São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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+ música Vários CDs lançados nos últimos anos permitem redescobrir o experimentalismo arrojado de compositores como o mexicano Julián Carrillo e o canadense Henry Brant

Se você disser que eu desafino...



Em matéria de arte (de música contemporânea, então, nem se fale) muita coisa originalíssima só começa a ser conhecida meio século depois. É esse o caso dos estranhos estrangeiros de que dou notícia aqui, cujas notáveis obras musicais -até aqui distinguidas apenas por especialistas- só estão tendo maior divulgação em CDs recém-editados. Neste ano em que são justamente comemorados entre nós, com concertos, um CD e dois vídeos, os 85 anos de Joachim H. Koellreuter, ainda atuante, com tantos serviços prestados à renovação da nossa música, é preciso acentuar que, se a sua atividade docente é bem conhecida, é ainda muito desconhecida a sua obra compositiva, já que as suas músicas são pouco executadas e a sua discografia é mínima, comparada à sua produção musical. O CD "Akronos", tendo como intérpretes o pianista Sérgio Villafranca e o flautista Wagner Ortiz, é mais uma rara iniciativa para reparar essa lacuna da nossa memória musical, infelizmente tão curta; complementam-no os vídeos "Concertos Comentados" e "Koellreuter - A Música Transparente" (tudo isso produção da Documenta Vídeo Brasil). O catálogo das obras de Koellreuter, a cargo do musicólogo Carlos Kater (seu ex-aluno, como quase todos os nossos músicos eruditos relevantes das últimas gerações), foi publicado em 1997 pela Fundação de Educação Artística de Belo Horizonte. No mesmo ano, foi editado por Kater o nº 6 dos Cadernos de Estudo da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, contendo, além de textos significativos do próprio Koellreuter, uma cronologia de sua vida e obra. Não faz muito a rádio Cultura de São Paulo lhe dedicou vários programas. E se anunciam pesquisas, livros e um filme sobre ele. Nem tudo está perdido. "Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou", escreveu Drummond. Em seu livro "New Musical Resources" (Novos Recursos Musicais, Cambridge University Press, Inglaterra), no qual estuda os harmônicos do som, Henry Cowell demonstrou que as dissonâncias, produzidas pelos sobretons mais altos, são tão naturais quanto as consonâncias, resultantes dos harmônicos mais baixos, estas mais facilmente acessíveis ao ouvido e por isso mais familiares. A rejeição da dissonância é uma questão de hábito (haja vista as diferenças conceituais entre o Ocidente e o Oriente) e de preguiça auditiva. A propósito, alguma coisa das dissonâncias microtonais chegou a penetrar na música popular ocidental de extração jazzística, permeada pela inflexão africana. Recentemente, a Internet divulgou estudos de Joseph L. Monzo sobre o uso de microtons nos blues de Robert Johnson e nos acordes de Jimi Hendrix. Nas entonações microtonais reside um dos segredos da originalidade desses artistas. São os "erros" certos, poderia dizer outro dissonante do jazz, Thelonious Monk, que, insatisfeito com uma de suas apresentações, assim se expressou: "I made the wrong mistakes" ("Eu cometi os erros errados"; é Luciano Bério quem conta essa história).
Escala mística
Quanto a mim, a dissonância me atrai, a consonância me distrai. Muito açúcar me enjoa. Mesmo Chopin, com suas prestidigitações de muitos dedos, me aborrece. Prefiro o pós-Chopin dissonantemente "corrigido" do último Scriábin, cujas sonatas negra e branca e cujos derradeiros estudos, em que reponta a "escala mística" de quartas, me encantam, ainda mais se interpretados por Glenn Gould, notório anti-romântico. Talvez por isso não tenha encontrado nenhuma dificuldade de empatia com o "Desafinado" de Tom Jobim e Newton Mendonça (de passagem: Tom afirmou certa vez que, quando compunha com Newton, a letra era sempre deste; inútil quererem atribuir a posteriori a Tom o que é de Newton). Um "desafinado" que, na verdade, menos que isso, era só discretamente dissonante, trafegando no universo impressionista de Debussy-Ravel.
