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+(a)utores
Duas vezes favela
Marginalizados pela exclusão
social e idealizados no cinema
e na música popular, morros do Rio vivem entre catástrofe
e descaso do poder público
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BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
A imensa tragédia
nos morros do Rio
de Janeiro relembra o quanto as favelas cariocas fazem parte do imaginário dos
brasileiros. Começando pela
sua origem e por sua designação, elas têm uma história peculiar e centenária.
Embora haja controvérsias a
respeito, parecem ter surgido,
por volta de 1897, como local de
moradia, oferecido pelo governo aos soldados que regressavam da campanha de Canudos
[na Bahia].
Não por acaso, a designação
"favela" foi dada por esses soldados que, nas proximidades
do arraial de Canudos, acamparam num morro, chamado de
morro da Favela, em referência
a um arbusto resistente, muito
conhecido nas zonas secas do
Nordeste.
Muito cedo as favelas foram
encaradas pelas autoridades
como um local habitado por
gente perigosa. Alba Zaluar e
Marcos Alvito, organizadores
do livro "Um Século de Favelas" (ed. FGV), transcrevem, na
introdução, uma significativa
carta de um delegado dirigida
ao chefe da polícia do Rio de
Janeiro, datada de 4/11/1900.
A carta é uma resposta ao
chefe da polícia, determinando
que se verificasse uma denúncia do "Jornal do Brasil" segundo a qual o morro da Providência [local no Rio de Janeiro onde soldados que lutaram em
Canudos se instalaram] estava
infestado de vagabundos e criminosos que sobressaltavam as
famílias.
Diz o delegado que "(...) é ali
impossível ser feito o policiamento porquanto, nesse local,
foco de desertores, ladrões e
praças do Exército, não há
ruas, os casebres são feitos de
madeira e cobertos de zinco e
não existe, em todo o morro,
um só bico de gás, de modo que
para a completa extinção dos
malfeitores apontados torna-se necessário um grande cerco,
(...) de pelo menos 80 praças
devidamente armados".
Com uma distância de 50
anos, o editorial da revista
"Anhembi", de responsabilidade do escritor e jornalista Paulo Duarte, fala da vitória de Getúlio Vargas nas eleições presidenciais de 3 de outubro de
1950, vinculando-a, no Rio de
Janeiro, ao "meio milhão de
miseráveis, analfabetos, mendigos famintos e andrajosos,
espíritos recalcados e justamente ressentidos, indivíduos
tornados pelo abandono homens boçais, maus e vingativos, que desceram os morros
embalados pela cantiga da demagogia, (...) para votar na
última esperança que lhes restava: naquele que se proclamava o pai dos pobres, o messias
charlatão".
Idealização do morro
O reverso da demonização da
favela veio pela mão do cinema
e principalmente da música popular. No caso do cinema, uma
referência lendária é o filme
"Favela dos Meus Amores", de
1935, do qual, se não estou enganado, não sobrou uma só cópia. Dirigido por Humberto
Mauro, com a colaboração de
Henrique Pongetti, sua trilha
musical era feita de canções e
sambas de Ary Barroso, Custódio Mesquita e Orestes Barbosa, entre outros.
Milhares de sambas tematizaram a favela, em fases que
têm a ver com a história do país,
onde predominam ora a idealização romântica (as cabrochas,
os barracos sem trinco, a proximidade do céu), ora a violência
(dos marginais ou da polícia),
ora o protesto contra as injustiças sociais. Isso foi muito bem
mostrado por Jane Souto de
Oliveira e Maria Hortense
Marcier num ensaio intitulado
"A Palavra É Favela", que se encontra no livro já citado de Zaluar e Alvito.
Curiosamente, Noel Rosa
[1910-37], um dos grandes da
música popular brasileira, tematizou quase todos esses aspectos, inclusive na célebre polêmica com Wilson Batista, respectivamente na defesa e na
condenação do malandro.
Nos versos da música popular, encontramos às vezes um
apelo para que a cidade enfrente o problema da favela e da habitação popular. É o caso de
"Barracão", a célebre canção de
Luiz Antonio e Oldemar Magalhães, que não eram compositores do morro, mas sabiam o
que diziam: "Ai, barracão/ Pendurado no morro/ Vai pedindo
socorro/ À cidade a seus pés".
Bela inversão, em que uma
cidade, geograficamente submetida, tem, no entanto, socialmente, uma posição dominante com relação aos habitantes lá
do alto.
Até que ponto o pedido de socorro, diante da catástrofe
atual, será ouvido? Até que
ponto o problema será enfrentado com um misto de humanidade e competência técnica, à
margem da falsa dualidade "remoção ou urbanização", que
percorre a história das favelas,
como se todas as situações -na
realidade, muito diversas- fossem idênticas?
A folha corrida do poder público, onde consta o crime do
esquecimento de tantas e tantas tragédias, não me permite
ser otimista. Mas quem sabe
-assim espero- eu esteja completamente enganado.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
borisfausto@uol.com.br
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