São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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Renaissance man

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

Vladimir Nabokov/Lolita. A livre associação é imediata e injusta para uma personalidade tão multidirecionada quanto a desse intelectual cosmopolita, que tem seu centenário celebrado no dia 23.
Ele escreveu poemas, contos, romances, peças de teatro, crítica literária e memórias. Foi professor de tênis, ator de cinema e lepidopterólogo (estudioso de borboletas). Estudou zoologia, línguas e literatura. Viveu na Rússia, França, Alemanha, Inglaterra, Suíça e EUA, onde se radicou em 1938.
Foi criado para ser o que os americanos chamam de "renaissance man", uma pessoa capaz de saber muito sobre quase todas as coisas.
Seu pai, Vladimir Dmietrich, era um dos líderes do Kadets, o partido liberal da Rússia czarista, e foi um dos responsáveis pela derrocada do regime de Kerensky.
A influência do pai sobre o menino, o mais velho de cinco irmãos, foi decisiva, como se demonstra em vários textos de Nabokov, inclusive na autobiografia.
Ele era "uma criança trilíngue perfeitamente normal numa família com uma grande biblioteca", como se autodescrevia.
Como era de hábito na aristocracia russa, falava-se francês, inglês e russo com naturalidade na espaçosa casa de fazenda dos Nabokov, a 80 km de São Petersburgo.
Com o pai, ele aprendeu, além de uma estrita ética de trabalho, o fascínio pelas borboletas. "Os prazeres e recompensas da inspiração literária não são nada, comparados ao êxtase de se descobrir um novo órgão ao microscópio, ou uma espécie desconhecida na encosta de uma montanha no Irã ou no Peru", dizia Nabokov.
Na escola, a Tenishev, considerada a melhor e mais cara da Rússia, ele se destacava não só pelo desempenho, mas, talvez principalmente, pela maneira solitária com que se portava. A única atividade coletiva de que participava era a prática de futebol. Mesmo assim, jogava sempre como goleiro.
Se não tivesse sido pela Revolução Russa em 1917, talvez nunca tivesse se dedicado à literatura, avaliava Nabokov. A revolução lhe roubou, além do convívio de tempo integral com a ciência, o do pai, assassinado em 1922 por um extremista de direita, em Berlim.
O alvo do atentado era um amigo de Vladimir Dmietrich, o político Pavel Miliukov, seu colega no governo provisório russo entre o czarismo e o comunismo.
A morte violenta do pai marcou seus escritos, nos quais o tema do assassinato aparece com frequência.
Na Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde se formou em 1923, Nabokov se tornou mais sociável. Nessa época, traduziu "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll, para o russo.
Usando o pseudônimo VI, passou a publicar contos e poemas que o ajudavam a ganhar a vida em Berlim, onde passou a morar depois de formado. Mas também dava aulas particulares de inglês e tênis, traduzia, fazia cenários para teatros e filmes, produzia palavras cruzadas para jornais e revistas.
A fortuna familiar acabara, mas a formação diversificada que recebera ajudava Nabokov a sobreviver. Decidiu que não acumularia bens materiais. Nunca comprou uma casa, mesmo depois de ter atingido a celebridade. Preferia viver em hotel ou casa alugada.
Notívago e metódico, trabalhava nas madrugadas, sempre com o uso de fichas de cartolina com pauta e lápis bem apontados, macios e com borracha. Escrevia nas fichas, que iam se ampliando e juntando até o texto final.
Em 1925, casou-se com Vera Slonim, também emigrante russa, única mulher que teve. O filho, único, Dmitri, nasceu em 1938.
Pouco antes, Nabokov teve de emigrar por razões políticas pela segunda vez. Judeu, deixou a Alemanha nazista por Paris e, logo depois, Londres. De lá, por motivos econômicos, foi para os EUA.
Naturalizou-se norte-americano em 1945. "Considero-me tão americano quanto o mês de abril no Arizona. A flora, a fauna, o ar dos Estados do Oeste são meus elos com a Rússia asiática", dizia.
Nabokov nunca desfrutou de admiração consensual, como muitos escritores menos famosos que ele.
Muitos críticos o consideram repetitivo. "Escritores secundários dão a impressão de serem versáteis porque imitam muitos outros, antigos e contemporâneos. A originalidade artística tem somente a si mesma para imitar", respondia.
Foi só nos anos 70, depois do sucesso de "Lolita", mas graças especialmente a suas autobiografias, que seu prestígio como intelectual se cristalizou nos grandes centros literários do mundo ocidental.
Admirador de Borges, Joyce, Puchkin e Gógol (que traduziu para o inglês e a respeito de quem escreveu um admirável estudo crítico), Nabokov, no entanto, dizia nada ter aprendido com eles.
A única influência que admitia em público era a de H. G. Wells (1866-1946), que, com suas obras de ficção científica, havia povoado grande parte da imaginação juvenil de Nabokov. "Suas histórias eram muito melhores do que qualquer coisa produzida por seus contemporâneos", afirmava.
Wells visitou a casa dos Nabokov em São Petersburgo, para o deslumbramento de seu jovem admirador, que atribuía, em parte, sua tendência para a literatura a esse encontro com ele na Rússia.
Conservador empedernido, Nabokov dizia que "as idéias de reforma social de Wells podem, seguramente, ser ignoradas, é claro; mas os romances são excelentes".
Em 1959, Nabokov mudou-se pela última vez, para Montreaux, na Suíça, onde morou com Vera no Palace Hotel até morrer em 2 de junho de 1977, aos 78 anos.


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