São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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+ brasil 501 d.C.

Giannotti passa a escrever na Folha



O filósofo José Arthur Giannotti, que passa a escrever mensalmente no Mais!

Marcos Nobre
especial para a Folha

Existem momentos em que nossa história de vida pessoal se confunde de tal maneira com a história coletiva que não é possível distinguir bem onde uma começa e a outra termina. No caso de um intelectual com face pública tão marcada, como é o caso de José Arthur Giannotti, a hora histórica, o divisor de águas, foi março de 1969. O golpe militar de 1964 mostrou a que veio com a promulgação do Ato Institucional nš 5, em 13 de dezembro de 1968, e, em março do ano seguinte, Giannotti foi cassado, aposentado compulsoriamente de suas funções no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. A cassação interrompeu uma trajetória que Giannotti não fazia sozinho: como ele, boa parte dos intelectuais universitários estava engajada na construção não apenas de um novo modelo de universidade para o Brasil, mas de um novo país em que essa universidade pudesse ter seu lugar. No contexto desse grande projeto, Giannotti e um grupo de professores do departamento de filosofia da USP tinham se colocado como tarefa implantar um novo padrão de ensino e pesquisa em filosofia, que pudesse se contrapor àquilo que era então diagnosticado por eles como a doença crônica brasileira: um ensaísmo sem método ou rigor conceitual, um ecletismo que beirava a livre associação de idéias. Afastado da universidade, Giannotti buscou apoiar como pôde os professores do departamento de filosofia que não tinham sido cassados e os jovens talentos, enfim, aqueles que podiam dar continuidade ao projeto de um novo padrão de investigação em filosofia. Paralelamente, vai reconstruir o ambiente necessário a sua sobrevivência intelectual com colegas ligados a outros domínios das ciências humanas que não a filosofia. Nomes como os de Fernando Henrique Cardoso, Juarez Brandão Lopes, Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Paul Singer e Elza Berquó fundaram, no mesmo ano de 1969, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do qual Giannotti é atualmente presidente.
Um novo viés
Essa experiência já tinha precedente. Muitos dos fundadores e primeiros colaboradores do Cebrap tinham participado de uma experiência extra-universitária de leitura de textos clássicos de economia, de teoria política e de direito, atividade que ficou conhecida como "seminários Marx", em virtude da leitura demorada que o grupo fez de "O Capital", e que funcionou de 1958 até meados da década de 60. O livro de Giannotti sobre o jovem Marx, "Origens da Dialética do Trabalho" (L&PM), de 1966, é tributário dessa experiência.
Com a experiência do Cebrap, entretanto, as investigações de Giannotti em filosofia ganham um viés novo. É certo que o diálogo com as ciências humanas é uma marca constante da sua produção, mas, naquele momento, os problemas centrais da sociologia, da antropologia, da economia, da ciência política (juntamente com os dilemas de fundamentação que lhes são próprios) passam a compor o cerne mesmo da reflexão de Giannotti. E o resultado dessa nova etapa está documentado no livro "Trabalho e Reflexão - Ensaios para uma Dialética da Sociabilidade" (Brasiliense), de 1983.
A longa transição brasileira para a democracia trouxe um novo rearranjo desse ambiente intelectual. Giannotti pôde retomar de maneira sistemática suas antigas preocupações com os rumos da universidade brasileira (em 1986, publicou "A Universidade em Ritmo de Barbárie" (Brasiliense); nos anos de 1996 e 1997, integrou o Conselho Nacional de Educação) e passou a ter presença regular na imprensa para opinar sobre os temas políticos do momento. Mas a primeira fase da existência do Cebrap tinha chegado a seu fim: a democratização levou grande parte desse círculo de intelectuais para postos no governo.
Não tendo escolhido o caminho da política institucional, Giannotti se volta para o aprofundamento de alguns dos resultados de suas pesquisas anteriores, particularmente para conceitos produzidos no âmbito de "Trabalho e Reflexão", como os de "lógos prático" e "esquema operatório". Com isso, reencontra-se com o pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), de quem ele já havia traduzido, em 1968, o "Tractatus Logico-Philosophicus" e que lhe tinha sido trazido (ainda durante o curso de graduação) por seu mestre Gilles-Gaston Granger.
Pretendia, desse modo, apresentar de maneira mais rigorosa conceitos que lhe pareceram então insatisfatórios. Foi assim que nasceu o livro "Apresentação do Mundo - Considerações sobre o Pensamento de Ludwig Wittgenstein" (Companhia das Letras), de 1995.
Nessa nova etapa, entretanto, faltava ainda mostrar o vínculo sistemático com seus trabalhos anteriores, particularmente com o pensamento de Marx, referência central em seu percurso intelectual. Já o livro de 1966, "Origens da Dialética do Trabalho", prometia uma investigação sistemática sobre o Marx da maturidade (aquele de "O Capital"), que tinha se completado apenas parcialmente nos seus trabalhos posteriores. Esse balanço da obra de Marx surgiu em um livro recentemente publicado, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). A ambiguidade do título ("certa" significa "segura", mas também "alguma") é também a do autor: não é possível pensar sem Marx, mas também não é possível pensar com todo o Marx.
Atualmente, Giannotti prepara um livro sobre a moral (pública e privada). É bem possível que essa linha de investigação venha a demarcar uma nova etapa de sua produção. É o que, a partir de hoje, o leitor terá oportunidade de conferir mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.


Marcos Nobre é professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e pesquisador do Cebrap, autor de "A Dialética Negativa de Theodor W. Adorno" (Iluminuras) e co-autor de "Conversas com Filósofos Brasileiros" (Editora 34).

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