Por isso, também, me afeiçoei, na primeira ouvida, à música da russa Ustvólskaia, esta sim ultradissonante. Contudo poucas coisas ouvi tão dissonantes como a música desse outro russo de nome não menos discorde: Vishniegrádski (Wyschnegradsky, na grafia internacional, ainda mais complicada). Música que chega a parecer, e é de fato, "desafinada" em relação ao sistema temperado aplicado aos instrumentos ocidentais. Capaz de desafinar até o coro dos descontentes (para recauchutar a frase que montei inspirado em Sousândrade e que Torquato Neto tornou conhecida).
Isso acontece com as características de uma das mais tardias recuperações da história da música contemporânea e independentemente das interdições da era de Stálin, porque Ivan Vishniegrádski (1893-1979), depois de seis anos de peregrinação pela Europa na tentativa de fazer construir um instrumento adequado para as suas pesquisas de ultracromatismo, acabou por se fixar em Paris, desde 1929, e lá viveu, auto-exilado e intra-exilado, até a morte. O problema é que ele, radicalizando as propostas de Scriábin, se aventurou com rara ortodoxia pelos caminhos da música microtonal, familiares, por exemplo, à música hindu, mas pouco palmilhados mesmo pelos mais avançados compositores da sua época, muitos dos quais, como Schoenberg, apesar de suas extraordinárias inovações, não abdicaram do sistema temperado, o imperante na música ocidental.
Conseguiu, afinal, fazer construir um piano de três teclados afinados diferentemente, de modo a obter divisões menores que o meio tom. Mas acabou recorrendo a dois ou mais pianos com afinação diferenciada por 1/4 de tom para dar praticidade à apresentação de suas obras. Apesar disso, elas raramente foram executadas. E somente em 1978, aquela que é tida como a mais importante das suas realizações, "Jornada da Existência", para orquestra, coro misto e recitante, teve a sua estréia -60 anos depois de criada: Vishniegrádski tinha 84 anos e viveria até os 86.
Alguns discos foram devotados à recuperação parcial de sua obra a partir de 1977. Dentre eles, um, "Hommage à Wyschnegradsky", pelo selo canadense SNE (Société Nouvelle d'Enregistrement), em 1993, outro, pelo francês 2e2m, em 1995, com o prestigioso Ensemble 2e2m, sob a regência de Paul Méfano. Duas outras peças se encontram no disco "Lyrische Aspekte Unseres Jahrhundert", VNM (Vienna Modern Masters), do mesmo ano. Falo dos que me chegaram às mãos. É pouco. Mas o bastante para se aquilatar da relevância do compositor. Aí estão peças produzidas entre 1918 e 1963, algumas delas pela primeira vez apresentadas publicamente. Das mais antigas, impressionou-me sobremaneira "Cosmos", op. 28 (1939-1940), para quatro pianos em quartos de tom, composição cuja estréia ocorreu em 1945, na Salle Chopin, de Paris, sob a direção do compositor, tendo Pierre Boulez entre os seus intérpretes, e que ganha nova leitura no disco canadense sob a direção musical do compositor e pianista Bruce Mather.
A composição faz jus ao título, em sua espiralada sucessão de escalas ascensionais que parecem curvar o espaço sonoro com arrepios vertiginosos de microintervalos, entrecortados por abruptos clusters rítmicos. O mesmo disco, que, além de quatro pianistas, conta com o "L'Ensemble d'Ondes de Montréal", pois privilegia composições que empregam as Ondas Martenot, inclui três obras de Vishniegrádski para esse instrumento, as duas primeiras, "Transparências I e II", de 1953 e 1963, explorando a tessitura do teclado eletrônico e a versatilidade dos seus poderosos glissandos em confronto com as harmonias dissonantes de dois pianos afinados entre si à distância de 1/4 de tom; a terceira peça, "Composição", op. 52 (1963), se expande a todo um quarteto de Ondas Martenot.


