São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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Estudos recém-lançados analisam as formas de governo modernas à luz do capitalismo pós-industrial e das novas mídias

Gramáticas da democracia

O Arsenal da Democracia
514 págs., R$ 49,00 de Claude-Jean Bertrand. Trad. Maria Leonor loureiro. Edusc (r. Irmã Arminda, 10-50, Bauru, SP, CEP 17044-160, tel. 0/xx/14/ 235-7111).

Contra o Governo dos Piores
192 págs., R$ 35,00 de Michelangelo Bovero. Trad. Daniela B. Versiani. Ed. Campus (r. Sete de Setembro, 111, 16º andar, CEP 20050-002, RJ, tel. 0800-265340).

Newton Bignotto
especial para a Folha

Nas últimas décadas formou-se em boa parte dos países do Ocidente o consenso de que a democracia é o único regime adaptado às demandas do mundo moderno. Esse acordo quanto ao melhor regime não significou, no entanto, que haja sempre concordância quanto ao significado de seus valores básicos e sobre o funcionamento de suas instituições. Embora grandes teóricos como Claude Lefort, Habermas e Rawls tenham dado contribuições decisivas nesse campo, é da natureza da democracia colocar-se constantemente em questão. O livro de Bovero e o organizado por Bertrand fazem parte desse saudável esforço de continuar a investigar o funcionamento e os conceitos associados a uma forma de governo que não pode abrir mão da liberdade de pensamento e de expressão, se quiser se afirmar como a melhor opção para o nosso tempo. Discípulo e amigo de Norberto Bobbio, provavelmente o mais conhecido filósofo político italiano da atualidade, Bovero se dedica em seu livro a deslindar os principais problemas enfrentados pelos que pensam a democracia na atualidade, sobretudo quando está em questão o que ele chama de gramática da vida democrática. O que o livro tem de melhor é justamente o fato de que o autor é capaz de expor com clareza tanto a origem de conceitos como igualdade e liberdade, princípios essenciais da vida política em uma democracia, quanto os impasses enfrentados para a sua efetivação em sociedades capitalistas pós-industriais. Ao visitar a tradição conceitual, Bovero dissolve certos equívocos comuns sobre o significado de conceitos como o de cidadania, que, segundo ele, teria se tornado muito restritivo na acepção de Marshall, que reduziria seu alcance ao território político dos cidadãos, vistos como os membros de direito de uma comunidade política estruturada por normas constitucionais. De maneira generosa, o autor se pergunta se essa restrição conceitual não teria por resultado justamente o esquecimento do fato de que "a liberdade individual, no mundo moderno, não depende da pertença à comunidade, aliás a precede e condiciona". Com isso o problema dos imigrantes, por exemplo, que vivem em situação precária em muitos países do Ocidente, poderia receber um tratamento que lhes é negado pela constituição de boa parte dos regimes livres. A análise de Bovero o leva a tomar posição contra autores como Hayek, que, mesmo se situando no campo democrático, exacerbam a defesa do livre mercado a ponto de colocar em risco a própria democracia, em favor de uma competição desmedida entre seus integrantes. No confronto com seus pares, ele mostra que a concepção que lhe parece correta de democracia é aquela defendida por Kelsen e Bobbio. O núcleo de sua escolha desses autores como referência maior pode ser inferido a partir da afirmação de que a "democracia é formal por definição". Ao acentuar o aspecto processual necessário para a consolidação da vida democrática, o autor afirma que a esse primeiro ponto é preciso acrescentar a defesa das "quatro liberdades dos modernos -liberdade pessoal, de opinião, de reunião e associação". Se não há como negar o caráter salutar da posição do autor, sobretudo no confronto que estabelece com as doutrinas do "puro mercado", é preciso notar que Bovero dá pouca importância às críticas que já foram dirigidas a Kelsen, que, ao erigir a "norma jurídica" e os processos formais de sua validação em centro da vida das sociedades políticas, acaba por esvaziar a discussão sobre a formação do aparato constitucional das nações de seu conteúdo propriamente político. O leitor pode medir os riscos de tal posição lendo uma afirmação de Bobbio em um livro recente escrito em comum com Maurizio Viroli ("Diálogo em Torno da República", ed. Campus, pág. 30). Ao referir-se à sua atividade como professor, Bobbio afirma: "Eu ensinava com uma certa frieza, com um certo distanciamento. Um dos autores que eu mais gostava de usar em minhas aulas era Kelsen, que evita os juízos de valor e constrói o sistema jurídico como um sistema normativo que pode ser preenchido por qualquer conteúdo. A teoria pura do direito pode ser aplicada seja na União Soviética, seja nos EUA; seja em um sistema totalitário, seja em um sistema democrático". Ora, uma concepção de democracia que não nos capacita a escolher valores, que rejeita sem ambiguidades os regimes ditatoriais e totalitários, corre o risco de se transformar num exercício intelectual sofisticado, mas impotente para nos guiar nos embates verdadeiramente importantes da vida em sociedade.

