São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007

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Descartes, o megalomaníaco

Duas biografias inglesas repensam o legado do filósofo francês, formulador do "penso, logo existo"

JEAN BIRBAUM

Duas novas biografias inglesas traçam um retrato no mínimo heterodoxo do "pai da filosofia moderna". "Descartes - A Biography" (Cambridge University Press, 2006), de Desmond Clarke, eminente cartesiano da Universidade de Cork, na Irlanda, se baseia na volumosa correspondência do filósofo para reconstruir suas viagens intempestivas, sua trajetória intelectual e, num veio bastante divertido, sua personalidade surpreendente. Ficamos sabendo que Descartes (1596-1650) continuou virgem até os 40 anos, idade na qual teve com uma criada holandesa uma filha que morreu de escarlatina cinco anos mais tarde.
Rabugento, sensível ao extremo, paranóico, manipulador e, sobretudo, megalomaníaco, Descartes sonhava não em figurar ao lado de Aristóteles na história da filosofia, mas em suplantá-lo, simplesmente. E, acrescenta Clarke, embora ele próprio tivesse lido muito poucos livros, Descartes nutria um desprezo absoluto por seus contemporâneos. Para ele, o trabalho de Pierre de Fermat era "uma merda" e o de Hobbes, "lamentável".
Mas eis a situação constrangedora: Descartes não teria gostado se soubesse qual seria seu legado final para a história -um "cogito ergo sum" (penso, logo existo) que teria sido a menor de suas preocupações. Segundo Clarke, Descartes foi sobretudo um dos fundadores da revolução científica, apaixonado por cálculos, experimentos, dissecações e inventor da geometria analítica.

Corpo e espírito
Ao longo dos séculos, seus trabalhos científicos foram superados e acabaram eclipsados por sua metafísica -sendo que esta foi desenvolvida tardiamente, à guisa de introdução ao "método" e de escudo conceitual contra a igreja. Assim, diz Clarke, apesar de católico, Descartes provavelmente não foi o dualista que se acredita que tenha sido, e o dualismo cartesiano teria sido provavelmente uma teoria provisória formulada para fundamentar a tese da imortalidade da alma sob um céu perigosamente copernicano.
Descartes não conseguiu explicar a idéia a Elisabete da Boêmia, que o questionava incessantemente sobre o tema, mas teria tido a certeza de uma "união próxima e íntima entre nosso espírito e nosso corpo". A segunda biografia, "Descartes - The Life and Times of a Genius" (Descartes - Vida e Época de um Gênio), do filósofo inglês A.C. Grayling (Walker & Company, 2006), sugere que Descartes foi um espião a serviço dos jesuítas durante a Guerra dos 30 Anos.
Isso explicaria, em parte, sua vida errante -ele teve nada menos que 24 endereços em 20 anos- e sua fonte de renda. Mas não existe nenhuma prova tangível disso.
Em todo caso, o fim de Descartes foi tão curioso quanto sua vida. Em 1650, tendo manobrado para ir à Suécia ensinar filosofia à rainha Cristina, ele foi obrigado a comparecer à biblioteca da monarca todas as manhãs às 5h, de cabeça descoberta, no inverno mais glacial que o país tivera em 60 anos. Ele morreu de pneumonia um mês mais tarde.
Hoje, o corpo de Descartes descansa num mosteiro beneditino em Saint-Germain-des-Près. Mas o dedo indicador de sua mão direita foi conservado pelo embaixador da França na Suécia, e sua cabeça foi misteriosamente retirada por um capitão da guarda sueca.


Este texto foi publicado no "Le Monde". Tradução de Clara Allain.


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