Diferentemente dos europeus, Julián Carrillo parte de um empirismo absoluto, não afetado por problemas de ordem espiritualista e antroposófica


Da mesma época, encontramos no disco francês o "Estudo sobre Movimentos Rotatórios", op. 45c, em quartos de tom (1961), no qual, ao encurvamento do continuum sonoro, característico de Vishniegrádski, se adicionam tímpanos, percussão e metais que aumentam a tensão rítmica e projetam os timbres para além da ambiência pianística numa atmosfera carregada de ressonâncias misteriosas. O catálogo de obras de Vishniegrádski abrange mais de 70 peças e "Jornada da Existência" tem duração estimada em uma hora. A composição, executada uma única vez, nunca foi gravada. Há que esperar pelo século 21. O mexicano Julián Carrillo compartilha com Vishniegrádski e com o tcheco Alois Haba (1893-1976) o desbravamento da "terra incognita" microtonal. Há uma foto, divulgada pela Internet, em que estão os três juntos, já idosos, amigos que foram, além de companheiros de aventura sonora. A rigor, faltou aí outro russo, também paladino do microtonalismo, Nicolai Obuhov (1892-1954), autor da lendária cantata "Le Livre de Vie" (O Livro da Vida), que se afirma ter cinco horas de duração, mas suas composições não estão acessíveis, a própria vida do compositor tendo se encerrado prematura e drasticamente. "Jesus Cristo da música"
Porém, de todos, o primeiro me parece o mais extraordinário pelo supremo isolamento da sua pesquisa na América Latina. Compositor e teórico fértil, ainda criou e adaptou muitos instrumentos para a produção de microtons. Um dos seus raros discípulos foi o suíço-baiano Walter Smetak (1913-1984), que chegou a soluções muito pessoais, sob o influxo das teorias de Julián Carrillo, a quem se refere como J.C., "uma espécie de Jesus Cristo da música". Mas, conforme Juan Carlos Paz ("Introducción a la Música de Nuestro Tiempo"), diferentemente dos europeus, o compositor mexicano parte de um empirismo absoluto, não afetado por problemas de ordem espiritualista e antroposófica, de derivação scriabiniana, nem por elementos da música vernácula do país. Ainda segundo Paz, que pode ser considerado o mais eminente dos músicos argentinos modernos, Carrillo é um especulador puro, que desacredita a teoria do temperamento igual, perpetuada, a seu ver, pelo hábito e pelo espírito acomodatício, assim como a pretensa relação lógica entre a escala denominada natural e a escala física. Carrillo nasceu em 1875, vale dizer, um ano depois de Schoenberg e Charles Ives. Muito cedo, já em 1895, descobriu entre o sol e o lá da quarta corda do violão os 16 sons que o levariam, a partir de cada uma das seis notas de uma oitava, à escala de 96 sons -aquilo que mais tarde englobaria sob a denominação simbólica de "o 13º som", para distinguir o seu sistema do tradicional. Sua primeira composição sistemática sob essa rubrica foi o "Prelúdio a Colón", apresentado em 1924 num concerto que causou polêmica no México. Podemos ouvir essa composição e outras, tanto da fase inicial, brahmsiana, como da microtonal, numa das poucas edições disponíveis, só encontrável em seu país: "Música de Julián Carrillo", caixa com dois CDs (Sony Music Entertainment de Mexico, 1997, CDEC2 486131) -uma seleção das 36 obras que Carrillo gravou em Paris, com a Orquestra Sinfônica Lamoureux, entre 1961 e 1965. Suas viagens à Europa o tornaram conhecido dos guetos artísticos de vanguarda. Mas em sua própria terra, apesar da polêmica que suas idéias suscitaram, ele esteve sempre à margem, em parte devido ao sucesso da música de inspiração nacionalista, que triunfou, encabeçada por Carlos Chavez (o equivalente mexicano de Villa-Lobos), cuja obra, especialmente a percussiva, não é desprezível, mas não se envolve nos desafios mais profundos das novas linguagens do universo sonoro. Do CD mexicano, merece destaque o já mencionado "Prelúdio a Colombo", para soprano em 1/4 de tom, flauta, violão, violino, octavina (instrumento de arco destinado a produzir oitavos de tom) e harpa, afinados em 1/4, 1/8 e 1/16; com sua anfractuosa linha melódica microtonal, que parece se tingir das dores das civilizações pré-colombianas, soa antes como um lamento do que uma celebração da descoberta -uma melancólica ária/cantilena, como a posterior e mais bem comportada (embora igualmente bela) que aparece na Quinta Bachiana de Villa-Lobos, porém mais próxima, a composição de Carrillo, em termos conceituais, do Villa experimental dos precedentes "Quatuor" (1921) e "Noneto" (1923), singulares pelas formações exóticas e pelos arrojos vocais que chegam a incorporar incidentalmente o microtonalismo.
