São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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O Mais! publica com exclusividade a resenha que Nabokov escreveu de seu próprio livro de memórias em 1950 e que permaneceu inédita até o ano passado, quando foi divulgada nos EUA
Método do disfarce

VLADIMIR NABOKOV

Os dois livros de memórias à minha frente, um deles por um autor de origem russa, ora cidadão deste país, o outro pela neta de um grande pedagogo americano, são livros extremamente elaborados. É raro que duas realizações de tal nível cheguem praticamente no mesmo dia à escrivaninha de um resenhador.
O punhado de admiradores do sr. Nabokov ficará legitimamente entusiasmado com a publicação de sua nova obra. Ainda que o subtítulo de "memórias" pareça óbvio, há certos traços -não necessariamente virtudes- em "Conclusive Evidence" ["Prova Cabal", primeiro nome dado ao livro, que em edição posterior, de 1966, veio a se chamar "Speak, Memory"; no Brasil foi editado com o título "A Pessoa em Questão"" que a separam por inteiro das autobiografias correntes, sejam verdadeiras, mais ou menos verdadeiras ou deliberadamente ficcionais. Se bem que sua originalidade não seja tão atraente quanto o esplendor profundamente humano que banha cada página de "When Lilacs Last", da srta. Barbara Braun, por outro lado ela contém fontes especiais de prazer, que nenhum leitor inteligente pode perder.
Uma excentricidade em matéria de autobiografia, o livro do sr. Nabokov é mais facilmente definível em termos do que ele não é. Não se trata, por exemplo, de um daqueles livros tagarelas, informes e rapsódicos, fortemente apoiados em notas de diário, que os especialistas em outros ofícios e os administradores de nossa existência pública costumam produzir ("Quarta-feira à noite, por volta das 11h40, o general Fulano telefonou. Eu lhe disse: ..."). Também não se trata da cozinha de um escritor profissional, com restos de material não utilizado flutuando numa infusão tépida de ingredientes literários e pessoais. Muito enfaticamente, não se trata daquele tipo de reminiscência desonesta em que o autor ajusta-se ao excelso nível da ficção de terceira classe e com serena desfaçatez começa a empilhar resma sobre resma de diálogos (Maw e o vizinho, Maw e as crianças, Bill e Paw, Bill e Picasso) que nenhum cérebro humano poderia ter conservado de forma minimamente comparável.

Xadrez e charadas
Este resenhador acredita que a importância permanente que "Conclusive Evidence" pode vir a ter reside em sua qualidade de ponto de encontro entre uma forma artística impessoal e uma história de vida muito pessoal. O método de Nabokov consiste em explorar as regiões mais remotas de seu passado à busca do que podemos chamar de trilhas ou correntes temáticas. Uma vez encontrado, esse ou aquele tema é acompanhado ao longo dos anos. No curso desse desenvolvimento, ele conduz o autor a novas regiões da vida. O rigor diamantino da arte e os músculos da memória sinuosa combinam-se num movimento ágil e vigoroso, produzindo um estilo que parece esgueirar-se entre relva e flores até chegar à pedra plana e cálida sobre a qual poderá fecundamente espraiar-se.
O leitor certamente gostará de encontrar por si só os rodeios, as transições, os vários disfarces brincalhões dessa ou daquela linha temática atravessando o livro inteiro. Há certas linhas principais e várias subordinadas, todas elas combinadas de uma maneira que faz pensar em problemas de xadrez ou charadas de todo tipo, tudo isso tendendo a uma apoteose enxadrística; na verdade, esse tema reaparece em quase todos os capítulos: quebra-cabeças, um tabuleiro de damas heráldico, certos "padrões rítmicos", a natureza "contrapontística" do destino, o "cruzamento de várias frentes de jogo" ao longo da vida, uma partida de xadrez a bordo de um navio, enquanto a Rússia perde-se no horizonte, os romances de Sirin, seu interesse em problemas de xadrez, os "emblemas" nos cacos de porcelana quebrada, um último quebra-cabeça completando a espiral do tema.
O tema do exílio é possivelmente o mais comovente do livro, e teremos que retornar a ele. De certa maneira, Nabokov conheceu todas as tristezas e todas as delícias da nostalgia muito antes que a Revolução [Russa, de 1917" removesse o cenário de seus primeiros dias. Ele se esforça por provar que sua infância continha, em escala reduzida, os componentes principais de sua maturidade criativa, tal como se pode ver, por meio da fina bainha de uma crisálida, a revelação em miniatura da borboleta que logo emergerá e expandirá suas asas pujantes e reticuladas até várias vezes o seu tamanho pupal.
