São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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EM "FREUD E OS NÃO-EUROPEUS", O CRÍTICO EDWARD SAID, MORTO NO ANO PASSADO, UTILIZA A OBRA DO PSICANALISTA AUSTRÍACO PARA REPENSAR A QUESTÃO JUDAICA

O SOLO MOVEDIÇO DA NAÇÃO

Fabrizio Bensch - 28.jul.2003/Reuters
Meninos palestinos lêem o Alcorão na cidade de Gaza


Marcelo Coelho
Colunista da Folha

A visão de Freud a respeito da cultura era certamente eurocêntrica. "E por que não haveria de sê-lo?", indaga o crítico Edward Said (1935-2003). "O seu mundo", prossegue, "ainda não tinha sido tocado pela globalização nem pelas viagens rápidas ou a descolonização, que tornariam aquelas culturas (as não-européias), antes desconhecidas ou reprimidas, disponíveis para a Europa metropolitana". O raciocínio, a que não falta certo verniz de condescendência, aparece aí pela metade deste pequeno volume, que reproduz uma palestra do consagrado crítico literário e militante da causa palestina no Museu Freud de Londres, em dezembro de 2001. Além da conferência, "Freud e os Não-Europeus", traz uma introdução escrita pelo psicanalista brasileiro Joel Birman, o discurso "Apresentando Edward W. Said", do psicanalista Christopher Bollas, e uma nada polêmica "Resposta a Edward Said", da professora de literatura inglesa Jacqueline Rose. Devo admitir certa prevenção diante de abordagens como essa. Sem dúvida, há muita facilidade intelectual em repetir a constatação de que o horizonte de referências de Freud era essencialmente europeu; mas também há igual facilidade em "resgatá-lo", como se diz, diante dessas críticas primárias, como se Freud dependesse de tal operação de salvamento. O raciocínio vai mais ou menos assim. Nosso ingênuo autor era eurocêntrico, mas pode ser desculpado por isso; de resto, toda obra de gênio se eleva acima do contexto suspeito (branco, europeu, burguês) em que foi produzida, merecendo então ser cortesmente revisitada por nós, que nos situamos em um ponto ainda mais elevado da experiência civilizacional. Se nós, "leitores de diferentes períodos históricos, em contextos culturais diferentes", podemos voltar a Freud, isso parece a Said "nada menos do que uma justificação do poder que o seu trabalho tem para instigar novos pensamentos bem como para iluminar situações com que ele mesmo jamais teria sonhado". O que significa, neste caso, utilizar as teorias de Freud sobre a origem do judaísmo no contexto da questão palestina. Diga-se que Said atinge esse objetivo com muito engenho e elegância; vejamos de que modo. Em "Moisés e o Monoteísmo", um de seus últimos trabalhos, Freud avançava a idéia de que o patriarca hebreu teria sido, na verdade, egípcio, e que, ao instituir a fé num Deus único e todo-poderoso, Moisés revivia as tentativas do faraó Akenaton de suprimir a fé nos velhos deuses em favor do culto ao deus Sol. O interessante, observa Said, não é discutir a exatidão histórica dessas tardias e incompletas especulações freudianas -cujo tom abrupto ele aproxima ao dos últimos quartetos de Beethoven- mas o fato de que, com isso, Freud contribui para que não mais pensemos no judaísmo como uma questão de identidade fixa, cultural ou biológica: "Freud mobilizou o passado não-europeu (dos judeus) para minar qualquer tentativa doutrinária de assentar a identidade judaica em uma fundação sólida, seja ela religiosa, seja ela secular". Entre os bárbaros Enquanto isso, diz Said, as autoridades israelenses se encarregam do contrário: conforme a velha tradição colonialista, Israel tomou-se como um Estado europeu a ser implantado sobre um pano de fundo "oriental", isto é, bárbaro e quase desabitado. Ademais, as autoridades israelenses valem-se da arqueologia como uma espécie de ciência estratégica para fixar a identidade do país: o solo da região é visto como depositário de uma uma única herança cultural, ignorando-se os vestígios das sucessivas levas de outros povos "não-europeus" que passaram por ali. A discussão a esse respeito, largamente baseada no livro de Nadia Abu el-Haj, "Facts on the Ground" (Chicago University Press), é das mais interessantes e remete às relações do próprio Freud com a arqueologia (tanto da mente quanto das civilizações antigas).
Há ousadia na elaboração de Said. Assim como Freud "desfez" a ancestralidade judaica de Moisés, considerando-o egípcio, sua conferência quase que "palestiniza" Freud. Verdade que o aspecto mais profundo do pensamento de Said está justamente em questionar o próprio conceito de uma identidade cultural fixa.
A questão é saber se esse raciocínio -a seu modo útil nos debates em torno da questão israelo-palestina- acrescenta algo de concreto a nosso entendimento de Freud. As teses de "Moisés e o Monoteísmo", discutíveis por si sós, funcionam aqui antes de tudo como uma metáfora para discutir a questão das identidades culturais, mas a atenção de Said parece distante do pensamento freudiano em si.
Menos do que instrumentos de análise, Freud aqui fornece um "antimito" a ser contraposto à política israelense.
Minha prevenção diante deste livro se agrava quando leio o prefácio escrito por Christopher Bollas, apresentando Said ao público psicanalítico londrino. Ainda que a causa palestina mereça solidariedade, é difícil aceitar frases como as que se seguem: "O horror dos atentados suicidas devolve a violência das armas, tanques e bombardeios de Israel. O objetivo de semelhante resistência não é vencer Israel, mas devolver Israel a si mesmo, para melhor ou para pior. A violência palestina busca manter a sanidade para o seu povo por meio da insistência em que ele existe, mesmo que o opressor insista em negar isso".
Assim, um suicida palestino estaria explodindo um supermercado apenas para lembrar aos israelenses que ele existe ou existiu -e que devem dar mais atenção ao Outro... Ainda mais propagandística, se bem que plenamente fiel ao pensamento de Said, é a conclusão de Jacqueline Rose no posfácio ao livro: "Israel reprime Freud".
Eis desdobramentos a partir de Freud que, como prometia Said, servem para tratar de "situações com que ele mesmo jamais teria sonhado". Não sei se é uma vantagem.


Freud e os Não-Europeus
105 págs., R$ 27,00 de Edward W. Said. Tradução de Arlene Clemesha. Ed. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3875-7250).



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