São Paulo, domingo, 18 de março de 2001

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+ brasil 501 d.C.

Ciência política e revolução

Bento Prado Jr.

"Je ne puis croire qu'on n'aperçoive nettement en moi un libéral d'une nouvelle espèce." (1)
Alexis de Tocqueville



Com esta obra ("Dos Infortúnios da Igualdade ao Gozo da Liberdade -Uma Análise do Pensamento Político de Alexis de Tocqueville", que está saindo em abril pela Discurso Editorial), Célia Galvão Quirino reata com a vocação original da cadeira (hoje departamento) de política da antiga Faculdade de Filosofia. Ou seja, com a articulação necessária entre "ciência política" e história do pensamento. Penso, é claro, na linha que conduz da tese de cátedra de Lourival Gomes Machado ("Homem e Sociedade na Teoria Política de Rousseau", Boletim nš 198, Política, nš 2, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP) a este livro que o leitor tem agora entre as mãos. E é bem o interesse e a fecundidade dessa articulação que se torna evidente com a retomada da boa tradição em "Dos Infortúnios da Igualdade ao Gozo da Liberdade". Se a tese de Lourival se encerrava mostrando a utilidade da leitura de Rousseau para uma sociologia que, no presente, parecia se preparar para "sínteses de mais largo âmbito" (op. cit., pág. 135), a tese de Quirino torna patente como as antinomias do pensamento político contemporâneo poderiam receber maior luz graças à reflexão sobre os problemas descobertos (ou criados?) por Alexis de Tocqueville (1805-1859). Com Rousseau e Tocqueville, somos remetidos ao passado ou ao espaço claro do pensamento político clássico, mas, ao mesmo tempo (como com o Montesquieu de Althusser e o Maquiavel de Gramsci e de Lefort), devolvidos à virulência e às névoas conceituais do debate político contemporâneo. Escrita em 1982 (mas preparada no exílio), esta obra parece ter ganho maior atualidade na última década do século 20 e provoca o leitor de hoje de maneira mais viva, talvez, do que poderia fazê-lo para o leitor contemporâneo de sua redação. Enquanto o livro permanecia na gaveta, as transformações do mundo contemporâneo viriam lançar nova luz sobre os temas clássicos ("A Liberdade e a Igualdade são temas fundamentais da ciência política" -tal é a primeira frase da introdução da obra em tela) e dar maior saliência ao interesse vivo e à atualidade desse escrito. Numa palavra, a ação retrospectiva do acontecimento sobre o passado do pensamento acaba por atualizar virtualidades inesperadas: como o da possibilidade de um uso crítico do pensamento de Tocqueville contra o último avatar do próprio liberalismo. Estarei inventando coisas? O que nos revela o livro de Célia Galvão Quirino? Não teria cabimento aqui trocar em miúdos seu conteúdo, antecipando de maneira pobre o que é dito com força pela própria obra. Mas talvez seja oportuno sublinhar por conta e risco exclusivos do prefaciador o que a obra lhe deu a pensar, a contracorrente da ideologia hoje hegemônica, em que se recupera (mesmo nos cimos da filosofia) o progressismo da "Aufklärung" e se decreta a morte das ideologias (na verdade o ocaso da idéia socialista), redourando o brasão do liberalismo. Mas por que a contracorrente? Não é justamente a queda do Muro de Berlim, em 1989, que devolve atualidade a Tocqueville? Já na abertura de seu livro, com efeito, Célia lembra que o aparente desfecho recente do velho combate entre liberalismo e socialismo parece justificar o renascimento do interesse por Tocqueville. Mas logo acrescenta que "essas idéias hoje pregadas como modernas e neoliberais longe estão dos ensinamentos do liberal Tocqueville". O que, de nossa parte, queremos sublinhar são dois pontos essenciais que este livro nos dá a pensar: a originalidade e a profundidade do "liberalismo" de Tocqueville, naquilo que têm de perfeitamente paradoxal e, delas inseparável, o curioso estatuto que atribui à "ciência política" que, como veremos, de algum modo o aproxima, inesperadamente, tanto de Marx como de Proudhon e de Georges Sorel, numa trindade pouco próxima da tradição estritamente liberal. A leitura de Aron Heresia? Último sobressalto de uma esquerda intelectual que, justamente, teria perdido sua hegemonia com o "retorno" de Alexis de Tocqueville, como diria François Bourricaud? Antes de mergulhar em nosso tema, lembremos a frase de Tocqueville: "Je ne puis croire qu'on n'aperçoive pas nettement en moi un libéral d'une nouvelle espèce". Frase que parece indicar que se destaca de uma tradição liberal cega para a "nova ciência política", exigida pelos tempos modernos, e confirmar aqueles que nele vêem um profeta (um crítico avant la lettre?) da idade das massas de estilo americano.
Quanto ao liberalismo de Tocqueville, este livro nos coloca ao abrigo de anacronismos contumazes. Mais do que isso, nos permite reler a obra de Tocqueville à luz da posteridade, de um modo algo diferente daquele proposto de maneira tão fina por Raymond Aron (que, no entanto, está, institucionalmente pelo menos, ligado à origem e à gênese da tese de Célia Quirino).