A solução de charadas é o ato mais puro e básico da mente humana. Todas as linhas temáticas mencionadas mesclam-se gradualmente, convergem e se entrelaçam numa forma de contato sutil, mas natural, que é tanto produto da arte quanto processo observável de evolução de um destino pessoal. Desse modo, pelo final do livro, o tema do mimetismo, do "disfarce críptico" estudado por Nabokov em suas pesquisas entomológicas, comparece pontualmente a um encontro com o tema da charada, com a solução camuflada de um problema de xadrez, com a reconstituição de uma figura a partir dos cacos de porcelana quebrada e com o quebra-cabeça em que o olhar distingue os contornos de um novo país.
A esse mesmo ponto de convergência acorrem outras linhas temáticas, como se ansiassem pela feliz anastomose proporcionada conjuntamente pela arte e pelo destino. A solução para o tema da charada é também a solução para o tema do exílio, da perda intrínseca que percorre todo o livro, e essas linhas combinam-se, por sua vez, com o ápice do tema do arco-íris ("uma espiral de vida numa ágata"), fundindo-se, num perfeito "rond-point", com os muitos caminhos de jardins, aléias de parques e trilhas silvestres que serpenteiam pelo livro. Não há como deixar de respeitar o grau de acume retrospectivo e concentração criativa que o autor reuniu a fim de planejar seu livro sobre as mesmas linhas traçadas para sua vida por jogadores desconhecidos e, então, jamais desviar desse plano.

Florestas e brejos
Vladimir Nabokov nasceu em 1899, em São Petersburgo. Seu pai, também Vladimir, era um europeu de grande cultura, um político erudito, um rebelde jovial e robusto, cujos irmãos e cunhados eram, nos melhores casos, conservadores despreocupados e, nos piores, reacionários ativos; por sua parte, ele pertencia ao Grupo Liberal, que se opunha no Parlamento e em periódicos de grande circulação às tendências e iniquidades autocráticas do regime do czar. Os leitores americanos de hoje, cuja informação sobre a Rússia czarista é inteiramente permeada de propaganda comunista e relatos pró-soviéticos, difundidos por aqui nos anos 20, terão uma surpresa em várias passagens de "Conclusive Evidence" ao constatarem quanta liberdade de expressão havia e quanta coisa podia ser feita por gente civilizada na Rússia pré-revolucionária.
A vida na camada de ricos proprietários de terra da qual os Nabokov faziam parte tem algumas afinidades com a opulência sulista nos EUA ou com a vida senhorial na Inglaterra e na França. Os verões, que o jovem autor passava no campo, parecem ter tido grande influência em sua formação. A região, com suas aldeias esparsas entre grandes florestas e brejos, era parcamente povoada, mas os muitos caminhos antigos (as misteriosas trilhas que cobriam o império desde tempos imemoriais) evitavam que o colhedor de amoras, o vagabundo ou os belos filhinhos do cavalheiro local perdessem o rumo nas florestas. E como a maior parte desses caminhos e ermos por que passavam ou para onde iam não tinha nome, seguidas gerações de famílias proprietárias designavam-nos pelos nomes que, sob influência de governantas e tutores franceses, tinham surgido naturalmente durante os passeios diários das crianças ou nos frequentes piqueniques -"Chemin du Pendu", "Pont des Vaches", "Amérique" e assim por diante.

Atordoamento hedonista
O autor de "Conclusive Evidence" -e, por agradável coincidência, também a autora de "When Lilacs Last"- era o mais velho de cinco filhos. Mas, ao contrário da srta. Braun, Nabokov não tem muito a dizer sobre seus irmãos -dois meninos e duas meninas, nascidos respectivamente em 1900, 1911, 1903 e 1906. A poderosa concentração na própria personalidade, o ato de vontade artística, infatigável e invencível, não deixa de ter certas consequências, e o fenômeno mencionado é certamente uma delas.
