São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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+ cultura

Exposição "O Terceiro Reich e a Música", inaugurada em Paris, discute de que modo os nazistas combateram o atonalismo, a rítmica excessiva e o jazz

A letal estética da infâmia - Pascal Huynh

Marie-Aude Roux
do "Le Monde"

Um ciclo que está sendo apresentado na "Cité de la Musique" [Cidade da Música], em Paris, mostra a terrível dominação da vida musical na Alemanha nazista. Pascal Huynh, coordenador do evento, avalia que, "na música, mais do que em outras áreas, a desnazificação foi quase inexistente".
"O Terceiro Reich e a Música", que estreou no último dia 8, segue em cartaz até 9/1/2005.
 

O senhor coordena o ciclo organizado pela Cidade da Música sobre "O Terceiro Reich e a Música", depois de ter publicado, em 1998, o estudo "A Música sob a República de Weimar". Quais são os desafios desse trabalho?
Quero salientar que nossa proposta não é polêmica, mas procede de um dever de memória em uma perspectiva histórica. O estado das fontes nos permite fazê-lo: ao contrário do que se acredita, poucas coisas foram destruídas nos arquivos do Terceiro Reich. Tentamos superar a visão maniqueísta -achar formidável o que foi feito até 1933 e rejeitar o resto- para mostrar como um poder pode influenciar o comportamento de um artista, compreender melhor, por meio dos conflitos políticos e estéticos, os verdadeiros desafios do envolvimento na arte, as conseqüências da censura e do exílio.

Um cientista estaria totalmente preparado para tratar das dificuldades específicas desse período?
Sabemos que um artista que tivesse optado por ficar na Alemanha, membro do partido nazista ou não, mas afiliado à Câmara de Música do Reich, poderia ser levado a dar concertos para a SS [polícia nazista]. O que é mais difícil suportar são todas essas tentativas de desculpabilização, depois da guerra: como a soprano Elisabeth Schwarzkopf, que pretende que, à época, todo mundo parava na página dez de "Minha Luta" [de Hitler] ou como o regente Karl Böhm, notório embaixador da política nazista, cujas memórias, "Eu Me Lembro Muito Exatamente", são no mínimo amnésicas.
Quando consultamos os arquivos, às vezes é preciso nos violentar para superar uma sensação de nojo. Em música, mais que em outras coisas, a desnazificação foi quase inexistente. O caso do regente Furtwängler é um caso à parte, o único em que as investigações foram tão longe, enquanto sabemos que Furtwängler era muito crítico e distante do regime -o próprio Goebbels reconheceria que ele nunca foi um nacional-socialista. Mas compositores oficiais, como Werner Egk ou Carl Orff, continuaram exercendo as mais altas funções na Alemanha no pós-guerra.
A música sempre foi simbólica da cultura alemã: ela aparece como ferramenta privilegiada da propaganda. A música invade todos os setores da sociedade nazista, das canções da Juventude Hitlerista aos concertos dados pelas orquestras nas fábricas, passando pelos ingressos para Bayreuth oferecidos aos feridos de guerra. Ela acompanhará, até os últimos dias do Reich, a empreitada do Holocausto. Uma das primeiras preocupações dos nazistas foi reconquistar um patrimônio musical "desviado" por 15 anos de vanguardismo e modernidade. Isso começa pelos grandes mestres barrocos -Bach, Schütz e Haendel. As referências judaicas são apagadas dos libretos de Haendel.
Mas a pedra de toque é o romantismo: em 1939, festeja-se ao mesmo tempo Beethoven e os 50 anos de Hitler. A mensagem humanista do final da "Nona Sinfonia" torna-se o símbolo de uma sociedade indissolúvel reunida em torno de seu Führer.

