|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Dostoiévski sem exotismos
MANUEL DA COSTA PINTO
especial para a Folha
A biografia de Dostoiévski
(1821-1881) escrita pelo crítico Joseph Frank tem um efeito no mínimo paradoxal: desmentindo mitos
consagrados acerca da vida familiar e intelectual do autor de "Crime e Castigo", essa obra monumental, cujo primeiro volume
acaba de ser lançado no Brasil pela
Edusp, reafirma a centralidade de
Dostoiévski na mitologia literária
da modernidade.
Os biógrafos do romancista russo sempre carregaram nas tintas
ao tentarem detectar em sua experiência privada o caos moral, o dilaceramento psíquico e a atmosfera apocalíptica onipresentes em
obras como "O Idiota", "Os Demônios" e "Os Irmãos Karamázov". Frank reduz a um plano
quase corriqueiro os dramas vividos pelo jovem Fiódor Mikháilovitch em sua infância e adolescência. Com isso, sai de cena o filho de
um lar dissoluto, o iletrado alheio
à tradição ocidental que, por milagre, transformou-se no grande e
exótico autor da literatura russa
do século 19; em seu lugar, entra o
talentoso e instruído filho de uma
família da burguesia moscovita
que adquiriu status social por
meio do sistema nobiliárquico-burocrático da Rússia czarista,
um autor genial que, da periferia
da Europa, levou o romance aos
limites possíveis da unidade formal, preparando a insurreição dos
modernistas.
"Dostoiévski - As Sementes da
Revolta" cobre o período de 1821
(ano de nascimento do escritor em
Moscou) a 1849, quando Dostoiévski é preso por seu envolvimento com o "círculo de Petrachévski", um grupo de idéias socialistas que seria dissolvido pela
polícia de Nicolau 1º. Esse recorte
compreende a estréia literária de
Dostoiévski, com o romance "Pobre Gente" (que lhe deu imediato
reconhecimento público), e obras
consideradas menores, como "O
Duplo", "Noites Brancas" e o
romance inacabado "Netotchka
Nezvânova". Joseph Frank dedica
vários capítulos à análise dessas
obras e é digno de nota que uma
biografia tão minuciosa quanto
esta jamais deixe em segundo plano a obra literária de Dostoiévski.
Mas, por brilhantes que sejam
suas reflexões, o interesse do primeiro dos cinco tomos dessa obra
está na dissolução da imagem de
Dostoiévski como um "outsider"
absoluto no contexto russo. De fato, assinala o biógrafo, ele não teve, como é o caso de Tolstói ou
Aleksandr Herzen, uma formação
europeizante e com influências do
Iluminismo francês; porém recebeu do pai, um médico cioso de
sua imagem social, instrução religiosa e cultural muito acima da
média de seus contemporâneos,
voltada principalmente (e isso ajudará a compreender sua posterior
adesão ao nacionalismo eslavo)
para a sondagem das singularidades da alma russa.
As relações de Dostoiévski com
o pai constituem, de resto, o núcleo a partir do qual Frank desfaz a
maior parte dos mal-entendidos
sobre o escritor, o mais célebre deles de autoria de Freud. No artigo
"Dostoiévski e o Parricídio"
(1928), Freud afirmara que o escritor vivia um conflito entre impulsos parricidas e o desejo de autopunição decorrente do sentimento
de culpa; assim, quando soube do
assassinato de seu pai, em 1839, na
casa de campo da família, em Darovóie, Dostoiévski teria tido seu
primeiro ataque epilético, na verdade um sintoma histérico daquele conflito insolúvel.
Com base em documentos e em
cartas do irmão mais novo de Dostoiévski, Joseph Frank mostra que
o primeiro dos muitos ataques
epilépticos do escritor só ocorreria
anos depois e que as razões do mal
eram provavelmente orgânicas
(seu filho Aleksei morreria aos três
anos de idade, em 1878, vítima de
uma forte crise epiléptica), além
de apontar uma série de imprecisões factuais na "lenda" criada
pelo psicanalista austríaco.
Entre desmentidos e retificações, o curioso é que Joseph Frank
concorda em grande parte com a
descrição que Freud faz da alma de
Dostoiévski. No fundo, tanto faz
que a psicanálise repouse sobre
bases objetivas tão frágeis (e não
apenas no caso de Dostoiévski...).
A obra de Freud faz parte do imaginário desse século e, não por
acaso, Dostoiévski é uma espécie
de figuração antecipada -e muito
mais poderosa do que a psicanálise- de nossos tormentos.
Os fantasmas de Dostoiévski,
seu sentimento de culpa exacerbado, a sensação de dissolução iminente do mundo, a galeria de personagens grotescas que povoam o
ambiente da metrópole moderna
com seus solipsismos e alucinações, a polifonia romanesca tão
bem dissecada por Bakhtin e sem a
qual seria impossível imaginar
Joyce ou Céline, tudo isso começou a germinar ali, nesses anos da
infância de Dostoiévski, anos relativamente felizes e que logo dariam lugar ao exílio na Sibéria, ao
inferno familiar e financeiro, ao
vício do jogo e da vodka, a essa
existência miserável que produziu
talvez a maior obra literária da humanidade, ao lado de Dante e Shakespeare.
A OBRA
Dostoiévski - As Sementes
da Revolta (1821-1849) - Joseph Frank. Tradução de Vera
Pereira. Edusp (av. Prof. Luciano
Gualberto, travessa J, 374, CEP
05508-900, SP, tel.
011/818-4008). 504 págs. R$
37,00.
Manuel da Costa Pinto é jornalista e doutorando em teoria literária na USP. É autor de "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio" (Ateliê Editorial).
Texto Anterior: Autores - Robert Kurz: A ideologia do sangue Próximo Texto: Dostoiévski por... Índice
|