Com a permissão do autor, menciono aqui um de meus contatos acidentais com sua família. Um de seus primos, também cidadão dos EUA, conta que na juventude, as irmãs e o irmão caçula de Nabokov escreviam poesia lírica com espantosa facilidade (partilhada por inúmeros jovens russos de sua geração). Numa "soirée" literária em Praga, por volta do começo dos anos 20 (1923, provavelmente), lembro de ***, amigo de Franz Kafka e talentoso tradutor para o tcheco de Dostoiévski e Rozánov, indicando-me a mãe de Nabokov, uma mulher baixa, de cabelos grisalhos, vestida em negro e acompanhada por uma mocinha de olhos límpidos e tez radiante -Elena, irmã de Nabokov.
Nos anos 30, vivendo em Paris, encontrei por acaso Serguei, irmão de Nabokov: a despeito de menos de um ano de diferença entre os dois, eles pareciam ter levado vidas completamente separadas desde o começo da adolescência, frequentando diferentes escolas e círculos de amizades. Quando conheci Serguei, ele vagueava num atordoamento hedonista em meio à turba montparnassiana tantas vezes retratada por certo tipo de escritor americano. Seus dons linguísticos e musicais dissolviam-se na indolência de sua índole. Tenho razões para crer que sua infância jamais fora tão feliz quanto a do filho preferido de seus pais. Acusado de simpatias anglo-saxônicas, Serguei, um homem destemido e sem papas na língua, apesar de sua aparência efeminada, foi preso pelos alemães e morreu num campo de concentração em 1944.
Nas belas páginas de "When Lilacs Last" que narram as lembranças mais antigas da senhorita Braun, ela alude à segurança de um mundo em que a coleta de seiva de bordo ou o bolo de aniversário preparado pela mamãe eram componentes imutáveis, tão familiares e queridos ao patrício da Nova Inglaterra ou ao almofadinha da Filadélfia de hoje quanto foram para seu antepassado simples e trabalhador de duas gerações atrás. O mundo do passado de Nabokov, por sua vez, exibe um ar singular de fragilidade luminosa que é um dos temas principais do livro.
Com grande perspicácia, Nabokov dá ênfase às curiosas antevisões de perdas futuras que assediaram sua infância, quiçá intensificando suas delícias. Num lugar de destaque de seu quarto de criança em São Petersburgo estava pendurado um quadrinho colorido, "naquele estilo inglês, brilhante e vivaz, usado para cenas de caça e coisas do gênero e que se presta tão bem à confecção de quebra-cabeças"; o quadro representava, com o devido humor, a família de um nobre francês no exílio: margaridas recobriam um prado, havia uma vaca em algum lugar e o céu azul; o nobre, gordo e provecto, em camisola sarapintada e calções até o joelho, estava largado num banquinho de ordenhar, enquanto sua mulher e suas filhas ocupavam-se em pendurar num varal sua fina roupa lavada.
Aqui e ali, na propriedade rural dos Nabokov, os pais do autor apontavam, como se voltassem para casa após anos de viagens, os sinais queridos de acontecimentos de um passado impalpável, mas de algum modo perpétuo. Nas alamedas de ciprestes dos jardins da Criméia (por onde Puchkin caminhara cem anos antes), o jovem Nabokov divertia e provocava uma amiga, que tinha certo gosto por literatura romântica, comentando suas próprias palavras e sensações no estilo memorialístico, ligeiramente afetado, que sua companheira presumivelmente desenvolveria anos mais tarde, quando escrevesse seu livro (no estilo das memórias sobre Puchkin): "Nabokov gostava de cerejas, especialmente as maduras" ou "ele tinha um jeito de entrecerrar os olhos quando observava o sol poente" ou "lembro que, certa noite, reclinados sobre um banco de turfa..." e assim por diante -uma brincadeira que era tola, mas que parece menos tola hoje, quando vemos como se encaixa num padrão de perdas antevistas, de tentativas patéticas para reter as coisas queridas, adoráveis, condenadas e evanescentes de uma vida que tentava desesperadamente pensar em si mesma nos termos de um retrospecto futuro.