E, é claro, há o ícone wagneriano...
Desde 1923 Hitler está ligado à família Wagner. Bayreuth é um dos principais lugares do regime. Os círculos de extrema direita e os círculos de Bayreuth se reúnem ao redor da Liga de Combate pela Cultura Alemã, que luta principalmente contra o desvirtuamento da ópera wagneriana pelos judeus. Teorias raciais e estéticas se unem, misturando bolchevismo e judaísmo, apoiadas em estudos de pretensão científica realizados por musicólogos para o Ministério da Propaganda.
Em 1939, Karl Blessinger publica um "Mendelssohn, Meyerbeer, Mahler" que faz remontar ao século 19 a influência nociva dos judeus na música -Mendelssohn, "judeu assimilado", Meyerbeer, "judeu negocista", Mahler, "rabino fanático da Europa Oriental". Os compositores judeus do passado são vilipendiados: tanto Mendelssohn, cujo famoso "Concerto para Violino" é suplantado pelo penoso "Concerto", de Schumann, cujo "Sonho de uma Noite de Verão" é substituído por encomendas oficiais, entre elas o "Sonho de uma Noite de Verão" ariano de Carl Orff!

A ponto de qualificar como "degenerada" a música que não respeitava os cânones definidos por Goebbels em Düsseldorf, em 1938.
Justamente, decidimos apresentar a capa do folheto da exposição difamatória de 1938, "Música Degenerada" -um acerto de contas, que marca com uma estrela-de-davi um saxofonista negro, caricatura da ópera "judaico-negra" "Jonny Spielt auf", de Ernst Krenek". Segundo Goebbels, é preciso lutar contra o internacionalismo, o atonalismo, a rítmica excessiva, para garantir o primado da melodia. O instrumental, certamente, é o da orquestra wagneriana.
Mas tudo isso não fica sem ambigüidades. Em 1937, o jornal do partido censura o "Carmina Burana", de Carl Orff, por sua mistura de textos alemães, latinos, franceses, o erotismo de sua proposta, mas a obra assim mesmo se torna rapidamente um sucesso. Rejeitado por motivos ideológicos e raciais, o jazz será mais tarde utilizado pelo Ministério da Propaganda. Quanto a Hitler, o fato de ter assistido por volta de 1906 em Viena a "Tristão e Isolda" na produção de Alfred Roller e Gustav Mahler (uma das coisas mais belas que ele viu) fará com que nunca ataque realmente Mahler.

A expulsão progressiva dos músicos judeus os levará ao campo de Terezin, hoje situado na República Tcheca.
A primeira guetificação, antes mesmo da promulgação em 1935 da lei sobre a pureza do sangue, depois da onda de repressão de 1938, é a criação da Aliança Cultural dos Judeus Alemães, a associação para a cultura judia feita por judeus para os judeus. Como estes logo teriam proibida a germanidade ("como os judeus são judeus, não podem ser alemães"), ela se torna a Aliança Cultural Judia, que será fechada em 1941, e a maioria de seus membros será enviada ao campo de Terezin.
Uma vitrina do Reich, esse campo que se transforma em antecâmara de Auschwitz, inclui diversas orquestras e quartetos, desenvolve uma vida cultural importante. Ali se compõe (Viktor Ullmann escreve "Der Kaiser von Atlantis"), se interpreta (o "Réquiem", de Verdi, a ópera "Brundibar", de Hans Krasa) e também se morre.

Seu trabalho provocou resistências?
Eu contatei cerca de 30 instituições alemãs sem encontrar o menor tabu, mesmo em Bayreuth. Ao contrário, os alemães nos incentivaram muito. Entre eles, esse trabalho de memória começou nos anos 1960. Em 1988, em Berlim, ocorreu a principal etapa da reconstituição da famosa exposição de 1938 sobre a "Música Degenerada". As resistências vêm principalmente do lado francês. Muitos pensam que não se deve remexer tudo isso, trazer à luz antigas culpas. Do lado dos artistas, alguns não tiveram vontade de tocar músicas marcadas pelo selo da infâmia.
Também tivemos alguns protestos do público, mas esperamos que ele saiba superar suas reticências. A recuperação da arte como um elemento possível da barbárie é uma coisa particularmente difícil de aceitar.


O catálogo da exposição -"Le 3e. Reich et la Musique" (direção de Pascal Huynh, ed. Fayard/Musée de la Musique, 256 págs., 39 euros)- pode ser encomendado no site www.alapage.com

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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