São Paulo, domingo, 18 de março de 2007

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+ Cultura

O latim nosso do dia-a-dia

Recomendação do papa Bento 16 para a adoção do idioma em missas põe em discussão a necessidade de seu ensino

MARIA HELENA DE MOURA NEVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ensejo para esta reflexão é conjuntural: a recomendação do papa Bento 16 sobre o uso do latim no rito das missas católicas [anunciado na terça passada], pelo menos das internacionais.
Trata-se de um fato pontual, sem influência e sem reflexos como "sobrevida" do latim nos nossos tempos e na nossa vida ou como incremento de seu cultivo, ensino e entendimento, já que linguagem ritual é quase código cifrado, mágico, especialmente se em língua estranha à da comunidade participante.
Lembro-me de que acompanhei, em criança, muita missa em latim e muito repeti em latim a ladainha de Nossa Senhora, compreendendo e vivendo cada fórmula e cada invocação -eu que estudei latim desde os dez anos- enquanto me perguntava o que estariam pensando, enquanto rezavam, todas aquelas pessoas que desfilavam um ora-pro-nobis para expressões como "ianua coeli", "sedes sapientiae", "turris eburnea", sem ter condições de identificar que categoria de entidades invocavam em cada momento.
Obviamente, nunca cheguei a pensar que era muito bom ter estudado latim só para poder saber que epítetos dava a Nossa Senhora quando lhe pedia que orasse por mim.
Mas, por outro lado, sempre tive a consciência de que me beneficiei muito de meus árduos (e amados) estudos de latim quando enveredei pelo trabalho com a linguagem.
Vem a pergunta: é preciso saber latim?
Na defesa da manutenção -ou da ressureição- do estudo do latim, sempre se invocou o que essa língua, com as suas características de sintaxe rígida e marcada -e de conseqüente liberdade de ordem-, representaria para o desenvolvimento do raciocínio, da reflexão.

Experiência reflexiva
Não vou por aí, que seria minimizar e artificializar o significado da empreitada.
Assim como não faz sentido colocar as atividades de aquisição do latim como importantes para o acompanhamento de um ritual (a não ser para os profissionais do culto ritualizado, que, na verdade, é o que o papa quer), não faz sentido defender essas atividades simplesmente como instrumentos para o desenvolvimento do raciocínio ou da reflexão, por se tratar de uma língua com casos.
Seria quase como defender que os alemães são mais reflexivos e têm mais raciocínio que outros povos modernos porque são capazes de se exprimir numa língua de sintaxe rígida e de alguma manifestação de casos.
Obviamente, a cada língua que o indivíduo adquire, ele terá passado por uma experiência reflexiva enriquecedora, mas nunca se poderia dizer que é para isso que alguém se põe a estudar outra língua.
Ao ensejo dessa medida papal de restabelecimento do latim em um campo particular, fechado em si, como é o rito de um grupo religioso -por mais representativo que seja esse grupo-, o que me vem à mente é, exatamente, a falta que está fazendo o conhecimento do latim a um grupo que nada tem de fechado -o dos profissionais da linguagem (e são tantos, "lato sensu"!), aí incluídos, destacadamente, os professores de português.

Fuga do encapsulamento
Fique claro que, para saber português, não é preciso saber latim, pois cada falante criado em uma comunidade é competente na língua dessa comunidade.
Mas, para refletir sobre o comportamento das peças e dos processos de funcionamento de uma língua (especialmente de uma língua neolatina, como é a nossa), muita luz se obtém nesse conhecimento.
Quem tem de falar sobre sua língua e levar outros (alunos, leitores) a considerá-la reflexivamente com certeza encontrará, no que estiver na origem dela, nas suas raízes de significação, muito subsídio de compreensão e de explicação.
Eu diria que o argumento mais forte vai exatamente no sentido contrário do geralmente invocado. Vai no sentido da fuga do encapsulamento de um grupo particular, fechado em si, especialmente neste mundo globalizado, plurilíngüe.
Pode parecer que estou fazendo uma salada de indicações no que vou dizer com os exemplos que trago.
Mas convido os leitores a pensar se não é interessante ter instrumentos para, em vez de simplesmente decorar que o termo paparazzi não é um singular, poder entender que, no italiano, essa outra língua neolatina, o caso de origem das palavras (caso lexicogênico) é o nominativo latino, que, no plural da segunda declinação (de nomes predominantemente masculinos), terminava em -i, enquanto, em português, o caso de origem das palavras (caso lexicogênico) é o acusativo latino, que, no plural de nomes masculinos e femininos, terminava em -s.
Ou poder entender que a expressão adverbial "lato sensu", que é corrente nos nossos textos, tem -o em lato porque esse é o ablativo masculino de um adjetivo da primeira classe (que segue a segunda declinação), enquanto tem -u em sensu, porque esse é o ablativo de um substantivo da quarta declinação.
Ou poder entender toda essa história do termo mídia, que alguns adoram, outros abominam, e a maioria nem sabe por quê.
São, todos esses da amostra, termos correntes, hoje, no português, porque, no mundo globalizado, a aldeia de cada um, por mais coretos e poéticos riachos que tenha, é sempre uma aldeia global.
E, quem diria, a modernidade pede tradição, evidenciando o ciclo que constrói o saber humano.


MARIA HELENA DE MOURA NEVES é professora de lingüística na Universidade Mackenzie e na Universidade Estadual Paulista. É autora de, entre outros, "Vertente Grega da Gramática Tradicional" (ed. Unesp).


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