Ditadura bolchevique
Quando a revolução rebentou, na primavera de 1917, Nabokov sênior participou do governo provisório e, mais tarde, quando a ditadura bolchevique subiu ao poder, foi membro de um efêmero governo provisório no sul da Rússia, ainda livre. O grupo a que pertenciam esses intelectuais russos, tanto liberais quanto socialistas não-comunistas, partilhava as idéias básicas dos democratas ocidentais. Contudo os intelectuais americanos de hoje, que foram aprender história da Rússia em fontes comunistas ou patrocinadas por estes, não sabem nada sobre o período. As histórias bolcheviques naturalmente menosprezam as lutas democráticas pré-revolucionárias, minimizando-as e distorcendo-as violentamente, cobrindo-as de insultos propagandísticos ("reacionários", "lacaios", "répteis" etc.), tal como os jornalistas soviéticos alcunhavam os surpresos funcionários americanos de "fascistas". A surpresa veio com 30 anos de atraso.
Os leitores do livro do sr. Nabokov notarão a extraordinária semelhança entre as posições atuais de antigos leninistas e stalinistas desgostosos e as opiniões impopulares que intelectuais russos exprimiram em periódicos de emigrados durante as três décadas seguintes à Revolução Bolchevique, enquanto nossos radicais entusiastas prostravam-se em adoração à Rússia soviética. Somos obrigados a supor que, ou bem os escritores exilados estavam muitos anos à frente de seu tempo por sua compreensão do verdadeiro espírito do regime soviético ou bem eles possuíam uma intuição e uma antevisão beirando o miraculoso.
Podemos visualizar vividamente os anos de universidade da srta. Braun, o que não acontece com o autor de "Conclusive Evidence", já que ele não tem nada a dizer sobre as aulas que certamente frequentou. Depois de abandonar a Rússia no começo da era soviética, Nabokov terminou seus estudos na Universidade de Cambridge. De 1922 a 1940, viveu em várias partes da Europa, sobretudo em Berlim e Paris. Incidentalmente, é curioso comparar as impressões horripilantes que Nabokov guarda de Berlim entre as duas guerras às lembranças contemporâneas, mas bem mais líricas, do sr. [Stephen" Spender [escritor inglês, 1909-1995" (publicadas na revista "Partisan" alguns anos atrás), em especial a parte referente aos "rapazes alemães, infalivelmente bonitos".
Ao descrever suas atividades literárias nesses anos de exílio voluntário na Europa, o sr. Nabokov adota o método algo irritante de se referir a si mesmo na terceira pessoa, como "Sirin" -pseudônimo literário pelo qual ele era e ainda é bem conhecido no mundo dos expatriados russos dotados de cultura e perspicácia. É bem verdade que, tendo praticamente deixado de ser um autor russo, ele está à vontade para discutir a obra de Sirin à parte da sua. Mas estou inclinado a pensar que seu verdadeiro propósito aqui é o de projetar a si mesmo ou, pelo menos, a parte mais valiosa de sua personalidade no quadro que está pintando.
Vêm à cabeça aqueles problemas de "objetividade" que a filosofia da ciência costuma discutir. Um observador produz um quadro detalhado do universo inteiro, mas ao terminar ele percebe que ainda falta algo: ele próprio. Então ele se inclui no quadro; mas outra vez um "eu" permanece de fora, numa sequência infinita de projeções, como acontece naquelas propagandas em que uma moça exibe uma foto de si mesma, exibindo uma foto de si mesma, exibindo uma foto que só a impressão grosseira nos impede de discernir.
Na verdade, Nabokov deu um passo adiante e, sob a máscara de Sirin, projetou-se numa persona de terceiro grau, chamada Vassili Chichkov. Esse feito foi o resultado de uma rinha de dez anos que ele manteve com George Adamovich, o mais talentoso dos críticos emigrados, que de início rejeitou, depois aceitou com relutância e por fim admirou com grande estrépito a prosa de Sirin, mas sempre desdenhando sua poesia. Com a cooperação jocosa do editor de uma revista, Nabokov-Sirin assumiu o nome de Chichkov. Num dia de agosto de 1939, resenhando no jornal de língua russa "Poslednie Novosti" (publicado em Paris) o número 69 da revista trimestral "Sovremnye Zapiski" (igualmente publicada em Paris), Adamovich derramou-se em elogios sobre um poema de Chichkov, "Os Poetas", e sugeriu que finalmente a emigração russa produzira um grande poeta.