Esforço quixotesco
Impressionam, também, os dois breves "quartetos atonais" de 1927, em 1/4 de tom, "Meditación" e "En Secreto", que sugerem um subir e descer de escadas infinitas em suas escaladas de acordes microintervalares. Admiráveis, ainda, as obras da última fase, "Horizontes" (1947) e "Balbuceos para Piano Metamorfoseado" (1958), composições de maior fôlego, em que o músico mexicano desafia as orquestras convencionais, no primeiro caso, com um violino e um violoncelo em 1/4 e 1/ 8 de tom e uma harpa em 1/16 de tom, e, no segundo, com um piano em 1/16 de tom que eriça o espaço sonoro de impensáveis arpejos sireniformes. A música de resistência de Carrillo, o seu esforço quixotesco por ampliar a sensibilidade musical, são impactantes. Ruth Crawford Seeger é uma autêntica antecessora de Ustvólskaia. Nascida em 1901, de fato a pioneira das grandes compositoras modernas, a americana vem de ser estudada por Judith Tick, musicóloga da Northeastern University de Boston ("Ruth Crawford Seeger - A Composer's Search for American Music", Oxford University Press, 1997). Desde o início, uma radical da música dissonante, ela foi "descoberta" por Henry Cowell e, vencendo todos os preconceitos, teve intensa participação na vanguarda musical americana dos anos 20 e 30; foi aluna e colaboradora do musicólogo Charles Seeger, o criador da teoria do "contraponto dissonante" (que buscava uma fórmula própria, diferente da disciplina dodecafônica, para as estruturas musicais pós-tonais), e com ele se casou em 1932. Na época da Depressão, engajou-se politicamente, ao lado de Seeger, chegando a ensaiar um "marxismo modernista" (expressão de Judith Tick) de curta duração, expresso nos dois "Ricercari", que compôs sobre poemas participantes extraídos do "Daily Worker", cuja retórica menor só se salva pelo tratamento de choque a que ela submete a voz e o piano. Musicólogo inconformista, mas compositor irrelevante, Seeger não tinha nada a perder e acabou descambando para a cultura proletária antimodernista e a pesquisa folclórica. Sua ascendência sobre a mulher, agora travestida em "Krawford, the Komunist" (assim ela se auto-ironizava), acabou, afinal, contribuindo para levar a superior compositora a um trágico impasse criativo.
Precoce maturidade
Depois de interromper quase totalmente o seu trabalho de composição por duas décadas, ela veio a morrer de câncer, na meia-idade, em 1953, quando retomava a sua linha mais ousada de criação musical. Curiosidades: Ruth Crawford assistiu, em outubro de 1929, em Nova York, a uma apresentação de obras de Julián Carrillo e anotou em seu diário: "Duas horas de música para 1/4, 1/8 e 1/16 de tom (...), um conjunto de violoncelo, voz, ocarina, trumpete e cítara", achando as obras "fascinantes e comoventes, com a notável intérprete cantando quartos de tom com mais exatidão de altura do que muitos cantam semitons" (referia-se aqui, provavelmente, ao "Prelúdio a Colón"). Na Europa, em 1931, graças a uma bolsa Guggenheim, interessou-se pelo "trautonium" (instrumento eletrônico criado à época pelo cientista alemão F. Trautwein) e teve a ousadia de discutir com Alban Berg e dizer-lhe que a música de Schoenberg até a op. 25 lhe agradava mais do que a posterior (um ponto de vista que seria defendido por Pierre Boulez, 20 anos mais tarde).
A obra de Crawford está, quase toda, reunida em três CDs saídos nesta década. Coincidentes em algumas escolhas, eles acabam por se completar uns aos outros. Em todos eles, como um signo da ressurreição criativa, comparece a "Suíte para Quinteto de Sopro", de 1952, que sinaliza a retomada da fase ultramodernista pela compositora. O primeiro CD, editado pela CRI (Composers Recordings, Inc), em 1993, é o único que contém os nove "Prelúdios para Piano" e a "Sonata para Violino e Piano", do período de 1924 a 28, peças que documentam a precoce maturidade de Crawford e o seu natural ímpeto rebelionário.
