São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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LIVROS

Dostoiévski sem exotismos

MANUEL DA COSTA PINTO
especial para a Folha

A biografia de Dostoiévski (1821-1881) escrita pelo crítico Joseph Frank tem um efeito no mínimo paradoxal: desmentindo mitos consagrados acerca da vida familiar e intelectual do autor de "Crime e Castigo", essa obra monumental, cujo primeiro volume acaba de ser lançado no Brasil pela Edusp, reafirma a centralidade de Dostoiévski na mitologia literária da modernidade.
Os biógrafos do romancista russo sempre carregaram nas tintas ao tentarem detectar em sua experiência privada o caos moral, o dilaceramento psíquico e a atmosfera apocalíptica onipresentes em obras como "O Idiota", "Os Demônios" e "Os Irmãos Karamázov". Frank reduz a um plano quase corriqueiro os dramas vividos pelo jovem Fiódor Mikháilovitch em sua infância e adolescência. Com isso, sai de cena o filho de um lar dissoluto, o iletrado alheio à tradição ocidental que, por milagre, transformou-se no grande e exótico autor da literatura russa do século 19; em seu lugar, entra o talentoso e instruído filho de uma família da burguesia moscovita que adquiriu status social por meio do sistema nobiliárquico-burocrático da Rússia czarista, um autor genial que, da periferia da Europa, levou o romance aos limites possíveis da unidade formal, preparando a insurreição dos modernistas.
"Dostoiévski - As Sementes da Revolta" cobre o período de 1821 (ano de nascimento do escritor em Moscou) a 1849, quando Dostoiévski é preso por seu envolvimento com o "círculo de Petrachévski", um grupo de idéias socialistas que seria dissolvido pela polícia de Nicolau 1º. Esse recorte compreende a estréia literária de Dostoiévski, com o romance "Pobre Gente" (que lhe deu imediato reconhecimento público), e obras consideradas menores, como "O Duplo", "Noites Brancas" e o romance inacabado "Netotchka Nezvânova". Joseph Frank dedica vários capítulos à análise dessas obras e é digno de nota que uma biografia tão minuciosa quanto esta jamais deixe em segundo plano a obra literária de Dostoiévski.
Mas, por brilhantes que sejam suas reflexões, o interesse do primeiro dos cinco tomos dessa obra está na dissolução da imagem de Dostoiévski como um "outsider" absoluto no contexto russo. De fato, assinala o biógrafo, ele não teve, como é o caso de Tolstói ou Aleksandr Herzen, uma formação europeizante e com influências do Iluminismo francês; porém recebeu do pai, um médico cioso de sua imagem social, instrução religiosa e cultural muito acima da média de seus contemporâneos, voltada principalmente (e isso ajudará a compreender sua posterior adesão ao nacionalismo eslavo) para a sondagem das singularidades da alma russa.
As relações de Dostoiévski com o pai constituem, de resto, o núcleo a partir do qual Frank desfaz a maior parte dos mal-entendidos sobre o escritor, o mais célebre deles de autoria de Freud. No artigo "Dostoiévski e o Parricídio" (1928), Freud afirmara que o escritor vivia um conflito entre impulsos parricidas e o desejo de autopunição decorrente do sentimento de culpa; assim, quando soube do assassinato de seu pai, em 1839, na casa de campo da família, em Darovóie, Dostoiévski teria tido seu primeiro ataque epilético, na verdade um sintoma histérico daquele conflito insolúvel.
Com base em documentos e em cartas do irmão mais novo de Dostoiévski, Joseph Frank mostra que o primeiro dos muitos ataques epilépticos do escritor só ocorreria anos depois e que as razões do mal eram provavelmente orgânicas (seu filho Aleksei morreria aos três anos de idade, em 1878, vítima de uma forte crise epiléptica), além de apontar uma série de imprecisões factuais na "lenda" criada pelo psicanalista austríaco.
Entre desmentidos e retificações, o curioso é que Joseph Frank concorda em grande parte com a descrição que Freud faz da alma de Dostoiévski. No fundo, tanto faz que a psicanálise repouse sobre bases objetivas tão frágeis (e não apenas no caso de Dostoiévski...). A obra de Freud faz parte do imaginário desse século e, não por acaso, Dostoiévski é uma espécie de figuração antecipada -e muito mais poderosa do que a psicanálise- de nossos tormentos.
Os fantasmas de Dostoiévski, seu sentimento de culpa exacerbado, a sensação de dissolução iminente do mundo, a galeria de personagens grotescas que povoam o ambiente da metrópole moderna com seus solipsismos e alucinações, a polifonia romanesca tão bem dissecada por Bakhtin e sem a qual seria impossível imaginar Joyce ou Céline, tudo isso começou a germinar ali, nesses anos da infância de Dostoiévski, anos relativamente felizes e que logo dariam lugar ao exílio na Sibéria, ao inferno familiar e financeiro, ao vício do jogo e da vodka, a essa existência miserável que produziu talvez a maior obra literária da humanidade, ao lado de Dante e Shakespeare.



A OBRA
Dostoiévski - As Sementes da Revolta (1821-1849) - Joseph Frank. Tradução de Vera Pereira. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 374, CEP 05508-900, SP, tel. 011/818-4008). 504 págs. R$ 37,00.




Manuel da Costa Pinto é jornalista e doutorando em teoria literária na USP. É autor de "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial).



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