No outono daquele ano, no mesmo periódico, Sirin descreveu longamente uma conversa imaginária que tivera com "Vassili Chichkov". Numa resposta ainda zonza, mas ainda combativa, Adamovich disse duvidar de que se tratava de um embuste e acrescentava que Sirin bem poderia ser inventivo o bastante para simular inspiração e genialidade bem acima de suas próprias capacidades. Pouco depois, a Segunda Guerra Mundial pôs fim à literatura russa em Paris. Sinto não poder acreditar no autor de "Conclusive Evidence" quando, em suas lembranças da vida literária, ele destaca a perfeita indiferença que desde sempre dedica à crítica, adversa ou favorável. Seja como for, um certo veio perverso, vingativo e por vezes bastante tolo costumava assomar em seus próprios artigos críticos.
Como aprendemos o grande segredo envolto pelas palavras? É fácil ver que o estrangeiro em geral não conseguem adquirir um senso perfeito e natural de seu peso: ele não passou desde a infância pela recepção tranquila e pelo estudo consciente das palavras, não sentiu como uma palavra alia-se a outras e como uma época, com seus livros, suas tradições tácitas, seu estilo de conversa, desemboca em outra. Em sua jornada tão bela, compassiva e intensamente feminina ao reino das coisas passadas, a srta. Braun teve uma dificuldade a menos do que o sr. Nabokov. É verdade que o autor russo teve governantas inglesas quando criança, é verdade que passou três anos na Inglaterra. Mas trazer à baila o caso de [Joseph" Conrad [1857-1924" a propósito dos romances de Nabokov escritos em inglês ("The Real Life of Sebastian Knight" e "Bend Sinister") implicaria fazer falso juízo sobre suas realizações.
Conrad, cujo estilo era, afinal de contas, uma coleção de clichês consagrados, não tinha às costas 20 anos de atividade na literatura polonesa quando se lançou em sua carreira britânica. Quando optou pelo inglês, Nabokov era autor de vários romances e numerosos contos em russo e já havia conquistado um lugar duradouro na literatura russa, ainda que seus livros fossem banidos de sua terra natal. A única analogia pertinente é que ambos poderiam ter escolhido o francês tanto quanto o inglês. Com efeito, a primeira tentativa de Nabokov de escrever prosa original em língua estrangeira foi um conto ("Mademoiselle O.") que escreveu em francês pela metade dos anos 30, publicado por Paulhan em "Mesures". Uma versão inglesa, com a maior parte da ficção extirpada pelo autor, apareceu na revista "Atlantic Monthly" e foi reimpressa em "Nine Stories". Em forma revisada e expandida, com os últimos resquícios de ficção abolidos, o conto chegou ao seu estado final como quinto capítulo desse volume.
Este resenhador guarda uma lembrança apagada de ter ouvido Nabokov dando uma conferência em francês brilhante numa "soirée littéraire" -em 1937, creio eu- numa sala de concertos parisiense. Uma escritora húngara, hoje esquecida, mas por então muito "à la mode" como autora de um romance de sucesso em francês (algo sobre um gato pescador) e que devia falar naquela noite, mandara um telegrama de cancelamento poucas horas antes, e Gabriel Marcel, um dos organizadores da série de palestras, convencera Nabokov a substituí-la na última hora com uma conferência em francês sobre Puchkin (mais tarde publicada na "Nouvelle Revue Française").
O "acte gratuite" [ato gratuito" (repetindo aqui o solecismo gracioso do sr. Auden) foi precedido por um curioso movimento, uma espécie de redemoinho na platéia. A colônia húngara em peso havia comprado entradas; alguns estavam saindo ao saber da mudança de programa. Outros húngaros permaneceram, na ignorância dos bem-aventurados. A maior parte do contingente francês batera igualmente em retirada. Nas coxias, o enviado oficial húngaro cumprimentava vigorosamente o sr. Nabokov, que ele julgava ser o marido da autora. Expatriados russos informados sobre o acontecimento haviam lealmente acorrido e faziam o que podiam para ocultar os vazios crescentes na sala. Paul e Lucie Leon, amigos fiéis de Nabokov, haviam trazido James Joyce como uma surpresa especial. Um time de futebol húngaro ocupava a primeira fileira.
