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+ memória
Morto em dezembro, cientista social deixou pronto o "Dicionário da Escravidão Negra
no Brasil"
O ÚLTIMO LEGADO DE CLÓVIS MOURA
João Baptista Borges Pereira
especial para a Folha
Clóvis Moura era uma personalidade transitiva, se é que se pode
usar tal expressão para definir a
sua admirável capacidade de ser,
simultaneamente, sem embaralhar os limites, branco e negro, militante e intelectual, historiador e sociólogo, jornalista e
cientista social.
Do ponto de vista racial, ele era mestiço, resultado de duas linhagens: uma
nórdica, outra afro. Embora seus traços
revelassem muito mais a sua ascendência branca, ele preferiu se assumir como
negro. E foi como tal que participou ativamente de todas as iniciativas que buscavam alterar as condições desfavoráveis
do negro na sociedade brasileira, entre as
quais ganha relevo o Movimento Negro
Unificado (MNU), no início da última
década de 80.
Embora autoconfessadamente negro e
militante, nunca permitiu que a sua reflexão intelectual fosse, de alguma forma,
contaminada por tais características. Essa foi uma das lutas admiráveis de Clóvis
Moura: a luta pela objetividade científica
e a luta para não trair, por assim dizer,
seus compromissos políticos com a gente que ele elegera como sendo a sua gente. Sua derradeira contribuição foi o "Dicionário da Escravidão Negra no Brasil",
a ser brevemente publicado pela Edusp,
patrocinado pela comissão permanente
de políticas públicas para a população
negra (USP).
Clóvis Moura, como que prevendo a
sua morte, que ocorreria às vésperas do
Natal, solicitou-me, há alguns meses, que
pelo menos lhe desse a conhecer o prefácio que a seu pedido eu fizera e que transcrevo a seguir:
"Clóvis Moura é um cientista social
brilhante e disciplinado que sempre correu por fora da academia solto, livre, nas
franjas da interdisciplinaridade, ainda
que a academia brasileira tenha constantemente solicitado a sua presença em
eventos, conferências, seminários e, especialmente, em exames de teses na qualidade de professor "notório saber", título
que há anos lhe foi outorgado pela Universidade de São Paulo.
E, assim, trabalhando nessa nesga não-institucional, onde as costumeiras dificuldades de pesquisador aumentam,
consideravelmente, Clóvis Moura foi
construindo, ele com ele, nos recantos de
sua rica biblioteca, vasta e notável obra
histórica e sociológica sobre a saga heróica do negro-escravo e do negro-quase-cidadão na sociedade nacional. Todos os
estudiosos da questão racial brasileira estão familiarizados com seus livros, cujos
títulos constam obrigatoriamente das bibliografias dos estudos que vão surgindo, por se constituírem em referências
indispensáveis às reflexões científicas sobre essa temática a um só tempo tão
apaixonada e tão apaixonante.
Como que coroando essa extensa trajetória intelectual, o historiador Clóvis
Moura presenteia-nos, agora, com o seu
"Dicionário da Escravidão Negra no Brasil", elaborado, solitariamente, ao longo
de 30 anos. Casualmente esse estudo parece vir compor uma tendência intelectual-editorial que se observa atualmente
entre nós, de se publicarem dicionários
sobre aspectos ou temas específicos da
vida nacional. Tais são os dicionários de
sobrenomes, gêneros, fotografias, filosofia, fatos e personagens de períodos históricos brasileiros etc. Embora expressando o momento atual de preocupações por essa espécie de literatura, esses
dicionários transcendem as históricas
questões de língua para se constituírem
em inventários de conhecimentos críticos a respeito de temas negligenciados
pelos registros de uma historiografia linear, ortodoxa.
O dicionário elaborado por Clóvis
Moura desenha-se, admiravelmente,
nesse painel. O fôlego de historiador, já
testado em seus numerosos livros, está
presente nas centenas de verbetes (alguns são verdadeiras teses) que não apenas sistematizam e complementam o
que se sabe sobre o regime escravocrata,
mas trazem informações que irão permitir ao leitor formar uma opinião mais
nuançada a respeito desse sistema de exclusão humana, social e cultural que dominou, soberano, durante quase quatro
séculos da história brasileira.
O autor trabalha com dois mundos que
se complementam, embora quase sempre se distanciem num jogo dialético inerente ao próprio sistema. De um lado, o
Brasil escravocrata, com seu arcabouço
jurídico-legal a legitimar o escravismo e
as suas passagens históricas simpáticas e
não-simpáticas ao regime, com seus atores sociais mais expressivos e seu esquema de poder senhorial hegemônico,
quase sempre sinônimo de mundos dos
brancos. De outro lado, o Brasil escravizado, constituído de negros anônimos,
que constroem a nação com seus braços,
lutam, a seu modo, pela sua emancipação e pela dissolução do regime servil,
enquanto preservam, criam ou recriam
os elementos culturais que iriam mais
tarde, séculos depois, dar a marca do que
viria a ser a chamada e aclamada cultura
brasileira.
Jornada difícil para autores que, como
Clóvis Moura, se propõem a resgatar e
dar visibilidade a fatores e atores sociais
fugidios, apagados que foram das cenas
históricas privilegiadas pela historiografia convencional.
É como se Clóvis Moura trabalhasse
com o direito e o avesso da história para,
a partir daí, dar ao leitor uma visão mais
orgânica e mais crítica desse cruel período da sociedade brasileira, cujas marcas
se prolongam até os dias atuais".
João Baptista Borges Pereira é antropólogo,
professor emérito da USP e professor do curso de
pós-graduação em ciências da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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