Em 1997, a Deutsche Grammophon lançou um novo CD, que inclui outras importantes composições. Não por acaso está envolvido no projeto o magnífico Schoenberg Ensemble, dirigido por Reinbert de Lleuw, aqui como pianista. Este ano, um disco alemão do selo CPO veio completar o painel musical das obras de Ruth Crawford. O CD da Deutsch Grammophon traz, entre outras coisas, a primeira obra de Crawford para mais de dois instrumentos, a já notável "Music for Small Orchestra" (1926), que começa como "música noturna", à maneira de "Central Park in the Dark", de Charles Ives, para se abrir num emaranhado de linhas independentes de dez instrumentos em camadas adensantes de ritmos e harmonias díspares; traz também "Three Chants" (1930), para coro feminino e uma silabação inventada, evocativa dos cânticos monásticos tibetanos, e aí estão algumas das mais belas miniaturas corais da música moderna, dignas de figurar ao lado do coro a capela "Entflieht auf leichten Kähnen", op. 1, de Webern, ou da cantata "Zvezdoliki"/"Le Roi des Étoiles", de Stravinski; segundo Judith Tick, tais peças foram influenciadas pela audição da música de Carrillo, que parecera a Ruth Crawford "extremamente oriental, hindu como efeito"; a última delas ("To a Kind God"/A um Deus Benigno), a mais ousada, insere um pedal de 12 partes diferentes vozeando a palavra "Om" em diferentes alturas musicais e ritmos irregulares, um "cluster pulsante" (na expressão do musicólogo David Nicholls) que parece antecipar o que faria Scelsi muitos anos depois em "Kom-Om-Pax". O disco inclui ainda aquela que é considerada a obra-prima da compositora, o "Quarteto de Cordas", de 1931, em que ela aprofunda e aperfeiçoa os meandros do "contraponto dissonante". O "Andante" desse quarteto chegou a ser comparado à música de Webern pelo compositor francês Albert Roussel (1869-1937), um dos primeiros a ouvi-lo. Foi, aliás, a única composição de Crawford registrada em disco durante a sua vida (em 1933), por iniciativa de Cowell, que a considerava "talvez a melhor obra já escrita para quarteto neste país", afirmando que ela "ilustrava o uso dos clusters aplicados às cordas". Trata-se, segundo a própria autora, de uma "heterofonia de dinâmicas -uma espécie de contraponto de crescendos e diminuendos" ou, como explica Judith Tick, de um estudo sobre as dinâmicas dissonantes, no qual o fluxo e o refluxo dos crescendos e diminuendos foi cuidadosamente elaborado para permitir a formação de uma melodia a partir dos sons isolados de cada instrumento.
Desenhos de um tapete persa
Mas só a descrição técnica não explica a intensidade emocional e a labiríntica beleza dessas urdiduras de muitas tramas sonoras, que ela comparava aos desenhos complexos de um tapete persa -uma imagem de que Morton Feldman também se apropriaria, muito mais adiante, para a sua composição "Coptic Lights". Ruth destacou, ainda, esse movimento lento do seu "Quarteto" com um esplêndido arranjo para orquestra de cordas, em 1938 (também presente no CD da Grammophon).
O último CD complementa relevantemente os anteriores pois exibe, ademais do "Quarteto", as duas "Suítes", nº 1 e nº 2, em que o piano conflita com os instrumentos de sopro e as cordas com toda a exuberância das dissonâncias crawfordianas, e as quatro "Suítes Diafônicas", de linguagem mais austera, louváveis, nas palavras de Seeger, pela "clean-ness and lean-ness" (clareza e magreza), mas que surpreendem sempre, como no espiralado "perpetuum mobile" que anima o terceiro movimento da "Diafônica nº 1", para flauta e oboé. Composições epigramáticas, dos anos 1927 a 1930, em que dominam os contrastes tímbricos, os saltos melódicos ferindo os registros altos, os "ostinati" rítmicos, as síncopes de derivância jazzística e até algumas ousadas polimetrias -uma angulosidade de estruturas e um anti-sentimentalismo conceitual que remetem, hoje, inevitavelmente, à atualíssima obra de Ustvólskaia, a "dama do martelo" russa. Como se já não bastassem as semelhanças, em "Prayers of Steel" (Orações de Aço) -uma das três canções sobre poemas de Carl Sandburg incluídas no CD da Deutsche Grammophon, tida como "a mais heterofônica" das composições de Crawford- piano e percussão martelam em ritmos divergentes ao som de "Lay me on an anvil, God/ Beat me and hammer me into a crowbar" (Põe-me numa bigorna, Deus/ Bate-me e martela-me numa alavanca), uma irada invocação que Ustvólskaya