O sr. Nabokov deve achar estranha essa rememoração das extravagâncias literárias dos anos de sua juventude. Hoje, ele vive com sua mulher e seu filho neste país [EUA", do qual é cidadão; vive feliz, pelo que sei, sob o disfarce transparente de um professor de literatura com férias generosas, devotadas à caça de borboletas no Oeste. Nos círculos lepidopterológicos ele é conhecido como taxonomista algo excêntrico, de pendores mais analíticos que sintéticos. Publicou em revistas científicas americanas várias de suas descobertas sobre novas espécies ou formas de borboletas e, numa tradição científica que parece impressionar jornalistas leigos, outros entomologistas batizaram borboletas e mariposas com seu nome. O Museu Americano de História Natural, em Nova York, e o Museu de Zoologia Comparada, da Universidade Harvard, preservam os espécimes de Nabokov. Numa visita a esta última instituição, mostraram-me várias mariposas minúsculas pertencentes a um gênero maravilhosamente multiforme que Nabokov descobriu nos Montes Wasateh de Utah [EUA", em 1943. McDunnough batizou uma delas como Eupithecia nabokovi. Essa é uma resolução agradavelmente satisfatória para uma certa linha temática de "Conclusive Evidence", em que Nabokov narra a paixão com que, ainda garoto, sonhara em descobrir um novo membro desse mesmo grupo.
A postura e o gosto de Barbara Braun, a pureza e a simplicidade de seu estilo, cintilante como um regato da Nova Inglaterra, são qualidades que o autor de "Conclusive Evidence" não compartilha. Não há como deixar de se irritar com certas peculiaridades do estilo de Nabokov; seu uso casual de termos desconhecidos criados por cientistas para nomear doenças desconhecidas; sua tendência geral a chafurdar em sensações esotéricas; seus métodos de transliteração (ele usa um sistema -o correto- para verter trechos de conversas em russo e outro sistema, marcado pelo compromisso, para transliterar nomes); ou ainda caprichos como o de propor um problema de xadrez (sem dar a jogada-chave, que é bispo para ***).

Ataques de júbilo
Um outro ponto que não deixará de ofender certo tipo de leitor (de alta classe média, no sentido cultural do termo) é a atitude de Nabokov diante de autores como Freud, Mann e Eliot, que a tradição e os bons costumes aconselham a respeitar, juntamente com Lênin e Henry James.
Nabokov vem pilheriando pesadamente contra a oniromancia e a mitogenia psicanalíticas desde os anos 20. Ele classifica na subfamília Jules Romain Rolland Galsworthy [referência aos escritores franceses Jules Romains e Romain Rolland e ao inglês John Galsworthy", nalgum lugar entre Upton e Lewis, como gosta de dizer com irreverência (valendo lembrar que Romain equivale matematicamente a Sinclair). Ele é propenso a verdadeiros ataques de júbilo sarcástico quando críticos de alta classe média colocam o estuque de Mann e Eliot ao lado do mármore de Proust e Joyce. Poucas pessoas concordarão com sua afirmação de que a poesia de Eliot é essencialmente platitudinária.
Suponho que Nabokov está apenas tentando ser espirituoso quando observa que o sucesso da última peça de Eliot pertence à mesma ordem de fenômenos tais como "zutismo, existencialismo e Tito", e não há dúvida de que todos aqueles cuja musa, "née" Eliotovich, faz-se ouvir tão sonoramente em pequenas revistas literárias concordarão com fervor que chamar T.S.E. [Thomas Stearns Eliot, 1888-1965" de "Wally Simpson da literatura americana" é patentemente um gracejo de mau gosto. Por fim, há seu desprezo por Dostoiévski, que causa arrepios aos russos e desaprovação nos círculos acadêmicos das grandes universidades [leia comentário na pág. 5-10". Talvez a imunidade de Nabokov aos cultos sentimentais que os críticos americanos guardaram dos anos 20 e 30 deva-se a ele ter passado, naqueles anos, por uma espécie de fase desprovida de "Zeitgeist" no mundo do exílio ascético, distante da "era do jazz" e das modas pré-"crash".
Com todos os seus defeitos, "Conclusive Evidence" ainda representa uma contribuição significativa, uma "prova cabal" de muitas coisas, das quais a mais óbvia é de que esta vida não é tão ruim quanto parece. O sr. Nabokov merece ser cumprimentado por ter levado a cabo um trabalho tão exigente e tão necessário. Suas memórias encontrarão lugar permanente ao lado de "Infância", de Tolstói, de "Amen Corner", de T.S. Ellmann, e de "When Lilacs Last", de Barbara Braun -livro que agora passamos a comentar (1).


Nota
1.Não existe o comentário sobre o livro de Barbara Braun.

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Tradução de Samuel Titan Jr.




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