São Paulo, domingo, 18 de janeiro de 2009

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+Sociedade

A democracia na caverna


Clássico sobre o papel da comunicação expõe visão desencantada sobre o acesso precário e enganoso de cidadãos aos fatos nas sociedades modernas

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

A primeira edição de "Opinião Pública", um clássico do pensamento político finalmente publicado no Brasil, data do ano de 1922. Sem fazer grandes referências ao rádio, e nem sequer cogitando da invenção da TV, o jornalista Walter Lippmann (1889-1974) faz uma análise pioneira, e em boa parte ainda atual, do poder da propaganda e das ideias preconcebidas sobre a mentalidade popular.
O acesso do ser humano à realidade dos fatos, observa Lippmann, tende a ser tão precário e enganoso quanto dizia o velho mito platônico da caverna. Aliás, o trecho do livro 7 da "República", de Platão, em que se descreve a vida de habitantes isolados do mundo exterior, condenados a ver apenas as sombras projetadas nas paredes da gruta a que foram confinados desde o nascimento, constitui a epígrafe do livro de Lippmann.
Não estamos, entretanto, diante de um pretensioso tratado a respeito dos limites do conhecimento humano. Lippmann tem uma visão muito pragmática e organizada dos problemas que aborda e, na maior parte do tempo, recorre a exemplos concretos, tirados de situações históricas recentes, para expor seus pontos de vista.
Lippmann escrevia sob o impacto dos dois grandes eventos que marcaram o início do século 20 -a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Rus- sa-, e um dos méritos mais notáveis de sua estratégia de exposição está na capacidade de articular rápidas e pitorescas menções aos dilemas políticos de seu tempo ao quadro de uma exposição teórica mais ampla.
A ambiguidade dos tratados militares, a exploração sentimental de meias verdades a respeito dos horrores da guerra, os boatos sistematicamente espalhados em torno das ações dos bolcheviques, para nada dizer da censura permanente e da propaganda escancarada de que se valiam as grandes potências europeias nos anos de 1914-18, são suficientes para Lippmann desenvolver, em capítulos curtos e convincentes, sua desencantada visão a respeito da virtual impotência do cidadão comum para decidir, nas modernas democracias, qualquer coisa de relevante com um mínimo de conhecimento de causa.

Exposição clara
Para o leitor de hoje, empapado de relativismo e submetido, há muitas décadas, a um conjunto de técnicas de manipulação incomparavelmente mais sofisticadas, este livro dificilmente traz revelações.
Sua utilidade não será pequena, contudo, numa classe de primeiro ano de uma faculdade de comunicação. Tem o mérito da exposição clara, muitas vezes bem-humorada, e sobretudo livre do jargão e do tom abstrato que tornam, por exemplo, quase ilegível um outro clássico do gênero, "A Construção Social da Realidade", escrito por Peter Berger e Thomas Luckmann, na década de 60.
É com vistas a esse público, provavelmente, que a editora Vozes escolheu "Opinião Pública" para inaugurar uma nova coleção, destinada aos clássicos da comunicação social.
Dois aspectos diminuem o alcance dessa iniciativa. O primeiro é que a acerba análise que Lippmann empreende da prática jornalística de seu tempo se inscreve, na verdade, numa crítica mais ampla da própria ideia de democracia, tal como defendida pelos fundadores do sistema político americano.
Um teórico como Thomas Jefferson, por exemplo, acreditava no autogoverno das pequenas comunidades de proprietários rurais. Como transferir essa concepção provinciana aos desafios (e à imensa quantidade de informação) exigidos pelo papel que os Estados Unidos adquiriam na política internacional do século 20? É no contexto dessa pergunta que ganha força a crítica de Lippmann ao jornalismo americano da década de 1920.
Do mesmo modo, parece hoje um pouco anódina sua confiança em instituições especializadas de pesquisa social e de estatística, único antídoto, é verdade, de que dispomos para a debilidade de nossas fontes de acesso direto ao conhecimento da sociedade.
O segundo aspecto a prejudicar a utilização do livro em salas de aula é a espantosa inépcia da tradução. Erros clamorosos pululam a cada página, sem contar os problemas de concordância verbal e a inoportunidade das notas de rodapé. "Missa" vira "massa", "atribuído" se torna "apontado", a batalha do Marne, na França, é transposta para o Maine, na Nova Inglaterra, e assim por diante.
A lucidez de Lippmann sobrevive, apesar de tudo, a tão inglórias batalhas contra o tempo e a tradução. Mais de 80 anos depois de escrito, seu livro ainda merece ser discutido, e não deixa de ser uma introdução equilibrada a um campo -o da crítica aos meios de comunicação- em que formas muito mais exaltadas e mesmo obscurantistas de relativismo obtêm imediata aceitação.


OPINIÃO PÚBLICA
Autor:
Walter Lippmann
Tradução: Jacques A. Wainberg
Editora: Vozes (tel. 0/xx/24/ 2233-9000)
Quanto: R$ 58,30 (352 págs.)



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