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+ brasil 501 d.C.
Giannotti passa a escrever na Folha
O filósofo José Arthur Giannotti, que passa a escrever mensalmente no Mais!
Marcos Nobre
especial para a Folha
Existem momentos em que nossa
história de vida pessoal se confunde de tal maneira com a história
coletiva que não é possível distinguir bem onde uma começa e a outra termina. No caso de um intelectual com face pública tão marcada, como é o caso de
José Arthur Giannotti, a hora histórica, o
divisor de águas, foi março de 1969. O
golpe militar de 1964 mostrou a que veio
com a promulgação do Ato Institucional
nš 5, em 13 de dezembro de 1968, e, em
março do ano seguinte, Giannotti foi cassado, aposentado compulsoriamente de
suas funções no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo.
A cassação interrompeu uma trajetória
que Giannotti não fazia sozinho: como
ele, boa parte dos intelectuais universitários estava engajada na construção não
apenas de um novo modelo de universidade para o Brasil, mas de um novo país
em que essa universidade pudesse ter
seu lugar. No contexto desse grande projeto, Giannotti e um grupo de professores do departamento de filosofia da USP
tinham se colocado como tarefa implantar um novo padrão de ensino e pesquisa
em filosofia, que pudesse se contrapor
àquilo que era então diagnosticado por
eles como a doença crônica brasileira:
um ensaísmo sem método ou rigor conceitual, um ecletismo que beirava a livre
associação de idéias.
Afastado da universidade, Giannotti
buscou apoiar como pôde os professores
do departamento de filosofia que não tinham sido cassados e os jovens talentos,
enfim, aqueles que podiam dar continuidade ao projeto de um novo padrão de
investigação em filosofia. Paralelamente,
vai reconstruir o ambiente necessário a
sua sobrevivência intelectual com colegas ligados a outros domínios das ciências humanas que não a filosofia. Nomes
como os de Fernando Henrique Cardoso, Juarez Brandão Lopes, Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Paul Singer e
Elza Berquó fundaram, no mesmo ano
de 1969, o Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (Cebrap), do qual Giannotti é atualmente presidente.
Um novo viés
Essa experiência já tinha precedente. Muitos dos fundadores
e primeiros colaboradores do Cebrap tinham participado de uma experiência
extra-universitária de leitura de textos
clássicos de economia, de teoria política
e de direito, atividade que ficou conhecida como "seminários Marx", em virtude
da leitura demorada que o grupo fez de
"O Capital", e que funcionou de 1958 até
meados da década de 60. O livro de Giannotti sobre o jovem Marx, "Origens da
Dialética do Trabalho" (L&PM), de 1966,
é tributário dessa experiência.
Com a experiência do Cebrap, entretanto, as investigações de Giannotti em
filosofia ganham um viés novo. É certo
que o diálogo com as ciências humanas é
uma marca constante da sua produção,
mas, naquele momento, os problemas
centrais da sociologia, da antropologia,
da economia, da ciência política (juntamente com os dilemas de fundamentação que lhes são próprios) passam a
compor o cerne mesmo da reflexão de
Giannotti. E o resultado dessa nova etapa
está documentado no livro "Trabalho e
Reflexão - Ensaios para uma Dialética da
Sociabilidade" (Brasiliense), de 1983.
A longa transição brasileira para a democracia trouxe um novo rearranjo desse ambiente intelectual. Giannotti pôde
retomar de maneira sistemática suas antigas preocupações com os rumos da
universidade brasileira (em 1986, publicou "A Universidade em Ritmo de Barbárie" (Brasiliense); nos anos de 1996 e
1997, integrou o Conselho Nacional de
Educação) e passou a ter presença regular na imprensa para opinar sobre os temas políticos do momento. Mas a primeira fase da existência do Cebrap tinha
chegado a seu fim: a democratização levou grande parte desse círculo de intelectuais para postos no governo.
Não tendo escolhido o caminho da política institucional, Giannotti se volta para o aprofundamento de alguns dos resultados de suas pesquisas anteriores,
particularmente para conceitos produzidos no âmbito de "Trabalho e Reflexão",
como os de "lógos prático" e "esquema
operatório". Com isso, reencontra-se
com o pensamento do filósofo austríaco
Ludwig Wittgenstein (1889-1951), de
quem ele já havia traduzido, em 1968, o
"Tractatus Logico-Philosophicus" e que
lhe tinha sido trazido (ainda durante o
curso de graduação) por seu mestre Gilles-Gaston Granger.
Pretendia, desse modo, apresentar de
maneira mais rigorosa conceitos que lhe
pareceram então insatisfatórios. Foi assim que nasceu o livro "Apresentação do
Mundo - Considerações sobre o Pensamento de Ludwig Wittgenstein" (Companhia das Letras), de 1995.
Nessa nova etapa, entretanto, faltava
ainda mostrar o vínculo sistemático com
seus trabalhos anteriores, particularmente com o pensamento de Marx, referência central em seu percurso intelectual. Já o livro de 1966, "Origens da Dialética do Trabalho", prometia uma investigação sistemática sobre o Marx da maturidade (aquele de "O Capital"), que tinha
se completado apenas parcialmente nos
seus trabalhos posteriores. Esse balanço
da obra de Marx surgiu em um livro recentemente publicado, "Certa Herança
Marxista" (Companhia das Letras). A
ambiguidade do título ("certa" significa
"segura", mas também "alguma") é também a do autor: não é possível pensar
sem Marx, mas também não é possível
pensar com todo o Marx.
Atualmente, Giannotti prepara um livro sobre a moral (pública e privada). É
bem possível que essa linha de investigação venha a demarcar uma nova etapa de
sua produção. É o que, a partir de hoje, o
leitor terá oportunidade de conferir
mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.",
do Mais!.
Marcos Nobre é professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e pesquisador do
Cebrap, autor de "A Dialética Negativa de Theodor
W. Adorno" (Iluminuras) e co-autor de "Conversas
com Filósofos Brasileiros" (Editora 34).
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