São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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Um revolucionário relutante

Planck resistiu a aceitar as implicações de sua idéia, que só ganharia impulso a partir de 1911

especial para a Folha

Em seu livro "Thematic Origins of Scientific Thought" (Origens Temáticas do Pensamento Científico; Harvard University Press, 1988), o físico e historiador da ciência norte-americano Gerald Holton afirma que as profundas implicações do quantum só começaram ser entendidas "com mais abrangência, em intensidade que variava de país para país, depois do Congresso de Solvay" (1911), um dos mais importantes deste século.
As dificuldades em aceitar alguns dos desdobramentos de sua hipótese inicial transformaram Planck em um "revolucionário relutante", como o classificou o físico e historiador da ciência Abraham Pais, morto recentemente. "As minhas tentativas fúteis de encaixar de alguma forma o quantum elementar de ação [como Planck o batizou em 1900" na teoria clássica continuaram por um certo número de anos, e elas me custaram um esforço imenso. Muitos de meus colegas viram isso como sendo algo na fronteira de uma tragédia. Mas eu vejo isso de uma forma diferente.[..." Agora, no entanto, sei que o quantum elementar de ação desempenhou um papel muito mais significativo na física do que aquele que eu estava inicialmente inclinado a suspeitar", confessou Planck em sua autobiografia científica, de 1948.
Holton vê essa relutância como "agonia". Planck, cuja visão de mundo se baseava nos princípios da física clássica, foi obrigado a rever tudo em que acreditava. "Planck não pensou que tivesse feito algo de revolucionário, ou peculiar, ao introduzir [o quantum" e, mesmo depois que Einstein, Lorentz e Ehrenfest [Paul, físico austríaco, 1880-1933" demonstraram a incompatibilidade com a física clássica, Planck procurou minimizar a inovação", disse o historiador John Heilbron à Folha.
Curiosamente, a revolução que Planck renegava acontecia em uma época em que se acreditava que a física era um corpo quase completo de conhecimento humano. Ficou famoso o discurso feito pelo físico escocês William Thomson (1824-1907), mais tarde lorde Kelvin, na Royal Society, em 27 de abril de 1900.
Em sua palestra, Kelvin dizia que "apenas" duas nuvens obscureciam o céu cristalino da física do final do século 19. A primeira dizia respeito à existência do éter, um sólido então pensado como inelástico, que serviria de suporte para a transmissão das ondas eletromagnéticas (ondas de rádio, microondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios X e raios gama). A segunda nuvem eram discrepâncias que a física clássica se mostrava incapaz de tratar, ao se aplicarem as teorias de Maxwell e Boltzmann à emissão de radiação pela matéria.
É interessante notar que da primeira nuvem nasceria a teoria da relatividade restrita, proposta por Einstein em 1905, que dizimava a possibilidade de existência do éter. Da segunda surgiria a teoria quântica, com Planck, poucos meses depois do discurso de lorde Kelvin. Em 1905, um jovem físico teórico alemão, ao generalizar a hipótese do quantum, transtornou ainda mais as já abaladas convicções de Planck, para quem o quantum nada tinha a ver com as propriedades ondulatórias da radiação, mas sim com propriedades internas da matéria. Einstein, então um técnico de patentes em Berna (Suíça), publicou artigo mostrando que a luz era formada por quanta, isto é, por partículas que, em meados da década de 1920, seriam batizadas como "fótons", pelo físico norte-americano Gilbert Lewis (1875-1946). Planck, reticente, rejeitou o resultado de Einstein. Um exemplo dessa recusa está na recomendação, em 1913, para ingresso de Einstein na Academia Prussiana de Ciências. A carta, elogiosa, dizia que não havia quase problema da física moderna para o qual Einstein não tivesse dado contribuição notável. Mas, em relação ao fóton, havia uma ressalva: "Que ele, às vezes, tenha errado o alvo em suas especulações, como por exemplo em sua hipótese dos "quanta de luz", não pode ser levado muito a sério, pois não é possível introduzir idéias verdadeiramente novas, mesmo nas ciências exatas, sem correr alguns riscos, de vez em quando". Aceitar a hipótese do quantum -que Planck denominou "intrusa, monstruosa e, para a imaginação, de uma arrogância quase insustentável"- era renunciar "a todos os frutos do grande trabalho de Maxwell", que estariam perdidos, caso se levasse a sério algo que não passava "de uma especulação dúbia". Planck também confessou ter tido, por certo tempo, a esperança de que "as leis da eletrodinâmica clássica, se aplicadas de modo suficientemente geral e acrescidas de hipóteses apropriadas, seriam suficientes para explicar os pontos essenciais do fenômeno estudado e levariam ao objetivo desejado" (referindo-se à radiação do corpo negro). Repúdio às próprias idéias Essa busca incessante levou Planck a várias reformulações de sua teoria inicial. Até 1912, viu com profundo ceticismo a idéia que criara -a descontinuidade o repugnava desde o início. A partir daí, mudou sua abordagem: os quanta só estariam envolvidos na emissão da energia. A absorção deveria mesmo ser contínua, como se pensava antes de seu trabalho de 1900. Dois anos depois, foi ainda mais severo: chegou a abrir mão da descontinuidade nos processos de absorção e emissão de energia, deixando-a apenas para a interação entre "partículas de matéria".
Para Lorentz, o físico mais importante da época, Planck desabafou, em carta de 1910: "Coloquei a descontinuidade onde ela poderá causar menos danos". E para o colega Ehrenfest: "Odeio a descontinuidade da energia, mais ainda a descontinuidade da emissão".
Essa resistência acontecia em um cenário que se mostrava contrário a Planck. Em 1907, Einstein, mais uma vez baseando-se em Planck, inaugurou a teoria quântica da matéria, ao descrever propriedades (o calor específico) dos corpos sólidos. Pouco depois, em 1913, o físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) aplicou a hipótese do quantum para explicar a estabilidade do átomo.
Mais evidências vieram, mas Planck ainda se mostrava incrédulo e insatisfeito. Edwin Kemble (1889-1984), nos Estados Unidos, em uma tese pioneira naquele país, mostrou que a absorção de energia também deveria ser descontínua, refutando a revisão de Planck. Em 1915, o físico norte-americano Robert Millikan (1868-1953) provou que os fótons têm realidade física -a contragosto, já que pretendia chegar ao resultado contrário.
Ao estudar a radiação do corpo negro, Planck foi motivado pela crença na busca do absoluto, "a mais seleta tarefa científica", que classificava como aquilo que "manteria seu significado para a eternidade, para todas as civilizações, mesmo extraterrestres e não-humanas".
O significado físico de sua descoberta nunca chegou a tocar profundamente sua alma de cientista e filósofo. O criador estranhou sua criatura e, por vezes, tentou livrar-se dela. Sua constante h (6,67x 10-32 Js), cuja pequenez faz dos fenômenos quânticos algo sem valor no mundo dos objetos macroscópicos do cotidiano, pareceu-lhe deslocada no interior da "amada ciência".
Com resignação serena, Planck, ao final da vida, sintetizou o modo como o quantum se tornou uma das idéias mais fundamentais da física: "Uma inovação científica importante raramente se impõe vencendo gradualmente e convertendo seu oponentes [..." O que acontece é que seus oponentes gradualmente vão morrendo, e a geração seguinte se familiariza, desde o início de sua formação, com as novas idéias."


(CÁSSIO LEITE VIEIRA E ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA)




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