Sem estar livre dos perigos da igualdade, a tradição da prática da liberdade, desde as origens da história americana, teceu os fios de uma sociabilidade espontaneamente autônoma que previne a separação entre sociedade e poder e, com ela, o advento do despotismo


Como caracterizava Raymond Aron a "atualidade" de Tocqueville em meados dos anos 60? É preciso, aqui, para mostrar aspectos importantes de nosso livro, reproduzir dois parágrafos de "As Etapas do Pensamento Sociológico" (ed. Martins Fontes), de Aron:
"É interessante confrontar essas três visões, de Augusto Comte, de Marx e de Tocqueville. Uma era a visão organizadora daqueles que hoje chamamos de tecnocratas; a outra, a visão apocalíptica daqueles que ontem eram revolucionários; a terceira é a visão pacificada de uma sociedade em que cada um possui algo e onde todos ou quase todos estão interessados na conservação da ordem social. Pessoalmente, penso que, dessas três visões, aquela que se assemelha mais às sociedades européias ocidentais dos anos 60 é a de Tocqueville.
Para ser justo, é preciso acrescentar que a sociedade dos anos 30 tinha tendência a se assemelhar mais à visão de Marx. Assim resta aberta a questão de saber a qual dessas visões se assemelhará a sociedade européia dos anos 90" (op. cit., ed. Gallimard, 1967, pág. 229).
Que não me compreenda mal o leitor: não estou querendo, com essa citação, sugerir que Raymond Aron (ele próprio um pensador liberal-conservador) esteja transformando Tocqueville em ideólogo ou qualificando sua obra como doutrinária -uma doutrina melhor do que o marxismo. Pelo contrário, insiste na "cientificidade" dessa obra, sublinhando no herdeiro de Montesquieu o precursor da melhor sociologia do século 20. Lamenta mesmo o esquecimento a que a sociologia francesa (marcada pela tradição Comte/Durkheim) o relegou, deixando assim de lado suas intuições metodológicas que dele fariam um precursor do melhor Weber, particularmente com a antecipação da descoberta da riqueza heurística dos "tipos ideais".

