São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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A física que mudou o mundo

Luana Fischer/Folha Imagem
O alemão Max Planck (1858-1947), que propôs em dezembro de 1900 a idéia revolucionária da transmissão de energia em "pacotes" pré-definidos: os "quanta"


Os últimos cem anos mudaram a face da vida prática, como resultado da idéia de "quantum" -o discreto charme do átomo, imaginado pelo físico alemão Max Planck em 1900. Qualquer produto digital recorre a essa realidade estranha e descontínua da escala atômica, do laser aos chips onipresentes. A física quântica tornou-se a alma oculta do mundo presente e o futuro será mais quântico do que nunca

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A transição do mundo clássico ao mundo quântico foi muito sofrida. Imagine a frustração dos físicos no final do século 19, tendo de conceder que a maravilhosa e elegante física clássica não era mais do que uma descrição aproximada do mundo natural. Afinal, eram já dois séculos de triunfos, iniciados com a formulação de Isaac Newton das leis de movimento e da atração gravitacional, em 1687, seguidas pela teoria de Faraday e Maxwell sobre as interações elétricas e magnéticas, e pela termodinâmica, a física que estuda o calor e sua transmissão. Esses grandes pilares da física clássica baseavam-se numa suposição fundamental: sistemas interagem trocando energia de forma contínua. Um jogador de futebol pode chutar a bola com a força que quiser. Uma panela d'água pode ser aquecida a qualquer temperatura entre 0C e 100C, quando a água ferve. Um pêndulo, como num relógio cuco, pode oscilar livremente, em qualquer ângulo. Um carro pode mover-se a qualquer velocidade, até alcançar sua velocidade máxima. Na física clássica, pode-se dar ou tirar energia de um sistema em qualquer quantidade. Na física quântica, não. O sucesso da física clássica era -e é- tão grande que muitos físicos, no final do século 19, acreditavam que não restava mais nada de importante a ser descoberto. Mas a festa durou pouco. Certas experiências produziram resultados que não eram explicados pela física clássica. Por mais que os físicos tentassem, eles não conseguiam entender o que estava acontecendo. Como a belíssima física clássica podia falhar tão miseravelmente? Uma nova física estava por nascer, contra a vontade da maioria. A mecânica quântica nasceu de um parto induzido. Mas essa é a missão básica da ciência, explicar o mundo que está à sua volta, mesmo que essa explicação não seja agradável. A natureza não escolhe seus observadores. O homem é que tenta explicá-la com as únicas armas de que dispõe, intuição e lógica. O "corpo negro" Um dos problemas que afligiam os físicos era tão abstrato, aparentemente, que jamais poderia parecer relevante: a radiação de corpo negro. Antes de mais nada, o que é um "corpo negro"? Um forno com o exterior pintado de preto, por exemplo. Um objeto preto absorve muito mais radiação do que um de cor clara. O leitor pode comparar a temperatura dentro de dois carros, um preto e outro branco, deixados sob o sol de verão durante uma hora.
Um corpo negro é o objeto que absorve toda a radiação e não irradia nem reflete energia alguma. Os cientistas estavam interessados na radiação em seu interior, ou seja, com o que acontece quando suas paredes são aquecidas até uma certa temperatura. A idéia era que, com o calor, os átomos dessas paredes iriam vibrar, liberando radiação para o interior da cavidade. Aliás, um forno comum está repleto de radiação infravermelha, que chamamos de "calor". Essa radiação seria então reabsorvida pelas paredes, numa dança de emissão e absorção que levaria a um estado final de equilíbrio entre os átomos do forno e a radiação.
Segundo a física clássica, esse processo de emissão e absorção de radiação pelos átomos do forno deveria ser contínuo, como toda outra troca de energia na natureza. Os átomos poderiam emitir e absorver qualquer quantidade de energia transportada pela radiação. Infelizmente, e para o desespero de vários físicos, incluindo o alemão Max Planck, as previsões da física clássica contradiziam o que se media nos experimentos.
Para "ver" o que acontece dentro do forno, basta fazer um orifício na parede e medir as propriedades da radiação que escapa. A radiação é composta por ondas eletromagnéticas, que vão desde as ondas de rádio e microondas até os raios X e gama, passando pela luz visível. A única diferença entre elas é a frequência, menor para as ondas de rádio e maior para os raios gama.
Os resultados foram surpreendentes. Primeiro, a radiação não dependia do material de que o forno era feito ou de sua forma, apenas da temperatura. Mais ainda, para cada temperatura havia uma frequência dominante, emitida com mais potência do que as outras. Por exemplo, se a uma temperatura a luz vermelha dominava, a temperaturas maiores era a radiação ultravioleta. A física clássica não conseguia explicar esse comportamento, prevendo que maiores frequências iriam dominar a qualquer temperatura.
Após longa agonia, Planck encontrou a solução do impasse, que apresentou no dia 14 de dezembro de 1900 à Sociedade Alemã de Física: a troca de energia entre os átomos e a radiação não é feita de forma contínua, mas sim discreta. Os átomos só podem emitir e absorver radiação em pequenos pacotes, múltiplos de uma quantidade mínima determinada pela frequência -átomos trocam energia como os homens trocam dinheiro, em múltiplos de um centavo, cujo equivalente é o "quantum" de energia. Planck mostrou que, a uma dada temperatura, radiações de maior frequência, sendo mais energéticas, estão ausentes da radiação de corpo negro. Max Planck jamais poderia ter imaginado a revolução que sua idéia iria causar.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Dança do Universo"



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