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Ponto de fuga
Estupidez e infâmia
Um aforismo de Mark Twain se aplica bem ao caso dos "Protocolos dos Sábios
do Sião": "Não é difícil matar a verdade. Mas a mentira bem enunciada é imortal"
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há um título que marca e
gruda. Parece conter a
chave secreta de conhecimentos últimos e essenciais:
"Os Protocolos dos Sábios do
Sião". Título muito bem achado para um golpe espertíssimo.
Trata-se de um texto falso
que acusa os judeus de se unirem num pretenso complô para dominar o mundo. Da Rússia czarista até hoje, passando
por "Minha Luta", de Hitler,
"Os Protocolos" continuam como forte instrumento de propaganda anti-semita.
Foram desmascarados desde
que surgiram, e vários episódios, ao longo do século 20,
trouxeram provas sucessivas
de seu caráter aberrante, absurdo e apócrifo. De nada
adiantou. Um aforismo de
Mark Twain se aplica bem ao
caso: "Não é difícil matar a verdade. Mas a mentira bem
enunciada é imortal".
Anteface
Will Eisner foi um dos altos
criadores do século 20. O requinte de seu desenho chega ao
limite da zombaria sobre si
mesmo. Tem aristocrática elegância. Sabe temperar, com o
humor, a dose de melancolia ou
de drama.
Eisner trabalha sempre em
fronteiras finas e difíceis. Constrói suas histórias com flashbacks e piruetas narrativas desconcertantes. Criou Spirit, detetive muito singular. Spirit se
oculta num cemitério.
Usa máscara que lhe cobre o
entorno dos olhos. Tem alguma
coisa de Sam Spade [detetive
que protagoniza "O Falcão
Maltês", de Dashiell Hammett]. Defronta-se com mulheres fatais, que lembram Veronica Lake, Rita Hayworth ou Alida Valli, em "Agonia de Amor"
[1947, filme de Hitchcock].
Eisner, morto em 2005 pouco antes de completar 88 anos,
era judeu. Voltou-se, em suas
últimas décadas, para a condição judaica. Retomou o vilão de
"Oliver Twist" [de Charles Dickens] em "Fagin, o Judeu" (Cia.
das Letras). Afastou-se ali de
qualquer simplificação para
mergulhar no caráter sórdido
criado por Dickens, tentando
compreender como tal caricatura foi possível.
O gênio de Eisner nunca
abandonou contradições e
complexidades: ao contrário,
elas lhe servem de instrumento
para interrogar e descobrir. Assim é também em "Um Contrato com Deus e Outras Histórias
de Cortiço" (Brasiliense), retrato vivido de uma comunidade judaica pobre em Nova
York. Eisner inventou a "graphic novel", o romance gráfico,
no qual o texto escrito tem uma
presença forte, como um poderoso narrador em voz "off".
Anauê
O último livro de Eisner chama-se "O Complô". Acabou de
ser publicado no Brasil pela
Companhia das Letras. É fruto
de longa obsessão: "Um assunto de enorme preocupação pessoal", escreve ele no prefácio.
Sua questão é: já que os "Protocolos" são falsos, como então
tanta gente continua acreditando neles?
Eisner reconstitui a história
com documentos. Entre outros, reproduz a capa da primeira edição no Brasil, em
1936, cuja tradução foi obra de
Gustavo Barroso, então intelectual prestigioso, de âmbito
integralista, presidente da Academia Brasileira de Letras.
Ocorre, porém, que a fabricação dos "Protocolos" foi complicada. Envolveu plágios, em
particular de um panfleto francês bem anterior, em nada antijudaico, escrito para atacar o
imperador Napoleão 3º.
O plagiário que produziu os
"Protocolos" era russo. Redigiu-os em Paris. Numa simbiose inatacável com a verdade,
Eisner respeita as ramificações
sinuosas dos acontecimentos
com uma ansiedade demonstrativa que confina ao desespero. Obriga o leitor a seguir os
fios dos nomes exóticos, da rede geográfica.
Mas é inútil demonstrar,
muito menos com minúcias: os
"Protocolos" pertencem ao
universo do ódio estúpido, não
aos da razão e dos argumentos.
jorgecoli@uol.com.br
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