Sociedade apaziguada O que causa estranheza é a ligação entre Tocqueville e a imagem de uma sociedade apaziguada. Menos de um ano após a publicação do livro de Aron (terceiro trimestre de 67) um sobressalto revelaria um subsolo pouco pacífico da sociedade francesa. De outro lado, o próprio Aron não apresenta a dialética entre igualdade e liberdade como condenada a uma feliz reconciliação. A "resignação" (para usar o vocabulário do próprio Aron) diante da equalização irreversível das condições ou a adesão à democracia não significam que Tocqueville assume o "progressismo" ou o otimismo da filosofia das Luzes e do liberalismo dos séculos 18 e 19.
Invertendo os termos do quadro que Aron traça da trindade teórica do pensamento sociológico do século 19 (Comte/ Marx/ Tocqueville), poderíamos contrapor duas filosofias da história (Comte e Marx) que retomam o otimismo das Luzes, identificando a sociedade industrial como alavanca para a redenção, a um pensamento político que, na análise do presente, não exclui, pelo contrário, a possibilidade do advento da barbárie.
Mas vamos devagar com o andor: catastrofismo tocquevilliano? Não parece o processo irreversível da equalização das condições (Fortuna, Providência Divina ou necessidade) perfeitamente compatível com a liberdade ("Virtù" ou "Grandeur" do cidadão), como demonstra o exemplo da "Democracia na América"? É certo que o aristocrata não é insensível ao modo pelo qual a velha "Grandeur" (isto é, os valores morais e espirituais) sofre com o processo de emburguesamento. Tampouco é cego para a possibilidade do aprofundamento das diferenças sociais numa sociedade industrial ou, pior ainda, a reação revolucionária violenta que, seguindo o declive natural da Providência divina, visaria à extinção da propriedade e resultaria inevitavelmente no despotismo, como nos casos de 1789 e 1848. Mas nem por isso o diagnóstico deixa de ser, de algum modo, otimista.
Como observa Célia Quirino, Tocqueville crê que as eventuais desigualdades ou uma nova aristocracia (a do dinheiro) dificilmente poderiam se firmar e se perenizar, interrompendo o processo igualitário: essas novas e tristes aristocracias seriam essencialmente "mais restritas e menos perigosas" (Cf. pág. 82).
Mas não é bem a alternativa otimismo ou progressismo versus catastrofismo que importa, já que, tanto de um lado como de outro, o que se suprime é a contingência da história e sua radical imprevisibilidade, entendidas como horizontes inultrapassáveis tanto do pensamento como da ação políticas. São exatamente tais traços do pensamento político de Tocqueville que, como vimos, Raymond Aron valoriza contra o "determinismo" ou o "fatalismo" das filosofias da história do marxismo e do positivismo. Mas Aron não sublinha, como seria necessário (ou, pelo menos, possível), a convergência entre o "golpe de vista" crítico de Tocqueville e o de Marx.
Lembro, aqui, o que afirmava eu em prefácio a "O Ressentimento da Dialética" (ed. Paz e Terra), de Paulo Eduardo Arantes, ressaltando a importância de Tocqueville e seu "golpe de vista" na arqueologia da dialética empreendida nesse livro. Mas qual seria o ângulo desse olhar perspícuo? Que lucidez será essa, tão festejada? Não será aquela que visa à história presente na lógica de sua reprodução material. Trata-se de um olhar antes antropológico que econômico, e o que ele dá a ver não é a gênese ou a estrutura do capital, mas a gênese e a estrutura social da alma burguesa. Qual é a lei geral desse processo, como nasce a alma burguesa? Trata-se de um formidável e irreversível processo de privatização da vida social.
É impossível não notar a ambiguidade que impregna a dialética entre igualdade e liberdade no pensamento de Tocqueville, que o coloca a igual distância tanto do "enrichissez-vous" mais ou menos cínico de Guizot quanto do discurso dos socialistas (da perspectiva altiva de Tocqueville: essa ralé intelectualóide herdeira dos filósofos das Luzes, desde sempre cega para a espessura e para a complexidade da história). Dos dois lados do Atlântico, os efeitos da igualdade das condições são ambíguos.
Sem temer, como vimos, o nascimento de uma aristocracia do dinheiro na América, Tocqueville não deixa de sublinhar, se referindo aos Estados Unidos: "Não conheço aliás nenhum país onde o amor pelo dinheiro ocupe maior lugar no coração dos homens e onde se professe desprezo mais profundo pela teoria da igualdade permanente dos bens". Sem estar livre (como em lugar nenhum se está) dos perigos da igualdade, a tradição da prática da liberdade, desde as origens da história americana, teceu os fios de uma sociabilidade espontaneamente autônoma (o "Socius" solidário imaginado na utopia de Proudhon, pelo menos no capítulo referente ao federalismo, como efeito das contingências da geografia e da história...) que previne a separação entre sociedade e poder e, com ela, o advento do despotismo.

Distorção na ênfase Em contraponto, a equalização das condições na França, por efeito da grande revolução, tem efeitos inversos que tendem a suprimir a liberdade: "Seria razoável crer que um movimento social que vem de tão longe poderá ser interrompido pelos esforços de uma geração? Pensar-se-á que, depois de ter destruído a feudalidade e vencido os reis, a democracia há de recuar diante dos burgueses e dos ricos? Haverá de deter-se, quando se tornou tão forte, e seus adversários, tão fracos?".
Com o livro de Célia Galvão Quirino, a imagem de Tocqueville que se esboça diante de nossos olhos não parece recobrir o perfil traçado por Raymond Aron nem no que concerne à concepção da teoria na política nem no que concerne à interpretação do movimento da história. E todo o interesse do livro reside justamente nessa pequena distorção ou correção, na mudança, digamos, de ênfase no ritmo da leitura. Não se trata de uma leitura rival (isso não parece ter jamais ocorrido à autora), mas de uma perspectiva diversa, que nos faz pensar de modo diferente tanto o tempo e o pensamento de Tocqueville como o tempo e o pensamento de nosso presente histórico.

