileira atual os autores da geração posterior à de Cabral, como Augusto de Campos, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos, Francisco Alvim e Sebastião Uchoa. Aponta ainda os nomes de Max Martins, do Pará, e Laís Corrêa de Araújo, de Minas Gerais. Para Perrone-Moisés, "existe hoje uma quantidade grande de jovens, cujo trabalho é de excelente qualidade, que garante uma continuidade à poesia brasileira no século 21".



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