assinaria. Tanto a introdução da "Música para Pequena Orquestra" como os primeiros movimentos das "Suítes" 1 e 2 guardam ainda soturnas ressonâncias scriabinianas, logo contrastadas por cacofonias estridentes. O "adágio religioso", introdutório da impressionante "Suíte nº 1 para Piano e Instrumentos de Sopro", de 1927, com seus timbres sombrios puxados pela trompa e os sopros mais graves, me fez lembrar também outra belíssima obra da mesma época, "Angels", para seis trumpetes, de Carl Ruggles (1876-1971), um compositor que exerceu saudável influência sobre Ruth e que, junto com Charles Ives, deu à música americana o primeiro impulso para a modernidade. Essa suíte, assim como a "Música para Pequena Orquestra", nunca foi executada durante a vida da compositora. Dos microtonalistas sistemáticos, talvez o mais conhecido (embora pouco mencionado entre nós) seja o americano Harry Partch (1901-1976), do qual já há numerosos CDs e que, como Smetak, criou uma diversificada família de instrumentos para tocar a sua escala de 43 sons. É mais um experimentalista radical. Como Carrillo, Cowell, Cage ou Nancarrow, Partch tem a característica de ser também um inventor, no sentido literal da palavra: inventa ou transforma aparatos musicais para executar composições que são arte e artefato; além de música, invenção e além de invenção, inventos. Nessa linha, os europeus, quando inventam, tendem ainda a respeitar os instrumentos tradicionais: são inventores de aparelhos independentes: Theremin, Ondas Martenot, Trautonium. Os inventores das Américas desrespeitam selvagemente os instrumentos da tradição: metem os dedos nas cordas do piano ou lhes interpõem parafusos e roscas para despianizá-lo. Cowell. Cage. Desvirtuam as pianolas e as enlouquecem com dispositivos de aceleração e perfuração para abismar-nos em trajetórias vertiginosas e cânones polimétricos nunca antes ouvidos. Nancarrow. Ou, como Partch (e Smetak, entre nós), fazem-se "luthiers" autodidatas para criarem bricolagens apropriadas para suas escalas microtonais. Claro que isso é uma generalização relativa, contraditada aqui e ali por algumas exceções: o próprio Cowell colaborou com Theremin na construção de Rhytmicon, aparato que lhe permitia tocar 16 ritmos diferentes ao mesmo tempo. E, mais recentemente, o romeno Radulescu pôs o piano de cabeça para baixo, isto é, na vertical, para transformá-lo num instrumento de arco, capaz de inauditas ressonâncias: o seu "sound icon". O canadense Henry Brant, nascido em 1913 e ainda vivo, cria formações difíceis de imaginar pela aglomeração inusitada de instrumentos e vozes e, além disso, pelo seu agrupamento em pontos diferentes e distantes no ambiente de concerto com vistas à concepção que ele tem de "música espacial", da qual é um dos precursores. Suas especulações estereofônicas nessa área anteciparam mesmo as dos colegas europeus, Stockhausen, Nono, Boulez. Diferentemente deles, porém, inspirado nas intuições do seu mestre Charles Ives (lembrar "The Unanswered Question", que separa à distância o solista e dois grupos sonoros), Brant aparta drasticamente os grupos de executantes uns dos outros sem estabelecer estrita coordenação entre eles, tendendo antes a suscitar propositais entrechoques de timbres e linguagens e desencontros de tonalidades, ritmos e andamentos, de forma a provocar novas experiências perceptivas a partir da defasagem e da simultaneidade sonoras, como, aliás sucede com o "musicirco" de algumas peças de Cage.

Parafernália circense
Dois CDs importantes saíram nesta década: o primeiro do selo americano Phoenix, de 1995, contendo duas peças longas, "Kingdom Come" e "Machinations". As notas do encarte não informam as datas das obras, registrando apenas que as primeiras performances de "Kingdom Come" ocorreram em 1970. Nessa composição, Brant espacializa confrontos "massivos" entre uma orquestra dominada por metais estridentes e uma parafernália circense (a que não faltam buzinas, campainhas, assobios, sirenes e compressores de ar, além de uma soprano caricatural, uma "valquíria psicótica", segundo o compositor). Já "Machinations" pega mais leve: um torneio timbrístico de bizarra formação no qual tímpanos, sinos, xilofone, "glockenspiel", órgão, flauta em mi bemol, ocarina dupla, "flageolet" duplo e harpa se interfluem em arremetidas deslizantes de glissandos, trinos e gorjeios que acabam por se abismar uns nos outros.
