São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Estupidez e infâmia

Um aforismo de Mark Twain se aplica bem ao caso dos "Protocolos dos Sábios do Sião": "Não é difícil matar a verdade. Mas a mentira bem enunciada é imortal"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há um título que marca e gruda. Parece conter a chave secreta de conhecimentos últimos e essenciais: "Os Protocolos dos Sábios do Sião". Título muito bem achado para um golpe espertíssimo.
Trata-se de um texto falso que acusa os judeus de se unirem num pretenso complô para dominar o mundo. Da Rússia czarista até hoje, passando por "Minha Luta", de Hitler, "Os Protocolos" continuam como forte instrumento de propaganda anti-semita.
Foram desmascarados desde que surgiram, e vários episódios, ao longo do século 20, trouxeram provas sucessivas de seu caráter aberrante, absurdo e apócrifo. De nada adiantou. Um aforismo de Mark Twain se aplica bem ao caso: "Não é difícil matar a verdade. Mas a mentira bem enunciada é imortal".

Anteface
Will Eisner foi um dos altos criadores do século 20. O requinte de seu desenho chega ao limite da zombaria sobre si mesmo. Tem aristocrática elegância. Sabe temperar, com o humor, a dose de melancolia ou de drama.
Eisner trabalha sempre em fronteiras finas e difíceis. Constrói suas histórias com flashbacks e piruetas narrativas desconcertantes. Criou Spirit, detetive muito singular. Spirit se oculta num cemitério.
Usa máscara que lhe cobre o entorno dos olhos. Tem alguma coisa de Sam Spade [detetive que protagoniza "O Falcão Maltês", de Dashiell Hammett]. Defronta-se com mulheres fatais, que lembram Veronica Lake, Rita Hayworth ou Alida Valli, em "Agonia de Amor" [1947, filme de Hitchcock].
Eisner, morto em 2005 pouco antes de completar 88 anos, era judeu. Voltou-se, em suas últimas décadas, para a condição judaica. Retomou o vilão de "Oliver Twist" [de Charles Dickens] em "Fagin, o Judeu" (Cia. das Letras). Afastou-se ali de qualquer simplificação para mergulhar no caráter sórdido criado por Dickens, tentando compreender como tal caricatura foi possível.
O gênio de Eisner nunca abandonou contradições e complexidades: ao contrário, elas lhe servem de instrumento para interrogar e descobrir. Assim é também em "Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço" (Brasiliense), retrato vivido de uma comunidade judaica pobre em Nova York. Eisner inventou a "graphic novel", o romance gráfico, no qual o texto escrito tem uma presença forte, como um poderoso narrador em voz "off".

Anauê
O último livro de Eisner chama-se "O Complô". Acabou de ser publicado no Brasil pela Companhia das Letras. É fruto de longa obsessão: "Um assunto de enorme preocupação pessoal", escreve ele no prefácio. Sua questão é: já que os "Protocolos" são falsos, como então tanta gente continua acreditando neles?
Eisner reconstitui a história com documentos. Entre outros, reproduz a capa da primeira edição no Brasil, em 1936, cuja tradução foi obra de Gustavo Barroso, então intelectual prestigioso, de âmbito integralista, presidente da Academia Brasileira de Letras.
Ocorre, porém, que a fabricação dos "Protocolos" foi complicada. Envolveu plágios, em particular de um panfleto francês bem anterior, em nada antijudaico, escrito para atacar o imperador Napoleão 3º.
O plagiário que produziu os "Protocolos" era russo. Redigiu-os em Paris. Numa simbiose inatacável com a verdade, Eisner respeita as ramificações sinuosas dos acontecimentos com uma ansiedade demonstrativa que confina ao desespero. Obriga o leitor a seguir os fios dos nomes exóticos, da rede geográfica.
Mas é inútil demonstrar, muito menos com minúcias: os "Protocolos" pertencem ao universo do ódio estúpido, não aos da razão e dos argumentos.


jorgecoli@uol.com.br

Texto Anterior: Os Dez +
Próximo Texto: Filmoteca Básica: O Povo Brasileiro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.