A gramática violada
Um outro ponto a ser assinalado é o fato de que, apesar de o pensador italiano primar pela capacidade de abordar de forma clara e concisa os principais temas relacionados com a democracia, o título do livro pode soar como um enigma para os leitores brasileiros. Afinal não se encontram facilmente defensores públicos do governo dos piores, para justificar um livro "Contra o Governo dos Piores", e isso mesmo em países acostumados a governantes populistas, que se apropriam sem hesitação da linguagem democrática, para levar a cabo desígnios políticos que dificilmente resistiriam à análise "gramatical" proposta por Bovero. É verdade que ele se esmera em mostrar em seu sexto capítulo que está fazendo referência à "kakistocracia", uma forma de governo inventada a partir dos modelos de regime clássicos expostos pelo historiador Políbio. Mas, seja como for, como ele mesmo diz: "Caso tal agregação se realize, parece destinada a desagregar-se rapidamente". Como o autor prefere não indicar que tipo de experiência histórica mereceria essa designação, seu esforço acaba sendo pouco frutífero num contexto em que não faltam inimigos dos valores que ele associa à democracia "real", como gosta de se referir aos regimes liberais, e quando sobram exemplos de destruição do espaço público e das instituições de direito que o sustentam.

Fora de controle
É justamente a preocupação com as ameaças que rondam os regimes livres -e algumas de suas instituições principais- que comanda as análises do livro organizado por Claude-Jean Bertrand. Nesse caso não se trata de estudar os fundamentos conceituais, mas de explorar as práticas que definem o papel das mídias nas sociedades democráticas. A mola inspiradora do estudo é o reconhecimento do papel fundamental da imprensa na construção das sociedades democráticas e o fato de que uma imprensa prisioneira de interesses fora de controle dos cidadãos poderá se constituir num perigoso instrumento de dominação por parte de grupos particulares.
A solução defendida pelo organizador do livro é a criação de um conjunto de Mas (do inglês Media Accountability Systems), traduzido para o português por sistemas de responsabilização da mídia. Para Bertrand, "os MAS são quaisquer meios de melhorar os serviços de mídia ao público, totalmente independentes do governo". Essa definição ampla acaba por reunir no mesmo conceito um conjunto de procedimentos que nem sempre possuem um verdadeiro denominador comum, contribuindo para lançar dúvidas sobre o alcance de algumas análises.
Talvez, por isso, as melhores partes do livro sejam os estudos de caso assinados por autores de vários países. Merecem destaque os referentes aos conselhos de imprensa, assim como toda a quinta parte do livro na qual mecanismos de responsabilização da mídia de países tão diferentes quanto o Japão, a Inglaterra, a Suécia e a Estônia são estudados por especialistas. Precioso é também o sexto capítulo, no qual vários códigos de imprensa são listados.
Apesar de a ausência de referências mais precisas à imprensa da América Latina e do Brasil, em particular, seja a lamentar, o livro pode ser uma ferramenta útil para os que se interessam pela relação entre mídia e poder.


Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (UFMG).


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