Nessa composição provocativa, matizada como a precedente de um humor corrosivo, todos os instrumentos foram tocados por Brant, que os gravou separadamente, sem prévia notação musical, segundo um esquema genérico, e os reuniu depois em estúdio, aplicando velocidades variáveis a algumas texturas. Para Brant, quantidade e caos são espaços conviviais -"o ouvido nunca diz: eu me recuso a ouvir", proclama ele.
O disco "Henry Brant" (1999), contendo "Orbits", "Western Springs" e "Hieroglyphics 3", que eu importara, me chegou às mãos no dia 11 de setembro, sem que eu me desse conta de que era a semana do aniversário do compositor (87 anos no dia 15 de setembro). Fui lembrado disso por um coincidente folheto do Centro Musical Ijbreaker, de Amsterdã, que o homenageou durante a semana com um concerto, ao passo que, no próprio dia 15, o Concertgebouw lhe abriria as portas para que fosse apresentada a sua transcrição sinfônica da "Concord Sonata", de Ives. O próprio Brant regeu o concerto. Nesse mesmo dia fui reouvir as suas "Orbits", para 80 trombones, órgão, sopranino e coro. Olhando pela vidraça da minha sala de som, reparei que no céu espoucavam relâmpagos secos, prenunciando chuva. E de repente me pareceu que as rajadas de trombones e o serpentear dos vocalises atravessados pelos arrancos de um órgão estilhaçado eram tangidos por aqueles clarões intermitentes. Nenhuma chuva. O céu tremia. E eu com ele. Mas de um tremor de emoção, como o que Cage disse ter sentido depois de ouvir Maria Freund, aos 74 anos, interpretar o "Pierrot Lunar", de Schoenberg, no Festival de Música Dodecafônica, em Milão, 1949.
Uma experiência impressionante. "Orbits", ao que tudo indica, só foi executada uma única vez, dada a inviabilidade de reunir o espantoso número de trombones requerido. O que ouvimos no disco é a masterização digital da gravação original feita na Catedral de Santa Maria, de San Francisco, em 1979, lançada em vinil em 1980. Das duas outras peças que compõem o CD, também masterizadas para o relançamento, a mais antiga, "Hieroglyphics 3", criação de 1958, gravada em 1970, foi editada pela primeira vez num LP de 1971. "Western Springs", a mais recente, de formação complexa, como "Orbits", gravada no auditório da Universidade da Califórnia, em 1984, surgiu em disco no ano seguinte. Todas essas composições foram registradas pela CRI. "Hieroglyphics 3", para viola solo, mezzo-soprano, órgão (tocado sempre pelo próprio Brant), vibrafone, piano, cravo, tímpanos e sinos, é uma das primeiras experiências de música espacial do compositor: o solista de viola toca a partir de três posições diferentes numa sala escura, acompanhado pelos outros instrumentos à distância e sem nenhuma coordenação rítmica com a viola.
Voz e órgão executam improvisações dentro de determinados parâmetros, mas também em ritmos e tonalidades independentes. Em "Western Springs", uma composição criada 26 anos depois, a espacialização se amplia radicalmente. Duas orquestras, dois coros mistos de 50 executantes cada um, dois combos de jazz são convocados, reunindo 200 músicos. Colocados em pontos diferentes, esses grupos desafiam a nossa coordenação auditiva a partir de múltiplas fontes sonoras e linguagens musicais diversificadas. A sobreposição de certas inflexões corais lembra às vezes o final dos "Choros" nº 10 de Villa-Lobos, se o imaginarmos elevado à terceira potência -o choro que Villa poderia ter feito, nos anos seguintes, se radicalizasse suas pesquisas sonoras e não tivesse aderido ao retorno a Bach comandado por Stravinski. Tudo o que ouvimos de Brant soa estimulante, embora nenhuma das composições me tenha emocionado tanto quanto "Orbits".
A história da música do século que termina ainda não está escrita completamente. É bom que haja ainda muitas velhas coisas novas a descobrir ou redescobrir. Mas fica a pergunta. Como pretender ter vivenciado a música "do nosso tempo" se ainda não se conhece por inteiro e nem sequer se assimilou o que se conhece disso que já seria música do passado, mas que pelo visto ainda será por muito tempo "música contemporânea"?


Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta, autor de "Expoemas" e "Despoesia", entre outros.


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