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Descartes, o megalomaníaco
Duas biografias inglesas repensam o legado do
filósofo francês, formulador
do "penso, logo existo"
JEAN BIRBAUM
Duas novas biografias inglesas traçam
um retrato no mínimo heterodoxo
do "pai da filosofia
moderna".
"Descartes - A Biography"
(Cambridge University Press,
2006), de Desmond Clarke,
eminente cartesiano da Universidade de Cork, na Irlanda,
se baseia na volumosa correspondência do filósofo para reconstruir suas viagens intempestivas, sua trajetória intelectual e, num veio bastante divertido, sua personalidade surpreendente.
Ficamos sabendo que Descartes (1596-1650) continuou
virgem até os 40 anos, idade na
qual teve com uma criada holandesa uma filha que morreu
de escarlatina cinco anos mais
tarde.
Rabugento, sensível ao extremo, paranóico, manipulador e, sobretudo, megalomaníaco, Descartes sonhava não
em figurar ao lado de Aristóteles na história da filosofia, mas
em suplantá-lo, simplesmente.
E, acrescenta Clarke, embora
ele próprio tivesse lido muito
poucos livros, Descartes nutria
um desprezo absoluto por seus
contemporâneos. Para ele, o
trabalho de Pierre de Fermat
era "uma merda" e o de Hobbes, "lamentável".
Mas eis a situação constrangedora: Descartes não teria
gostado se soubesse qual seria
seu legado final para a história
-um "cogito ergo sum" (penso,
logo existo) que teria sido a menor de suas preocupações.
Segundo Clarke, Descartes
foi sobretudo um dos fundadores da revolução científica,
apaixonado por cálculos, experimentos, dissecações e inventor da geometria analítica.
Corpo e espírito
Ao longo dos séculos, seus
trabalhos científicos foram superados e acabaram eclipsados
por sua metafísica -sendo que
esta foi desenvolvida tardiamente, à guisa de introdução ao
"método" e de escudo conceitual contra a igreja.
Assim, diz Clarke, apesar de
católico, Descartes provavelmente não foi o dualista que se
acredita que tenha sido, e o
dualismo cartesiano teria sido
provavelmente uma teoria provisória formulada para fundamentar a tese da imortalidade
da alma sob um céu perigosamente copernicano.
Descartes não conseguiu explicar a idéia a Elisabete da
Boêmia, que o questionava incessantemente sobre o tema,
mas teria tido a certeza de uma
"união próxima e íntima entre
nosso espírito e nosso corpo".
A segunda biografia, "Descartes - The Life and Times of a
Genius" (Descartes - Vida e
Época de um Gênio), do filósofo inglês A.C. Grayling (Walker
& Company, 2006), sugere que
Descartes foi um espião a serviço dos jesuítas durante a Guerra dos 30 Anos.
Isso explicaria, em parte, sua
vida errante -ele teve nada
menos que 24 endereços em 20
anos- e sua fonte de renda.
Mas não existe nenhuma prova
tangível disso.
Em todo caso, o fim de Descartes foi tão curioso quanto
sua vida. Em 1650, tendo manobrado para ir à Suécia ensinar filosofia à rainha Cristina,
ele foi obrigado a comparecer à
biblioteca da monarca todas as
manhãs às 5h, de cabeça descoberta, no inverno mais glacial
que o país tivera em 60 anos.
Ele morreu de pneumonia um
mês mais tarde.
Hoje, o corpo de Descartes
descansa num mosteiro beneditino em Saint-Germain-des-Près. Mas o dedo indicador de
sua mão direita foi conservado
pelo embaixador da França na
Suécia, e sua cabeça foi misteriosamente retirada por um capitão da guarda sueca.
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
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