O que havia pouco tempo aparecia como formas mais ou menos esperançosas de uma "new left" parece se apresentar agora como mero remanescente arqueológico


Comecemos pela dimensão, digamos, "epistemológica". Ao contrário do mestre francês, nossa autora não se demora na prefiguração tocquevilliana da sociologia contemporânea no seu corte empirista-lógico ou analítico. De 1967 até hoje, muita água passou por sob a ponte da filosofia das ciências sociais -e não é preciso ser ingênuo ou irresponsavelmente pós-moderno para negligenciar o otimismo epistemológico de inspiração analítica a que se converteu Aron, formado -embora na França- dentro do horizonte do marxismo e das "Geisteswissenschaften".
Com o eclipse do último avatar do neopositivismo na segunda metade do século 20, torna-se mais clara a "liberdade" teórica de Tocqueville, uma espécie de "anarquismo epistemológico-filosófico" que só respeita o faro histórico-antropológico, entendido como guia da ação e do juízo (da aposta, diria eu) políticos. Não é por acaso que este livro se encerra (curiosamente após a conclusão) com um capítulo intitulado "O Homem Político".
Mas deixemos de lado o viés biográfico (no entanto, importante) e a ênfase que implica para o privilégio da práxis na edificação da "teoria" -melhor seria dizer na armação do juízo político. Voltemos à curiosa idéia, essencialmente antipositivista ou, pelo menos, antiilustrada, das "boas ilusões". A idéia de que pode haver uma "boa ilusão" significa, pelo menos, que a pura objetividade da razão pode ser inimiga da liberdade. E é aqui que o pensamento de Tocqueville parece apontar antes na direção do pensamento revolucionário de Georges Sorel do que na do sociologismo analítico-liberal de Raymond Aron (parentesco com Sorel que este último deveria considerar detestável). Aqui é necessário citar todo um parágrafo de Célia Galvão Quirino:
"Sem dúvida ele não está tentando construir uma ciência política positiva ou materialista. Pelo contrário, os valores românticos e aristocráticos que o norteiam levam-no mesmo a imaginar que uma sociedade democrática ideal seria aquela em que todos, iguais e livres, cultivassem valores que, para ele, seriam próprios da antiga nobreza, tais como honra, dignidade, amor desinteressado pelas artes e ciências, desprezo por atividades que visassem apenas ao lucro etc. Mesmo que as maneiras em que se traduzem tais valores pudessem ser "ilusões sobre a natureza humana, e frequentemente mentirosas", Tocqueville afirma que "sentia um nobre prazer em observá-las". No entanto é por meio do viés específico desses valores que Tocqueville busca construir uma nova ciência política" (pág. 170).
Antes de continuar, sublinhemos de passagem que tal liberalismo seria, de imediato, caracterizado por um Lukács como anticapitalismo romântico. Ou, ainda, que tal liberalismo reconhece a igualdade como destino e a liberdade como uma conquista sempre em sursis. Como se a natureza humana levasse a igualdade insensivelmente na direção do despotismo, exigindo a tensão máxima da vontade, e mesmo da faculdade fabulatória da imaginação ou do mito, para manter o império sempre vulnerável da liberdade. Lembrando Rousseau, "Virtus" (o império da lei ou da liberdade civil) significa força, resistência aos impulsos naturais.
Se os tempos modernos exigem uma "Nova Ciência Política", é porque a revolução acelerou a marcha natural da história, o movimento providencial que conduz à equalização das condições sem garantir a sobrevivência da liberdade. A ciência política é, portanto, menos uma descrição neutra e explicativa de processos objetivos do que uma intervenção voluntária e "raisonée" nesse processo, para dar a ele uma direção nova.
Ciência política é, portanto, um outro nome para a ação política guiada por valores a serem instaurados à contracorrente da história. Como em Sorel, temos aqui uma concepção da ciência inequivocamente pragmatista, antes da ordem da obra humana ou do constructo, da Póiesis, do que da pura Theoria.
Esse curioso registro semântico da expressão "ciência" transparece de modo evidente no comentário do malogro dos socialistas em 1848: "Os socialistas eram os mais perigosos, pois eram os que melhor correspondiam ao verdadeiro caráter da revolução de fevereiro e às únicas paixões que ela produziu, mas eram muito mais teóricos do que homens de ação e, para transformar a sociedade segundo sua vontade, eles teriam tido necessidade de energia prática e da ciência das insurreições que somente seus confrades possuíam".
Depois de apontar o desvio da leitura de Tocqueville aqui proposta, em relação ao paradigma fixado por Raymond Aron, caberia indicar, sumariamente, o seu lugar na literatura que dele derivou. Mas não poderia nem estaria ao meu alcance traçar um quadro exaustivo das interpretações da obra de Tocqueville nos últimos 30 anos. Nem sequer será possível, como seria útil, situar "Dos Infortúnios da Igualdade ao Gozo da Liberdade" entre pelo menos dois pólos: o de uma certa "direita", classicamente liberal, representado pela leitura de F. Bourricaud, e outro pólo, à esquerda, representado pelos escritos de Claude Lefort.
Sublinhemos, pelo menos, que a leitura de Célia Quirino se aproxima mais da do último, não só como perspectiva geral, mas sobretudo na insistência no ponto crucial, raramente mencionado, de que a obra de Tocqueville é antes obra de pensamento que obra de ciência. O leitor poderá, em todo caso, ter uma idéia desse quadro geral lendo o nš 236 da revista francesa "Magazine Littéraire", que faz um balanço mais ou menos completo da bibliografia, desde a "redescoberta" de Tocqueville por Aron (1967) até a data de sua publicação (1986) -20 anos de hermenêutica e polêmica.
Mas não podemos deixar de exprimir o que o livro de Célia Quirino dá a pensar em um fim de milênio marcado pelo triunfo do neoliberalismo imposto ao planeta pelo "Imperium" de uma América com que Tocqueville não poderia jamais ter sonhado. Ao contrário do diagnóstico de Aron, há 34 anos, o liberalismo de Tocqueville não parece aparentado com a figura atual do capitalismo (ou, na sua expressão, "das sociedades européias ocidentais"). Antes está na moda o "enrichissez-vous" de Guizot, tanto mais apimentado quanto mais a lei férrea do mercado aumenta a pobreza e provoca crescente exclusão. O que nos faz lembrar o malogro do projeto tocquevilliano da "jovem esquerda", ironizado em 1844 pelo grande jornal republicano "La Nation", que, como observa Françoise Mélonio, "ria do "donquixotismo liberal" de Tocqueville e de sua "velha jovem esquerda" de quadraquinquagenários", pastichando o cardeal de Retz: "lá estavam cinco ou seis melancólicos, que pareciam pensar no vazio"...".
O declive natural da Providência divina não levou à extinção da propriedade, mas, em compensação, o espaço da vida propriamente política parece ter sido drasticamente estreitado, com a generalização de um individualismo avesso ao duro trabalho da liberdade (numa palavra, barbárie, tanto no sentido de Tocqueville como no de Marx), deixando lugar apenas para iniciativas tópicas e esporádicas de resistência, auto-organização e oposição. O que havia pouco tempo aparecia como formas mais ou menos esperançosas de uma "new left" parece se apresentar agora como mero remanescente arqueológico: alguns poucos sexagenários saudosistas "avec l'air de penser creux"...
De algum modo Tocqueville não ignorava a ligação interna que articulava seu malogro político e seu êxito como pensador. Sempre será verdade que o desdobramento automático do processo da modernização pode levar ao despotismo -no nosso caso, o triunfo do pensamento único. De qualquer maneira, a leitura de Alexis de Tocqueville, no pórtico do terceiro milênio, parece impor a tarefa da imaginar uma nova ciência e uma nova prática políticas para um mundo inteiramente novo. Careceríamos nós, hoje, de uma "new new left"?

Nota
1."Não posso acreditar que percebam claramente em mim um liberal de uma nova espécie."


Bento Prado Jr. é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros livros, de "Alguns Ensaios" (ed. Paz e Terra).


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